segunda-feira, 26 de maio de 2008


  • IMIGRAR «SEM PAPÉIS» É CRIME NA UNIÃO EUROPEIA
Dizia Sancho Panza que “yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay”. E se muita gente não crê na existência de uma conspiração ocidental contra os mais pobres, a verdade é que a discussão de uma Directiva de Retorno dos imigrantes em situação irregular na União Europeia, assim como o reforço das fronteiras externas da EU no presente momento é prova bastante desse facto.

Todos os anos milhares de pessoas são expulsas da EU por se encontrarem em situação irregular. Durante o processo de expulsão ou de repatriamento os cidadãos ficam sujeitos à tutela policial ou jurisdicional, dependendo dos países e/ou do processo de expulsão.

As pessoas são colocadas em prisões ou em “centros de acolhimento” (um eufemismo para o que é objectiva e subjectivamente prisão, privação de liberdade). Os períodos variam, de país para país, indo dos 32 dias em França e Chipre, passando pelos 40 dias na Itália, 2 meses em Portugal, 18 meses na Alemanha a um período ilimitado no Reino Unido e na Holanda.

Agora, paradoxalmente – ou talvez não, os países com menores períodos de detenção (França e Itália) resolveram promover a discussão dessa matéria ao nível da EU. O pretexto, além de questões que tenho dificuldades em não considerar aporofóbicas e xenófobas, é a segurança (panaceia do apaziguamento xenófobo) e a harmonização da legislação europeia nesta matéria.
Assim, a ideia é harmonizar o período de detenção para imigrantes “ilegais” – isto é, em situação documental irregular –, passando, assim, a haver um período máximo de 6 meses, extensível até 18 meses (ano e meio). Isto é, a ideia é que um cidadão pode(rá) ser detido – na verdade preso – por um período tão longo que equivale a cumprir pena por um crime.

Esta ideia é desumana, representa um retorno civilizacional e uma violação ostensiva dos direitos fundamentais dos estrangeiros na EU. Se a situação em alguns países é insustentável (Reino Unido, Holanda, Finlândia, Suécia, Dinamarca, Estónia e Lituânia – duração ilimitada), tal deveria ser resolvido com uma solução humanista, não procurando um bissectriz entre o que se passa na França e Itália, na Letónia (20 meses) e Alemanha (18 meses) e na Holanda e Reino Unido (sem limites) para se encontra uma “solução” que satisfaça todos.

Todos, menos a humanidade. É que colocar sob prisão os estrangeiros é, claramente, uma desumanidade; é criminalizar indirectamente o acto de imigrar e puni-lo. Um crime é, segundo doutrina jurídico-penal universalmente aceite, (a) um facto (2) típico, (3) ilícito, (4) culposo e (4) punível. Assim, o que a EU pretende é transformar uma medida de coação – já de si criminosa – em direito substantivo. A dimensão de crime deste facto é tão clara que o encarceramento e a expulsão são acompanhados de uma pena acessória de proibição de entrada na União Europeia pelo período de 5 anos.

Uma forma engenhosa de contornar o princípio nullum crimen dine lege previa? Note-se que, em Portugal, um cidadão detido tem de ser apresentado a um Juiz de Instrução no prazo de 48 horas, para validação da detenção e aplicação de uma medida de coação que pode chega até a prisão preventiva. Acontece que, como a pena abstracta que admite a prisão preventiva tem de ser superior a 5 anos, o que acontece é que somente quem comete um crime cujos indícios apontam para a prática de um ilícito penal grave, com pena superior a 5 anos, é que é apresentado ao Juiz de Instrução.

Mas o estrangeiro, pelo simples facto de estar indocumentado, é detido e presente a um Juiz de Direito dos tribunais de pequena instância criminal que, não raras vezes, aplicam a prisão preventiva ao mesmo – actualmente, com os Centros de Acolhimento, são colocados nestes e não nas prisões. Não tem a dimensão de pena mas de medida de coação – dizem os magistrados, errada e convenientemente. Muitos, felizmente, têm percebido a hediondez deste sistema e, como justiça, não a têm aplicado.

Voltando à União Europeia e às ideias da Comissão Europeia e aos seus propósitos. Tenho dúvidas sérias e fundadas dúvidas sobre a estrita legalidade desta medida de criminalização de facto do direito de viajar dos cidadãos não comunitários. Sou da opinião que os Advogados da União Europeia deveriam aconselhar os seus clientes a recorrer, sempre, para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais com queixas sobre esta questão.

Mais, os Estados com cidadãos seus afectados por estas medidas têm o dever de demandar – perante o Tribunal Internacional de Justiça da ONU – a União Europeia e os Estados que apliquem (mesmo na actual formulação) esta legislação. Mas, haverá coragem para isso? Os interesses económicos prevalecerão sobre a razão e a defesas dos direitos dos cidadãos? A ver vamos…

Mais, ainda, a EU pretende colocar nessa situação menores, nomeadamente as crianças não acompanhadas. Estou curioso para saber o que o actual Governo socialista irá dizer sobre isso. É que me recordo – sim, a minha memória não é curta nestas coisas – do “caso Vuvu Grace” e da acusação que muitas eminências do PS fizeram ao então Governo do actual Presidente da República (Cavaco Silva): “prender criancinhas”.

Não me surpreenderei se o Governo português aderir à esta ideia. É que, lembro a quem se tenha esquecido, foi o Partido Socialista quem – sendo até então o maior opositor da ideia de criação dos Centros de Acolhimento/Detenção no consulado de Cavaco Silva - paradoxalmente, inauguraria essa prisões envergonhadas no verão quente de 2000 (quando toda a gente estava “distraída” a pensar noutras coisas), sendo Fernando Gomes Ministro Administração Interna e Armando Vara o Secretário de Estado da Administração Interna do Governo liderado por António Guterres. Então, já não era “prender criancinhas”...

Além do mais, parece-me que a aprovação e a aplicação dessa Directiva estará ferida de nulidade (de inconstitucionalidade ao nível interno) por contrariar a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdade Fundamentais, nomeadamente, o Artº.4º. do Protocolo 4 que proíbe as expulsões colectivas. Expulsar oito milhões de imigrantes? Não me parece que tal seja possível. Durão Barroso, aquando do seu Governo em coligação com o Partido Popular de Paulo Portas equacionou a expulsão de todos os imigrantes ilegais de Portugal mas depois arredou pé dessa ideia – que passou, então, como uma ideia do Paulo Portas. Terá sido? E agora, a ideia virá de França, Itália e Reino Unido, é certo; mas terá ou não sustentáculo na Presidência da Comissão Europeia? Sarkozy já anunciou: a próxima presidência francesa da União Europeia irá ter a imigração como uma das suas prioridades e as suas ideias sobre esta matérias não são, de todo, as mais simpáticas para os imigrantes. Esta Directiva será, certamente, uma das questões centrais da presidência francesa do Conselho da União Europeia.

Podemos estar perante um pomo de discórdia que poderá gerar uma crise política no seio da Europa comunitária e um conflito da EU com os Estados terceiros – os países de imigração. Quem vive estas coisas ao nível prático sabe o que acontece com os cidadãos dos países Magrebinos – sofrem sempre a detenção máxima e depois são libertados, pois os seus países, em regra, não os aceitam. Além do mais, basta(rá) não colaborarem na sua identificação para não poderem ser expulsos.

É o Mundo em que vivemos: empurra-se as pessoas para a pobreza e depois fecham-se as portas e coloca-se em prisões quem consegue fugir da pobreza extrema e chega à uma terra prometida que não os quer nem deseja. E depois, aponta-se o dedo à China, à Myarmar e outros de violar os direitos humanos... É, somente, uma questão de grau ou dimensão – a EU também viola os direitos humanos, ainda que se escude nas normas.

Ouve-se um clamor ocidental, dos Fóruns aos media, passando pelas pessoas, a acompanhar o Dalai Lama: – “está ocorrer um genocídio cultural no Tibete”. Mas essas mesmas vozes “esquecem” o genocídio dos africanos que tentam entrar na Europa, para não falar no que acontece em África por causa das políticas ocidentais. Mas claro que a cultura tibetana é mais importante que a vida dos africanos; é claro.

Silvio Berlusconi já deixou claro: quer fechar as fronteiras e criar campos de identificação dos estrangeiros sem trabalho que se vêm obrigados a entrar na vida da delinquência. Da vergonha de Lampedusa (Itália) e de Mellila (Espanha) – que se tem tolerado com um ensurdecedor silêncio – aparece agora esta ideia, própria do nacional socialismo alemão e do III Reich, aliás, análoga ao que Hitler mandou fazer com os judeus: identificá-los.

Ainda mais horrível que esta ideia, é o facto dela ter passado despercebida, como se fosse algo natural, normal. Tempos sombrios percorrem a Europa, centímetro a centímetro e o silêncio do compromisso está a alimentá-lo; e cresce como um monstro na sombra, como um deserto de desumanidade.

Um destes dias acordamos e descobrimos que os imigrantes e os estrangeiros não comunitários em geral – além de já terem a sua vida toda controlada (os serviços de estrangeiros monitorizam tudo, mas tudo da vida dos mesmos) –, têm uma espécie de estrela amarela a identificá-los. E, nesse dia, acharemos normal; como porcos caídos na pocilga.

Existem, sim, outras medidas de travar e combater a imigração ilegal que não pode ser confundida com a circulação de criminosos no espaço Schengen nem os imigrantes serem considerados e tratados como criminosos. Uma coisa é certa, como dizia Simon Wiesenthal, "a liberdade não é um dom dos céus". Mas é, certamente, sagrado. Mas, pelos vistos, a liberdade de uns é "mais liberdade" que a de outros.

O fedor da hipocrisia ganha terreno e cresce, a cada ano europeu ou internacional disto e daquilo – da igualdade ao diálogo intercultural e quejandos – que a Europa promove. Não são precisos anos de nada, o que é preciso é acção e verdade. Entendo que a consciência dessa hipocrisia gere medos naturais e que se pense que a solução é imitar a avestruz.

PS: Depois de escrever este texto tive notícias, aqui em terra de Vera Cruz e através do El País e do Le Monde, que a Itália de Berlusconi resolver criminalizar – em letra expressa de lei – a imigração «ilegal». Fico à espera para saber até onde irão os silêncios…


APHRODITE

Quando levemente criança
amei Santa Auxiliadora e seu sorriso.

Hoje sei.

Sim sei, como El Elohim viu Eva,
que existem sorrisos que encantam
e matam efémeros a solidão;
que existem formas que pensamos moldar
e moldam-nos do altar;
que existem deuses que não criamos,
que não são bem nem mal
mas tu criação.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Les Femmes, Milo Manara

  • O VALOR COMO CRITÉRIO DE ESCOLHA POLÍTICA
No dia 16.05.2008 o calendário anunciou duzentos anos sobre o dia em que Abraham Lincolm fez o seu mítico discurso A House Divided (Illinois Republican State Convention, Springfield, Illinois); revisito o texto: «If we could first know where we are, and whither we are tending, we could better judge what to do, and how to do it. […] A house divided against itself cannot stand», não poderia estar mais de acordo com o estadista.

Já cansado de um dia inusual, agarrei na Historiae Augustae. Reli, então, Aelius Spartianus e a sua narração da trágica morte de Papiniano – um dos maiores juristas da história e, com Thomas Moore (morto por razões análogas por Henrique VIII), patrono dos Advogados.
Depois de matar o irmão (Antoninus Geta) nos braços da mãe (Júlia Domna) – com a ajuda por omissão da guarda pretoriana – pediu a Papiniano para ir ao Senado defender a sua acção homicida.

O Advogado então Magister Liberum de Roma, consciente da injustiça de tal defesa, disse ao Imperador que «é mais fácil cometer um homicídio que justificá-lo» e declinou o convite imperial. Caracalla, desagradado disse-lhe que entendia a sua posição, pois era um homem de honra. Pelo que convidou-o a passar pelas ruas da cidade na sua companhia, como da sua amizade.

Assim fizeram: passearam por Roma como se fossem unidos por uma fraternidade maior que a biológica. Depois de voltar ao palácio imperial deu ordens a um soldado para matar o ilustre Papiniano. O pretoriano foi ter com o jurista e, a golpes de machado, executou-o. Voltou ao palácio e deu a notícia ao Imperador; este, desagradado, matou-o, dizendo que um homem de honra como Papiniano não merecia morrer pelo machado mas sim pela espada.

Isso porque Caracalla cometeu o erro de incumbir um soldado de fazer algo que somente um oficial deveria, pois saberia fazer bem, com dignidade e honra. É que, como bem diz Tito Lívio na sua História de Roma, “os talentos de um soldado são diferentes dos de um general” (Tito Lívio, XXV.19). E sabia o que dizia, pois foi mentor de Cipião que, com Júlio César e o Optimus Princeps Trajano restam como as grandes glórias militares de Roma. Viu o seu pupilo escapar do massacre da batalha de Canas – a maior derrota militar da história de Roma e infringida pelas hostes africanas de Aníbal – e da derrota junto ao lago Transimeno às mãos, também, de Aníbal.

Foi testemunha da capacidade de aprender de Cipião e viu-o usar as técnicas do seu inimigo para o vencer. Assim, quando Cipião alcançou a glória de vencer Aníbal – com técnicas pouco ortodoxas para as legiões romanas – e de derribar a cidade-Estado de Cartago estava ao seu lado no acampamento romano. Diz-nos que Cipião chorou com a destruição que fez à portentosa cidade africana que queimou até às fundações durante setenta dias e setenta noites.

Por essa razão – essencialmente – é que em Roma não se podia chegar a Imperador, a não ser por sucessão, sem passar pelo Senado (legislador, muitas vezes incumbidos de gestão militar) ou pelo consulado imperial (dois cônsules nomeados por um ano e que detinham poderes análogos aos de um Rei); partia-se do princípio de que eram precisas determinadas qualidades, nomeadamente o valor militar e a honra no exercício desta, nomeadamente na vitória.

Havia, no entanto, algumas formas de ultrapassar isso; mesmo entre os romanos. Júlio César, por exemplo, concedeu todas as honras militares a Octávio Augusto – seu sobrinho neto que viria a torna-se o primeiro Imperador de Roma – sem que este tivesse participado em nenhuma batalha. Como aconteceu, agora, com um dos sucessores ao trono do Reino Unido que passou fugazmente pelo Afeganistão.

No entanto a qualidade do melhor homem, o critério do mais capaz sempre foi o critério usado em Roma para escolher os seus líderes. Foi o que aconteceu no Século dos Antoninos – Nerva, Adriano, Trajano, Antoninus Pio, Lucius Verus, Marco Aurélio e Cómodo – e que Cómodo foi excepção, por decisão do seu pai, Marco Aurelio. O primeiro soldado ou Imperador soldado do Império romano – o mauritano Macrinus – aconteceu num momento particular. Estando ausente quem pudesse preencher os critérios vigentes no Império, as legiões atentaram no critério que restava – que terá sido o primeiro a ser usado pelo homem: o valor.

As capacidades de um líder devem ser sujeitas a escrutínio antes da assunção das suas responsabilidades; senão não será capaz de cumprir com a sua função ou fá-lo-á com prejuízo considerável para o bem comum – como é exemplo acabado George Bush ou Jaime I.

Quando se faz uma escolha política – como as que fizeram Poncio Pilatos, o General que apontou o soldado da Maratona como mensageiro, ou qualquer cidadão ao ajuizar votar G. W. Bush, Hitler, Berlusconi ou de não votar Lincolm (perdeu um eleição inicial que poderia ter terminado a sua carreira política), Churchill depois da guerra ou Barack Obama – temos de ter consciência de que tal tem consequências.

Assim como aceitar as decisões democráticas é, de todo, um exercício de humildade perante os decisores – um juiz pode cometer erros de julgamento, involuntariamente ou até para favorecer amigos ou grupos de interesse ou prejudicar alguém, o que acontece por ser ser humano falível e sujeito à essas fraquezas, mas o povo não erra: escolhe o que acha ser o melhor homem para conseguir o que é melhor para si. É um juízo sublectivo, falível, mas é o juízo do povo. É um dos grandes problemas da Democracia, desde Platão.

O político não pode esquecer o que Luís XVI disse a Malesherbes, sobre Turgot – que pensava poder fazer o povo francês feliz – e a sua acção política: não se pode obrigar um povo a ser feliz quanto este não o quer. Uma leitura da correspondência do Rei francês não faria mal a ninguém…

  • ACASO

Cada um que passa em nossa vida,
passa sozinho, pois cada pessoa é única
e nenhuma substitui outra.

Cada um que passa em nossa vida,
passa sozinho, mas não vai só
nem nos deixa sós.
Leva um pouco de nós mesmos,
deixa um pouco de si mesmo.

Há os que levam muito,
mas há os que não levam nada.
Essa é a maior responsabilidade de nossa vida,
e a prova de que duas almas
não se encontram ao acaso.
Antoine de Saint-Exupéry

  • Imagem: Babe, Milo Manara

terça-feira, 20 de maio de 2008

The southern ring nebula - NGC 3132

  • HUMANA CONDITIO

#3. O SENTIDO DA VIDA E DO ESPÍRITO HUMANO

O ser humano é singular, mas é, também, uma situação. O espírito humano precisa de um rumo, um objectivo, um fim estabelecido. Quando assim não acontece, perde-se e dificilmente se encontra. Mas quando se está perdido, e se tem consciência disso, aparece o fim, o objectivo: encontrar-se.

É algo de tão natural como as leis da natureza – como ditadas pela ideia de evolução natural da vida e da sua busca de um estádio superior de existência. O mesmo se passa ao nível da consciência, tenhamos ou não a percepção disso.

É por essa razão que o homem sempre perguntou: quem sou, de onde vim, para onde vou? É que, como é sói dizer-se desde tempos imemoriais, estar em todas as partes é o mesmo que não estar em lado nenhum.

A modernidade criou o homem da mono sociedade, o homem que procura viver sozinho mas não só; que procura interagir com o que o rodeia mas no seu Mundo, com as suas coisas. Mas, e depois? As coisas são o objectivo, o fim da existência, a satisfação última? Sim, para onde vou aparece como uma pergunta imperiosa.

A resposta, aparentemente simples, é o primeiro passo para a maior odisseia do espírito humano; é o início do conhecer-nos a nós mesmos. Pode-se ser justo ou não na nossa auto-avaliação, mas uma coisa é certa: as coisas não são o fim que se almeja.

Deus aparece como a resposta natural, a âncora da salvação ou, noutra perspectiva, como uma resposta à nossa incapacidade de encontrar uma resposta ou sentido existencial próprio – que seja mais do que a terra que se pisa e menos que o céu que não se pode tocar.

Deus liga-nos à ambas as coisas, explica as nossas angústias e, não raras vezes – para os que chegam a ter o privilégio de se aproximar dele ou de O deixar aproximar-se – consola-nos. Mas, ao contrário do que parece, chegar a Deus não é, hoje, o mais fácil. E não é porque Deus é visto por muitos como algo de um Mundo longínquo e de, até, se deve envergonhar-se de acreditar.

Há este aspecto exógeno da dificuldade, mas existe outro – esse sim endógeno – e que é parte do percurso intelectual e espiritual do para onde vou. Este aspecto, sendo ou não conclusivo, é determinado pelas duas outras questões: Quem sou? De onde vim?

Tudo está destinado a perecer, há que salvar a nossa alma; ensinava Buda. E se não o fizermos, encontrando-a dentro de nós, não o encontraremos em lado nenhum. É que, quer queiramos quer não, a vida – como a entendemos – está destinado a ter um fim; só podemos, na verdade, escolher o como (em devir e ser) chegamos a esse fim.

Podemos nunca encontrar o que almejamos, mas, de certeza, chegaremos ao fim melhores do que à partida e, pelo caminho, poderemos ter a felicidade de contribuir para que o Mundo (o pequeno universo em que vivemos é, na verdade, todo o Mundo) seja um local melhor. Afinal, isso não é um belo fim?

After the rain, Tremont area, Great Smoky Mountains National Park, Tennessee
.
  • Tenho estado longe da tecnologia, numa espécie de busca de coisas mais básicas e viscerais. O silêncio é, também, uma espécie de pão; aprendi.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

The Trumpets of Jericho, H. R. Giger

A sedução da vida é breve sonho.
Petrarca

  • O INVISÍVEL LÁTEGO
Invisível látego
este matiz de dia que te aflige
de sonhos.

Manto desordenado
este que paira em teus lábios
sedentos de manjares inominados...

E não há voz que te acuda!
Só olhos canibais,
desejos redesenhados,
mãos ciganos
te procuram
– em ti há mais chá e mel que oiro...

A verdade,
sabemos, tu e eu:
Só os pobres cantam
«riqueza não dá felicidade»
e somente os feios arvoreiam
que «beleza interior é que importa.»
Não têm olhos sem Eros,
não são mãe,
nem pai
ou tu.

E de ti,
cortesã de Mãe-terra e ideia,
as mossas das auroras
salpicam o dizer:

«Sou filha do pródigo,
em dia de festa reclamada,
desdenhada e não lida,
mas sou uma Laura negra,
com oiro como véu,
semblante angélico,
prole viajante
e céu, sim céu
com aroma de alecrim do Porto Novo
pois ontem choveu
e na minha pele germinou
hoje, outra vez,
este matiz de vida...»
  • A pedido de um amigo, repristino este poema.

Cannibalism of the Objects, Salvador Dali, 1937

… O raro azul da pérola
é cinza
e o riso do canto é ébano
e sombra de medo
enquanto o ouro não falar
de silêncio
e os deuses não visitarem o psiquiatra.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Homini lupus homini (o homem é lobo do homem), Thomas Hobbes, Leviathan

  • INTERVENÇÃO POR RAZÕES HUMANITÁRIAS EM MYARMAR
Se o que se está a passar em Myarmar não é uma razão para um intervenção humanitária no âmbito do direito de ingerência por razões humanitária, a melhor coisa a fazer é enterrar-se o conceito. Que utilidade pode ter se não é usado quando é objectivamente preciso?

Está-se perante uma situação em que os dirigentes do país não podem invocar a soberania e o direito de não ingerência nos seus assuntos internos, pois o problema que o país enfrenta não é somente de direito interno do país nem de Direito Internacional Público Geral ou Comum, é um problema especial, de Direito Internacional dos Direitos do Homem e de Direito Internacional Humanitário.

É preciso agir com urgência. A apatia do Conselho de Segurança da ONU, da União Europeia e dos Estados Unidos da América é criminosa por omissão, pois podem evitar uma catástrofe e não o fazem.

Bill Clinton fez mea culpa sobre as suas omissões em relação ao Rwanda e ao Burundi. O Mundo não precisa de mais arrependimentos, precisa de acção. Agora, não de carpir lágrimas depois; sobre milhares de vítimas à espera da morte ou da salvação.

Agora, não se deve aproveitar esta situação para se proceder à uma intervenção militar de escolta e de ajuda humanitária e, de seguida, se impor a “democracia” ao país. É, será uma tentação, mas deve ficar somente por isso. O Direito não deve ser morto em nome da utilidade que em dado momento pode representar uma dada acção. É que o direito deve ser útil, mas não ser objecto de um uso utilitarista.

  • PERPLEXIDADES
INJUSTIÇA SALARIAL EM CABO VERDE

O JORNAL Expresso das lhas entrevistou o empresário Andrea Stefanina (Expresso das Ilhas on line, 11.05.2008) e, entre outras coisas, perguntou-lhe:

EXP. – Há desenvolvimento económico, mas os pobres estão cada vez mais pobres, quer comentar?
AS. – «O salário é objectivamente injusto. O aumento do custo de vida ao longo dos anos não tem sido acompanhado integralmente por um realinhamento do rendimento líquido dos trabalhadores. Como disse antes é possível fazer mais se for criado um quadro de incentivos aos investimentos, se for desagravada a fiscalidade, directa e indirecta e se encararmos definitivamente os problemas que afligem os sectores produtivos do país. É necessário reduzir a pobreza e promover a equidade social e acertar os mecanismos que vão distorcendo a economia, criando assimetrias e condicionando a competitividade e o crescimento económico de Cabo Verde».

Ao ler isto, o que dizer? O que pensar? Apetece-me bradar aos céus e gritar: Deus!, se é objectivamente injusto, porque não aumenta o salário dos seus funcionários?! Sim, porque não lhes paga um salário digno e que corresponda ao produto do seu trabalho? Sim, um salário objectivamente justo. O que será um salário subjectivamente justo para o Senhor Stefanina?

O empresário respondeu, pedindo mais incentivos ao investimento, benefícios fiscais e o Céu e a Lua da praxis capitalista e do desenvolvimento na óptica empresarial. Isso para dizer que os salários só serão dignos quando o dinheiro sair não da justiça da relação laboral: salário correspondente ao trabalho produzido, mas sim quando o Governo der mais e maior margem de lucro aos empresários…

O jornalista coloca, com pudor, o dedo na ferida.

EX. – Quanto aos salários praticados na indústria hoteleira, são justos?
AS. – «O mecanismo é sempre o mesmo, embora sejam diferentes os factores que estão na origem das desproporcionalidades. A questão salarial não pode ser analisada de modo isolado. É preciso ter em conta o contexto económico em que operam as empresas e a conjuntura do mercado».

É, o mecanismo é sempre o mesmo, sem dúvida. O maior factor do empobrecimento do trabalhador cabo-verdiano, nomeadamente o da hotelaria, é o facto de receber um salário inferior ao produto do seu trabalho.

A questão salarial tem uma base: o trabalho e o produto desse trabalho, e esses é que devem ser os determinantes do salário. Existem factores condicionantes, sim. São de ordem meramente conjuntural e devem ser consideradas, mas será que o país vive em crónica conjuntura desfavorável?

Não, é claro que não. Se a conjuntura económica do país tem sido boa – a passagem a PDM é prova disso mesmo – e os investimentos do empresário em causa revelam que, pelo menos para ele, a conjuntura tem sido boa; então, porque não aumentar o salário dos seus empregados para níveis dignos?

Era uma pergunta a ser feita a um empresário que encontrou no país um El Dorado e deve, tem o dever de retribuir com justiça a todos aqueles que o ajudam a aumentar a sua fortuna.

O país precisa de um salário mínimo, já! E deveria começar na indústria hoteleira. Ah, já agora, sabe quanto é que custa uma noite num dos hotéis do grupo Stefanina? Sim? Então, pergunte lá a quem sabe qual é o valor dos salários dos empregados do mesmo grupo…

Então, perceberá a verdadeira dimensão da minha
perplexidade.

Ah, a minha perplexidade estendeu-se ao sentido ou não sentido das perguntas do jornalista; isso por não ter feito ao empresário uma pergunta simples e necessária (em substância):

– Os empregados do Stefanina têm salários justos?
.
Quem é que perguntará isso ao Stefanina e a todos os empresários em Cabo Verde? Sim, temos de nos habituar e atrever a ser incómodos, a questionar as coisas e as causas das coisas. Só assim o país poderá abrir os olhos para algumas realidades que empobrecem não somente o trabalhador mas o homem, a pessoa.

Note-se que não é a pergunta em si, é o dever de ir-se mais além no exercício da actividade jornalística, de ser uma espécie de pedra no sapato do poder – de todo e qualquer poder, do político ao económico, passando pelos pequenos e aparentemente adormecidos lobbyes sociais.
.
Agora, uma coisa seja feita justiça ao empresário: admitiu a injustiça dos salários dos cabo-verdianos. E se é o próprio empresariado que o assume – o que quer dizer que a realidade é de modo gritante que não se pode negar sem ser-se não sério – onde pára o Governo, onde pára a oposição para, de uma vez por todas, pôr-se cobro a esta injustiça? A justiça social é feita pelos Governos, esta deve ser feita agora. Sim, salário mínimo já!

Milo Manara, Les femmes

  • THOUGHTS I

A lonely swan from the sea flies,
To alight on puddles it does not deign.
Nesting in the poplar of pearls
It spies and questions green birds twain:
"Don't you fear the threat of slings,
Perched on top of branches so high?
Nice clothes invite pointing fingers,
High climbers god's good will defy.
Bird-hunters will crave me in vain,
For I roam the limitless sky."
Zhang Jiuling

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Our galaxy, the Milky Way - A nossa galáxia, a Via Láctea

  • "Se alguém ama uma flor da qual só existe um exemplar em milhões de estrelas, isso basta para que seja feliz quando a contempla." in O Principezinho, Antoine de Saint-Exupéry
Eagle nebula, M16 / a Nebulosa de Águia, conhecida como M16
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  • "Se tu amas uma flor que se acha numa estrela, é doce, de noite, olhar o céu. Todas as estrelas estão floridas." in O Principezinho, Antoine de Saint-Exupéry

Sodom´s Princess, Luis Royo

  • HUMANA CONDITIO
2. (DES)IGUALDADE E JUSTIÇA PARA TODOS. JUSTIÇA AMORDAÇADA?

A sociedade é de todos! A Justiça é para todos! A responsabilidade é de todos! Os direitos e os deveres são de todos e para todos! Verdades lapalissianas que – não fosse a perniciosa ideia de «classes sociais» alicerçada na asserção de GEORGE ORWELL (ORWELL, G., Animal Farm and 1984, Harcourt, 2003) de que «todos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros» e não precisaríamos de demonstrá-las e afirmá-las todos os dias; como agora.

A sociedade estruturada e/ou organizada – o chamado Estado – tem o dever de tratar todos de forma igual; de acordo com a natural desigualdade entre os homens. Quando assim não faz, deverá ser censurado – pois não estará a prosseguir o seu fim. Para tanto existem mecanismos adequados a prosseguir e executar essa censura; o voto, em democracia, é a «sentença» ou censura definitiva.

Mas – para não haver mal entendidos – precisemos o que é isso de «igualdade», nomeadamente de (des)igualdade entre os homens. Tem um sentido iuscientífico substancialmente diferente daquilo que entende ou pensa o cidadão comum – ainda que, afinal, seja, substancialmente, a mesma coisa o que dizem ou propugnam.

O homem, enquanto ser bio-psico-social, não é, natural e individualmente considerado, «igual» aos demais – isso é tão tautológico como dizermos que ao dia segue-se a noite, que o céu é azul e a erva é verde... Esse é, a meu ver, o maior erro lógico do Marxismo-Leninismo na senda da «sociedade sem classes» – que promoveria, se fosse alcançada, a mais injusta das sociedades. Até mesmo o «céu» cristão, o «paraíso» ismaelita e as formas mais arcanas de espiritualismo e de reflexão do ser – como o budismo, o jainismo e as ideias de transmigração da alma e de reencarnação – admitem essa «desigualdade» que advêm do mérito pessoal (adquirido social) ou das qualidades inatas (herança genética e/ou espiritual – consoante se veja esta razão em sede da ciência ou do exoterismo).
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Isto é, todas as sociedades que nos precederam entenderam que existe uma «natural desigualdade» entre os homens e que tratar todos de modo «igual» resultaria, afinal, desadequado; ou seja, tratar de forma igual o desigual resultaria em desigualdade de facto – injustiça. Por exemplo, Claude Levy-Strauss – numa leitura antropológica – dizia que devíamos «tratar o brâmane como brâmane e o pária como pária».
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Ora, a continuação desse tratamento formalmente «igual» levaria à uma sociedade desigual – isso é: desigualdade perpetuada através do tratamento igualitário, resulta em desigualdade. Mas existe uma outra forma, mais adequada de ver a igualdade – a chamada «igualdade material» ou substancial; a desigualdade justa.

Encontramos a sua formulação no longínquo Sec. IV – na sequência da revolução epistemológica do «Século de Péricles” –, na pena parturiante de Aristóteles. Ensina-nos o sábio grego que «devemos tratar situações iguais de forma igual e situações desiguais de forma desigual» (ARISTOTLE, The Nicomachean Ethics, Oxford, University Press, Oxford, 1998). Definição de igualdade que, ainda hoje, é aceite a nível universal entre as nações desenvolvidas e de matriz democrática.

A Constituição de Cabo Verde encontra-se nesta senda e diz-nos que (Artº.13º. CRCV - Princípio da igualdade): «Todos os cidadãos têm igual dignidade social e são iguais perante a lei, ninguém podendo ser privilegiado, beneficiado ou prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de raça, sexo, ascendência, língua, origem, religião, condições sociais e económicas ou convicções políticas ou ideológicas.»

O «mandado de optimização» constitucional demanda que o Estado – a todos os níveis da sua acção, nomeadamente no caso da Administração da Justiça – trate de forma igual e não discriminatória todos os cidadãos que se encontram em situações iguais a de outros concidadãos. A ter lugar qualquer tipo de discriminação, a mesma teria de ser uma «discriminação justa» para igualar pessoas e não para desigualar o que é igual. Isto é, admite o ajudar o pobre a ser rico como o rico; mas não ajudar o rico a ficar mais rico e o pobre cada vez mais pobre – a lógica da igualdade formal leva à esta situação de desigualdade social de facto. É o que nos ensina o Professor JOHN RAWLS na sua magistral Teoria da Justiça (RAWLS, J., A Theory of Justice, Harvard University Press, Harvard, Cambridge, MA, 1971, p.109 e segs). É neste sentido que o Concílio Vaticano II afirmou que «[...] embora haja desigualdades naturais entre os homens, a igual dignidade das pessoas exige que se atinja uma condição de vida mais humana e mais equitativa» (Concílio Vaticano II – Constituição Pastoral Gaudium et Spes [1965]).

A este propósito é particularmente importante referir a jurisprudência constante e incisiva do Tribunal Constitucional Português – que é análoga nos demais países europeus, v.g., Tribunal Constitucional de Espanha e da Alemanha – que avoca essa interpretação do princípio ou máxima da Igualdade [Artº.13º. da Constituição da República Portuguesa], em especial a veiculada no acórdão nº.186/90 de 06.06.1990 em que afirma:

«O princípio constitucional da igualdade do cidadão perante a lei é um princípio estruturante do Estado de Direito Democrático e do sistema constitucional global, que vincula directamente os poderes públicos e privados, segundo o critério da sua desigualdade». [...] O princípio da igualdade exige «[...] que aquilo que é igual seja tratado de forma igual [...]» e proíbe a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Em suma, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio».

Esta proibição do arbítrio é a proto-razão dos direitos fundamentais e postula o status negativus (ou «negative sense» of liberty, como diz ISAIAH BERLIN: «Two Concept of Liberty», in Four Essays on Liberty, Oxford University Press, Oxford, 1994, p.121; para uma definição ontológica e política de liberdade vide, por todos, GILLES LEBRETON, Libertés Publiques et Droits de L´Homme, Armand Colin, Paris, 1997, p.17 e segs.) de que fala JELLINEK (ZIPPELIUS, R., Teoria Geral do Estado, Gulbenkian, 2ª. Edição, Lisboa, 1984)

Nas palavras de CALSAMIGLIA (CALSAMIGLIA, A., Prólogo da edição espanhola de «Taking Rights Seriously», de Ronald Dworkin: RONALD DWORKIN, Los Derechos en Serio, Ariel, Barcelona, 1995, p.17.), «La garantia de los derechos individuales es la función más importante del sistema jurídico. El derecho no es más que un dispositivo que tiene como finalidade garantizar los derechos de los individuos frente a las agresiones de la maioria y del gobierno». O que quer dizer que devemos – sim, devemos; pois é de ordem axiológica – pedir e exigir mais a quem é «mais capaz», taxar mais quem tem mais, recompensar o mérito e apoiar as capacidades inatas dos cidadãos, independentemente da sua origem social ou «grupo» a que pertence; mas também quer dizer que, no plano das acções voluntárias, nomeadamente quando se comete um ilícito criminal – se deve tratar todos os cidadãos de forma igual.

O mérito e o demérito, o valor ou o desvalor da acção do cidadão – que em determinadas situações devem ser censurados de forma mais gravosa e noutras, como no caso, por exemplo, dos inimputáveis por anomalia psíquica, desconsiderado; neste último caso estamos perante uma situação que escapa à questão da igualdade formal. O que está em causa, em Direito, são situações em que ou não existirá «consciência da ilicitude» (em razão de uma qualidade que desiguala o cidadão dos demais) e tem um tratamento próprio no momento de determinação não da existência ou não do «crime» mas sim da censurabilidade.

Tirando essa excepção – existem outras excepções, essencialmente de ordem formal que são, na expressão de BERTRAND RUSSELL (RUSSELL, B., A Conquista da Felicidade, Guimarães editores, Lisboa, s/d), previligiae personae e que são próprios da estrutura do Estado de Direito (v.g., o Tribunal competente para julgar os mais altos magistrados da nação) – os cidadãos devem ser tratados de forma igual.
O que, sendo normal para manter os «mesmos satisfeitos» – como diria Bertrand Russell –, pode ter uma dimensão iníqua quando cria desigualdades manifestamente injustas ou que possam levar à iniquidade ou à desigualdades sem suporte racional nesta sede discursiva; será o caso do Artº.198º. da CRCV que, a meu ver, cria uma «desigualdade injusta» que pode, em dadas circunstâncias, levar à impunidade. Nesta perspectiva podemos estar perante uma norma que, sendo formal e instrumentalmente constitucional, é materialmente inconstitucional (sobre normas constitucionais inconstitucionais vide, por todos, OTTO BACHOF, Normas Constitucionais Inconstitucionais? Atlântida, Coimbra, 1977).

É matéria para os Senhores deputados, quando estiverem a pensar na revisão da Constituição, reflectir «cum grano salis» pois esta norma cria disfunções consideráveis no exercício do poder jurisdicional, nomeadamente no exercício da acção penal – na verdade, a meu ver, viola ostensivamente o Princípio estruturante da separação dos poderes – e cria desigualdades infundadas entre os cidadãos e os membros do Governo.
É que os membros do Governo não deixam de ser cidadãos como os demais – os «privilégios» não podem ir ao ponto de se ter o sistema judicial «amarrado» e/ou «refém» do poder político, como acontece com o enunciado constitucional: Artº.198º. da CRCV que tem (deveria) ter uma interpretação sistemática de acordo com a Constituição. Daí ser absolutamente imperioso o Procurador da República se pronunciar sobre esta matéria – na Assembleia Nacional ou não – deve fazê-lo. Mas deixemos esta questão para outras núpcias…

ROBERT ALEXY diz-nos que só «Se llega a una vinculación concreta del legislador sólo si la formula “Hay que tratar igual a lo igual y desigual a lo desigual” no es interpretada como exigencia dirigida a la formula lógica de las normas mas sino como exigencia a su contenido, es decir, no en el sentido de un mandato de igualdad formal sino material». [..] «La igualdad material conduce, pues, necessariamente a la cuestión de la valoración correta y, con ello, a la cuestión de qué es una legislación correcta, razonable o justa» (ALEXY, R., Teoria de los Derechos Fundamentales, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1993, p.252 e seg).
Isto é, a Justiça – aqui no sentido de estrutura do Estado de aplicação do Direito e da Justiça – deve, tem de, tratar todos da mesma forma: ou há lugar a pratica de um ilícito criminal e deve-se ser perseguido por isso ou então não se praticou o mesmo e deve-se ser deixado em paz e tranquilidade. Não é, afinal, o que deseja qualquer cidadão? Ninguém, diz-nos o princípio da igualdade, está acima da Lei – todos, na República, são súbditos das suas normas e dos valores que a enformam. Mas a Constituição, «com o silêncio cúmplice da lua» (VIRGÍLIO, Eneida, II. 255) e demais mortais, parece dizer-nos no seu Artº.198º. que os membros do Governo «são mais iguais» que os demais cidadãos...

Vejamos o que diz a Constituição no seu Artigo 198º (Responsabilidade criminal dos membros do Governo):
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1. Pelos crimes cometidos no exercício das suas funções, os membros do Governo respondem perante o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos seguintes:

a) Tratando-se de crime punível com pena de prisão cujo limite máximo não seja superior a dois anos, cabe à Assembleia Nacional requerer ao Procurador-Geral da República o exercício da acção penal contra o membro do Governo e, indiciado este definitivamente por despacho de pronúncia ou equivalente, decidir se o membro do Governo deve ou não ser suspenso para efeitos de prosseguimento do processo;

b) Tratando-se de crime punível com pena de prisão cujo limite máximo seja superior a dois anos, cabe à Assembleia Nacional requerer ao Procurador-Geral da República o exercício da acção penal contra o membro do Governo e indiciado este por despacho de pronúncia ou equivalente transitado em julgado o Presidente da República suspenderá imediatamente o membro do Governo do exercício das suas funções para efeitos de prosseguimento do processo.

2. Pelos crimes cometidos fora do exercício das suas funções, o membro do Governo responde perante os tribunais comuns, observando-se o disposto nas alíneas a) e b) do número anterior.

A leitura é clara! In claris non fit interpretatio. Assim se consegue começar a perceber, como questionava um destes dias um cidadão cabo-verdiano, porque é que – na sociedade cabo-verdiana – nunca ninguém com responsabilidades políticas ou com peso social é julgado («condenado» na mente do cidadão…) pelos crimes de que se eventam indícios?

Para percebermos esse fenómeno, resulta necessário atentarmos – de forma breve – na estrutura da Justiça penal cabo-verdiana. O sistema de administração da Justiça tem os seguintes elementos estruturantes:
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(a) Os Juízes – ao nível das várias instâncias e individualmente independentes;
(b) O Ministério Público – representado em todas as instâncias, tendo como o Procurador Geral da República como representante máximo da instituição com uma estrutura hierarquizada;
(c) Os Advogados;
(d) As Autoridades judiciárias policiais – que fazem, em regra, a investigação sob tutela do Ministério Público e
(e) Os Funcionários Judiciais. Todos têm papéis específicos no sistema de administração de justiça.

O crime, em regra, começa pela «notícia» do mesmo – seja por auto de notícia, denúncia, queixa, auto de transcrição de facto (v.g., o feito pelo Juiz ou pelo Ministério público quando, no exercício das suas funções se depara com factos que podem, «indiciariamente», consubstanciar crime) ou por facto conhecido, público e/ou notório para além do flagrante delito.
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No caso dos membros do Governo, por via do enunciado no Artº.198º. da CRCV, tem de haver uma iniciativa parlamentar para os mesmos serem sujeitos ao procedimento criminal… Tenho o facto chegado ao conhecimento do Ministério Público ou das autoridades judiciárias, é aberto (deve ser aberto) um Inquérito. Este inquérito segue trâmites próprios: constituição de arguido, interrogatório de arguido, inquirição de testemunhas e produção de outras provas e, a final, se propalará um Despacho de (a) uma acusação ou (b) o arquivamento; nalguns casos particulares o processo pode ser suspenso, mas para acabar por terminar numa ou noutra situação.
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O Artº.198º. da Constituição de 1992 criou um regime «especial» para os políticos membros do Governo – sujeitando a «escrutínio ou autorização prévia» da Assembleia Nacional o exercício da Acção penal contra os mesmos…

O Inquérito é sempre dirigido e coordenado pelo Ministério Público que, enquanto defensor do interesse público e detentor da Acção penal, marca o passo ou o ritmo da investigação. Pode, inclusive, «esquecer» o processo até este prescrever – note-se que falamos em tese – por culpa própria ou do «staff» judicial que assessora o Ministério Público; pode até não ser por «culpa» (dolo [porque assim o deseja] ou negligência) mas por mera contingência administrativa. Note-se, no entanto, que as vítimas e/ou os seus representantes têm posições processuais consideráveis que podem utilizar para evitar situações desta natureza. E não podemos esquecer a Lei de Murphy

Mas porque é que, além da possibilidade aventada, é que um processo «não anda», parece estar «esquecido» e, não raras vezes, prescreve? Perguntar-me-ão. Além da «especialidade» para os membros do Governo – que gozam de privilégios exorbitantes da racionalidade – há que atentar noutros aspectos.

O Juiz, em regra, tem um papel passivo – somente quando o processo lhe chega às mãos, remetido pelo Ministério Público, é que pode se pronunciar sobre ele, seja para aplicar uma medida de coação seja para se pronunciar sobre uma acusação, aceitando-a para proceder ao julgamento ou não. Serão raros os casos em que um processo prescreve por causa (negligência ou inércia) imputável ao Juiz – ainda que, em regra, os processos prescrevam já nos tribunais e não sede de Inquérito dirigido pelo Ministério Público.

No que concerne ao Ministério Público, as coisas passam-se de modo diferente – tem, ao contrário dos juízes, uma estrutura hierarquizada com Procurador Geral da República (de nomeação política) no topo da hierarquia. Enquanto a magistratura judicial tem a função de exercer o poder do Estado a fim de sancionar e reeducar os cidadãos que violam bens jurídicos protegidos (cometem crimes), a do Ministério Público é de zelar pelos interesses colectivos executando aquilo que é a «política criminal» definida pelo Estado – Assembleia Nacional; o que, nalguns casos – quando existem maiorias que permitam alterar as leis penais –, quer(erá) dizer as políticas do Governo. Será o caso – é assim desde sempre em Cabo Verde – do nosso país em razão das maiorias parlamentares que temos vivido. Note-se que não digo que o Ministério Público age objectivamente assim, mas que, em tese e em termos de sistema e da sua realidade política, a situação é esta.

Isto, o Ministério Público pode – na senda de cumprir com as directivas de execução da «política criminal» do país – privilegiar e/ou dar prioridade a investigação de determinados crimes em detrimento de outros. É uma questão complexa e controversa, discutida em todos os países com a mesma matriz de Justiça penal e que encontra(rá) solução adequada, na minha opinião, numa maior autonomia do Ministério Público em relação ao poder político.
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É matéria para a sociedade civil e os senhores Deputados reflectirem; até porque foi pensada numa matriz penal com vista a determino sistema político que, como já se viu, nunca, até agora, se cumpriu em Cabo Verde em razão da vontade popular nas urnas: tem-se privilegiado maiorias consideráveis, não dando espaço a leis discutidas num parlamento multicolor que obrigue a coligações…

Mas, se calhar – ao ver-se as controvérsias e dificuldades de se encontrar consensos para se alterarem normas de carácter reforçado, como no caso do Código Eleitoral – o povo é que tem razão e dá (tem dado) um pontapé na ciência política…

O Ministério Público, enquanto executor da política criminal do Estado, faz ou fará as suas escolhas legítimas elegendo esta ou aquela linha de investigação, dando prioridade à investigação deste ou daquele tipo de crime. O que entende(rá) sempre que, em razão da escassez de meios ou o uso racional destes, se faça esta ou aquela escolha; por exemplo, dando prioridade à investigação de crimes contra:
(a) as pessoas (homicídios, ofensas corporais graves, tráfico de pessoas, violência doméstica…),
(b) o património (roubos, furtos…),
(c) crimes de perigo (tráfico de estupefacientes, fogo posto, dano contra a natureza [morticínio das tartarugas, v.g.], poluição, propagação de doença [do HIV, por exemplo]…),
(d) autodeterminação ou liberdade sexual (abuso sexual de menores, violação…)
(e) identidade cultural (genocídio, discriminação racial, sexual…),
(f) contra a paz pública (terrorismo, associação criminosa, apologia à prática de crime…),
(g) contra a soberania (espionagem, traição…),
(h) contra a realização do Estado de direito (Incitamento à guerra civil ou à alteração violenta do Estado de direito, Ultraje de símbolos nacionais…)
(i) cometidos no exercício de funções públicas (corrupção, abuso de autoridade…) entre outros, em especial todas as formas de crime organizado, que têm um carácter especialmente danoso na sociedade.

Nomeei estes tipos de crimes – como exemplo de um vasto universo – somente para se ter uma noção da complexidade e extensão de crimes que o Ministério Público tem de atentar e entendermos que, naturalmente, tenha de fazer opções – dentro daquilo que é a «política criminal» definida pelo Estado. Mas tais opções não podem, nem devem, ter como consequência sistemática a prescrição de crimes em processos de outra ordem – que tutelem outros valores ou bens jurídicos protegidos.

Assim é por duas ordens de razões.

(1) A primeira é que cria um espaço penal de impunidade que acaba gerando descontentamento social generalizado ou «alarme social»; revelando o Estado um desinteresse ilegítimo e ilícito na tutela de determinados bens jurídicos.

(2) A segunda razão é de ordem da dignidade dos cidadãos que ao verem um processo contra si prescrito ficam com o anátema ou o odioso de não ver as suas razões serem escrutinadas pela administração da Justiça; que não é, necessariamente, a Justiça – ainda que o deva ser.

Em Cabo verde, o povo – ou parte dele, segundo tem vindo a público nos media há algum tempo –, pensa que os processos contra os políticos ou pessoas com «peso social» estão condenados à prescrição ou a não ter tratamento adequado pelo sistema judicial. Esta situação é, por si mesma, insustentável – ofende, describiliza as magistraturas (sendo certo que a questão se coloca(rá) mais na esfera do Ministério Público e das demais autoridades de policia criminal – mas o povo não distingue uma coisa de outra…) de uma forma intolerável e afrontosa.

O que fazer? - perguntar-me-ão.

Todos podem fazer alguma coisa; uns mais do que outros, é verdade – mas todos podem; alguns até devem alguma coisa para mudar esta situação. Em primeiro lugar, o Procurador Geral da República deve(ria) ser chamado à Assembleia Nacional para explicar as eventuais faltas e/ou omissões do Ministério Público que tanto se propala e que bule como a honra externa da entidade. Com uma grande dose de injustiça no que diz respeito aos ilícitos cometidos por políticos; mas, por isso mesmo, deveria esclarecer os cidadãos!

Se os Deputados da nação não o fizerem (chamar o Procurador Geral da República para explicar estas situações), os cidadãos podem recorrer ao Direito de Petição nos termos do Artº.58º., nº.1 e 2 da Constituição de Cabo Verde e do Artº.2º. da Lei 33/V/97 de 30 de Junho (Lei da Petição) para efeitos do e Artº.19º., nº.1, alínea h) e i) da Lei de Petição. Esta é a parte em que o cidadão pode intervir e dizer «presente» – estou aqui; pois é universal, livre e gratuito (Artº.4º., 5º. e 6º. da Lei da Petição) …
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Claro está que, em razão da dimensão do parlamento cabo-verdiano e da responsabilidade dos Deputados perante matéria tão importante, nunca será preciso recorrer-se a este mecanismo. Seja como for, o povo merece uma explicação ou justificação dessas razões ou sem razões que se propalam publicamente – a Assembleia Nacional é o local indicado para, sem pruridos, se esclarecer estas matérias.

A democracia, funcionando assim, tem uma dimensão bela – e um povo que age assim mostra, também, como é belo, como é atento e merecedor de bons governantes e de bons curadores da coisa pública, nomeadamente da legalidade. Cada um deve saber guardar a sua virgem… é nestes momentos, como disse já neste fórum, que o povo substitui os deputados na iniciativa da discussão pública – migra do centro da cidadania popular para o interior do parlamento – e realiza o ideário democrático. É esse o espírito do Artº.58º., nº.1 e 2 da CRCV.

É um momento diáfano em que os cidadãos têm a «iniciativa parlamentar» mediata e se tornam «iguais» aos Deputados. Mas, mais do que isso, o que faz é escrutinar – em sede de discussão parlamentar dos seus representantes e de audição de quem de dever – a «razão das coisas» sem ninguém a alijar responsabilidades.

A verdade, então, ganha forma.

O país precisa de saber, de uma vez por todas, se tem uma justiça para os pobres e os «remediados» e outra para os políticos, ricos e poderosos. O que, em verdade, deve ser esclarecido pelo Procurador Geral da República e quem os parlamentares entenderem auscultar ou inquirir na Assembleia Nacional – seja em sessão plenária seja em Comissão de Inquérito. Mas, naturalmente, que esta matéria tem dignidade bastante e exige transparência (lembram-se da mulher de César?...) par ser tratada em plenário.

Seja como for, o povo e a transparência democrática agradecem… Mas, atenção: a Justiça não pode ser «sacrificada» quando os Magistrados têm, em regra:
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(a) condições de trabalho sofríveis;
(b) falta de meios adequados ao combate a uma criminalidade cada vez mais organizada e violenta;
(c) remunerações indignas para a função desempenhada;
(d) têm um sistema judicial «coxo» com a falta do Tribunal Constitucional e de
(e) um Supremo Tribunal de Justiça provido de todos os Juízes que a Constituição enuncia;
(f) que o Estado prescinda de Magistrados para outros órgãos do Estado quando são precisos nos Tribunais e
(g) Magistrados que migram ad aeternum para o sector privado ou que
(h) não tenha mecanismos de garantia para o retorno dos formandos no Centro de Estudos Judiciários em Lisboa (com a afronta de ser o poder político a seleccionar os mesmos) em face de uma Lei de imigração portuguesa (nova) que facilita a sua permanência legal em Portugal;
(i) e, em verdade, estar de «mãos amarradas» pela Constituição no que concerne à determinada categoria de cidadãos – os membros do Governo (cfr. Artº.198º. CRCV).

Note-se que a «desigualdade de situação» do governante em relação ao cidadão não é, de todo, sobreposta à (des)igualdade material entre todos os cidadãos – ademais a mesma cria, objectivamente, situações de injustiça ou poderá dar abertura ou lugar à impunidade.

A isso, às limitações estruturais do sistema, o povo não atenta – nem deve (as eleições são o momento adequado para julgar essas faltas e omissões do Governo e da oposição); o que deve é exigir que a Administração (Governo) e a Assembleia Nacional (isto é, os partidos políticos com assento parlamentar) cumpram com a Constituição e os seus princípios fundamentais e dêem às magistraturas todas as condições de trabalho – em termos qualitativos e quantitativos – para que os processos não prescrevam de forma sistemática, como se eventa, e se tenhamos uma justiça mais célere.
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É a consciência cívica ou de Justiça a funcionar; mas deve funcionar bem, de forma esclarecida e objectiva, sem personalizar em qualquer pessoa ou entidade(s) as responsabilidades – para não perderemos o norte das coisas e reclamarmos o céu quando o que podemos ter, na realidade real, é tão somente momentos felizes.

Por mim – e só por mim, entendo, que a norma do Artº.198º. da CRCV deveria ser alterada numa próxima revisão da Constituição de forma a «igualar» os cidadãos e os membros do Governo perante o sistema judicial. Assim, creio, teríamos – neste aspecto particular, certamente – uma Justiça mais justa e igualitária. E isso – ao contrário de outros direitos fundamentais – não está sujeito à reserva do possível, é um mandato injuntivo que cabe cumprir.
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Mas uma pergunta me afronta a alma: porque é que os Senhores Deputados, perante uma norma que tão ostensivamente discrimina os cidadãos em razão de «situação» ou «posição» social nunca pediram a sua fiscalização abstracta sucessiva ao Tribunal Constitucional? O se mesmo se diga do(s) Presidente(s) da República e do Procurador Geral da República – deste e de quem o antecedeu neste quadro constitucional.

João Paulo II diz-nos que «Não é difícil verificar que no mundo actual despertou em grande escala o sentido de justiça...» Em nome de uma pretensa Justiça ou Bem, asserta, se limita a liberdade e impõe-se uma dependência total que contrasta com a essência de Justiça. «Este uso abusivo da ideia de justiça e da sua adulteração na prática demonstram que a acção humana pode afastar-se da justiça, até mesmo quando empreendida em seu nome» (Encíclica «Dives in Misericordia» de João Paulo II [1980]). É que devemos, como nos diz POSSENTI, atentar no Bonum honestum (POSSENTI, V., «La Ripresa del Programma Liberale (Considerazioni su «Una Teoria della Giustizia» di J. Rawls)», in O Direito, Ano 122º., Lisboa, 1990 III-IV [Julho-Dezembro], p.226); isto é, procurar sempre um «bem objectivo» que realize a Justiça justa, não somente para alguns privilegiados ou bafejados pela sorte mas para todos.

Não corramos o risco de ver cumprido – na voz do povo cabo-verdiano, da realidade ou de seja quem for – a «profecia» de Lermontov (Lermontov, «Prophet», 1815)
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«Since that time when the highest court
Had given me the prophet's vision,
In eyes of men I always caught
The images of sin and treason.»
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Creiam-me, nos olhos dos homens, das pessoas, existe isso tudo (Ah, a ingratidão…), mas também há mais e melhor – tente acreditar no «mais» e no «melhor» que podem dar… Afinal, em dignidade e valor como pessoa humana somos todos iguais; noutras, felizmente, a desigualdade natural impera. Por isso a humanidade já viu pessoas como Jesus de Nazaré, Ghandi, Mandela, Damien de Molokai, Madre Teresa, Picasso, Mozart, Bellini, Maria Callas, Enrico Caruso, Alexandre Magno, Aníbal Barca, Napoleão, Cícero, S. Thomas More, Homero, Shakesapeare, Dostoiésvki, Madre Teresa, Gelásio I, Origenes, Tenzin Gyatso, Da Vinci, Swami Prabhupada… Para falar de boas memórias que me ocorrem de momento; é que, muitas vezes – ou quase nunca – não olhamos para dentro de nós…
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Ouço e escuto a voz exortante do meu Mestre: «Ama o teu próximo como a ti mesmo.» Mas esta é a dimensão bela da igualdade. Invoco as palavras do poeta, clamando por um despertar da gente da minha terra amada («The Dream», Lermontov):

«And in a melancholy dream
Her young soul was immersed -- God knows by what.»

  • Publicação originária: Liberal on line de 10 Set,2007

  • Point of the Arches, Sea Stacks from Shi Shi Beach, Olympic Peninsula, Washington

  • HUMANA CONDITIO

1. A CULTURA E O HUMANISMO LIGHT

A cultura estética e a liberdade de expressão artísticas são, sem dúvida, direitos humanos: direito e liberdade fundamentais – pena é, nem sempre, serem, também, garantias para muitos.

Daí as censuras, as fathas, os falsos pudores, o tabelamento e universalização dos sistemas de ensino – tipo linhas de montagem – que castram o desenvolvimento humano, social e espiritual da pessoa. Os custos desta opressão cultural estão patentes em todos os quadrantes das sociedades modernas – são geracionais e transversais à comunidade humana.

Desde os primórdios da humanidade que o homem procura formas de representação estética da sua existência, procurando o mais humano da humanidade no que chamamos, hoje, de arte. Procura, na verdade, libertar-se de um jugo imposto por regras emergentes de almas caducas, míopes e com palas em redor do olhar.

Vivemos num tempo de abundância de tudo, até de uma abundante menoridade humana, de um humanismo light, fast e assente não na razão mas sim na lógica do coitadinho que só se vê e se escuta na tragédia.

Quando é preciso, não há problema: estamos preparados – dizem sempre. Para comboios humanitários ou pílulas de cultura, como se assim se resolvesse a falência cultural em que caímos como espécie socializada. Desde o poder usado – a revelia de todo o bom senso e com sacrifício da verdade – para satisfazer interesses laterais à lógica policial assente na magistratura do interesse, vale tudo.

O homem, sim, Ortega y Gasset, é ele e a sua circunstância, mas esta deve ser da sua razão esclarecida, de uma razão assente na cultura para o humano e que devia dizer, sempre, como Terêncio: Homo sum et nihil humani alienum me puto – “sou homem e nada do que é humano me é estranho”. É a razão que nos torna humanos e é a razão sustentada na cultura do humano que nos faz pessoas.

A falha cultural sustenta o humanismo fast e este vai, aos poucos, expurgando-nos da nossa humanidade, vai nos tornando cada vez mais alheios ao humano, ao sofrimento alheio, à solidariedade sustentada. Estamos a sujeitar-nos à uma forma sub-reptícia de Darwinismo espiritual invertido que nos estão a conduzir para uma espécie de Imperium das coisas sobre o humano e os valores que o sustentam.

Lembro-me – sempre que sou objecto de injustiça ou incompreensão – das palavras finais de Candido ao mestre Pangloss: “[…] continuemos a cultivar o nosso jardim” (Cândido, Voltaire). Então, perdoo a quem me faz o mal e me afronta; retribuir o mal seria ser duplamente vítima. E o nosso jardim é a nossa razão, a nossa alma ou espírito individual e/ou colectivo.

Douglas Family Preserve, Santa Barbara, California

  • HUMANA CONDITIO
Pensava iniciar, hoje, a publicação de um conjunto de textos sobre a condição humana. O primeiro seria sobre o A CULTURA E O HUMANISMO LIGHT, seria porque mudei de ideias. Não sobre inaugurar este espaço de reflexão, em torno das questões que afectam a condição humana, mas sobre o texto que o deveria fazer.

Assim, depois de trocar breves impressões com um amigo, resolvi repristinar um texto publicado no Liberal on line a 10 de Setembro de 2007 intitulado (DES)IGUALDADE E JUSTIÇA PARA TODOS. JUSTIÇA AMORDAÇADA?

É que as mesmas questões que então me preocupavam foram, de uma forma ou outra, também repristinadas. Deste modo, inicio este espaço com um texto que serve de exórdio à HUMANA CONDITIO, seguido de outro sobre a (des)igualdade, um dos problemas que mais afecta a humanidade e que tem múltiplas vertentes.

domingo, 11 de maio de 2008


Silenciei-me por amor
e gerei
qual Deus espalhando sémen sobre a terra,
um ribeiro de palavras subterrâneas
que dizem das flores
o que a chuva confessa aos amantes.

  • Imagem: El Príncipe Azul, Luis Royo

sábado, 10 de maio de 2008

  • O QUE ACONTECEU À «CIDADE ESTADO» DE S. VICENTE?
Ainda estávamos nas primícias do processo eleitoral autárquico em curso e Onésimo Silveira anunciou a ideia de construção de uma «Cidade Estado» para a Ilha de S. Vicente.

Passou já algum tempo, aproxima-se o dia das eleições e parece que a ideia soçobrou sem ter sido “oficializada” ou chegado ao escrutínio popular e dos adversários políticos.

É legítimo, então, perguntar: Será porque os autores da ideia chegaram à conclusão de que era politicamente sofrível e com perigos imanentes e latentes, além de promotora de um ilhismo básico e desnecessário? Ou terá o Primeiro Ministro e Presidente do PAICV – que esteve na Ilha do Monte Cara dias depois desta ideia vir a público – colocado “água na fervura” de antigos entusiasmos e esclarecido às bases do partido em S. Vicente que a pátria cabo-verdiana é una, que está junta sob o mesmo céu, sujeita às mesmas adversidades, às mesmas glórias da sobrevivência e que não existe espaço para cisões nacionalistas ou ilhistas?

Existem outras hipóteses, menos edificantes e serenas em termos de vida partidária interna. É estranho, mas o silêncio sobre esta matéria – de todos os candidatos – pode ter muitas leituras. Soa a tácito (?) pacto de silêncio, como se fossem obrigados a não falar por uma razão qualquer.

Ocorre-me a razão mais óbvia: a de que o povo de S. Vicente pudesse, de algum modo – principalmente os mais carenciados, isto é, a maioria – ser tentado e levado por essa ideia. O partido no Governo, o PAICV, não pode(ria) sustentar esta ideia de Onésimo Silveira e alguns dos seus militantes; por isso não pode dar-se ao luxo de discutir isso. Os custos de sustentar essa ideia (ainda que aparentemente benéfica em termos dos eventuais resultados imediatos) são/seriam politicamente incomportáveis para o Governo – mas nem por isso muito benéfica para a oposição.

As demais candidaturas também não têm interesse nesta discussão. Assim, a ideia, aparentemente, caiu no esquecimento – com a fugacidade de um pequeno meteorito. Será assim?

Não ficaria surpreendido se a ideia de Cidade Estado renascesse e, à última hora, fosse repristinada para as últimas alegações – quando os demais candidatos não puderem responder ou o próprio PAICV puder se demarcar da mesma, imputando-a à conhecida irreverência de Onésimo Silveira. A ver vamos… Mas uma coisa é certa: é, no mínimo, intrigante o porque da bandeira primeira da candidatura do ex-Presidente da Câmara Municipal de S. Vicente ter caído no esquecimento de todos.

É uma ideia da qual discordo de todo – como disse a seu tempo – mas que gostaria de ver discutida. A democracia é isso mesmo: discutir e confrontar ideias, concordemos ou não com elas. Silenciá-las não é a melhor forma de construir um futuro melhor; o tal “poema” novo para o povo das ilhas…

Ah, o défice de discussão pública – nomeadamente na comunicação social – destas eleições é um mau indicador da qualidade da democracia cabo-verdiana e da sua capacidade de promover a discussão de ideias e projectos perante os eleitores que não vêm, assim, a sua capacidade critica e de julgamento posta à prova.

Mas, afinal, de que têm medo os políticos e/ou as entidades promotoras de debates televisivos e radiofónicos? Que o povo saiba o que pensam ou não pensam os políticos e quais os seus projectos ou falta deles? A democracia de caciquismo e de campanhas de comícios armados de classe é coisa da pré-história (ainda que arma política considerável) – é preciso ir-se mais longe.


Colocar ideias sobre a mesa, mesmo que sejam sofríveis e coloquem em causa alguns paradigmas políticos e sociais é um passo em direcção ao futuro de uma sociedade mais aberta. O Futuro espera por nós – governados e governantes – estejamos ou não preparados para ele.

The ruins of Chichen Itza, Yucatán, Mexico

Chichen Itza, Yucatán, Mexico

  • Fotos: A antiga Cidade-Estado de Chichen Itza, Yucatán, Mexico.

The Neverending Sparkle, Luis Royo
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  • «Não são os povos que desejam a guerra, mas sim os seus líderes.» Ralph Bunche

  • MARTIN LUTHER KING IS AN 'UNSURPASSED ADVOCATE' OF UNITED NATIONS VALUES

United Nations Secretary-General Ban Ki-moon visited, last Thursday (8.05.2008), the Atlanta University Center and paid tribute to Rev. Martin Luther King, Jr. Viewing the original papers written by Rev. Martin Luther King, Jr. in Atlanta – the city which he called home – Ban Ki-moon said that the values he lived and died for are shared by the United Nations.

“Dr. King remains an unsurpassed advocate of all the United Nations stands for: peace, economic and social justice, and human rights” – Mr. Ban told an audience of dignitaries, students, faculty and members of the UN Association of the United States in the exhibition hall of the Robert W. Woodruff Library, part of the Atlanta University Center.

The Secretary-General said he was especially inspired by the enduring bravery of Rev. King and added that “I will leave here forever impressed by Dr. King’s courage” because “he could see the bridge between the terrible injustices in our world and the noble rightness that humanity can achieve. He spent his life building that bridge and marching across it, from despair to hope, from suffering to salvation, from war to peace and from hate to love”.

With Martin Luther King III and Rev. Bernice King – Rev. Luther King´s sons – in the audience, Ban Ki-moon praised the civil rights leader saying that it´s principles resonates at the United Nations and stands as a path to be followed: “As the United Nations strives to tackle the problems raging our world and to realize the principles in the Universal Declaration of Human Rights, we carry in our hearts Dr. King’s unending courage and his unbending conviction”.

The Robert W. Woodruff Library, at the Atlanta University Center, is the repository of Rev. King´s papers and a Meca for those who are interested in Martin Luther King´s thoughts. Viewing those papers, Ban Ki-moom remembered the link and friendship between Martin Luther King and Ralph Bunche, former United Nations Under-Secretary-General for Political Affairs who, in 1950, became the first African-American man to receive the Nobel Peace Prize.

Martin Luther King´s legacy is to be remembered every day, not only is marking days; as much as we must not forgot man like Ralph Bunche – of extraordinary importance on the process of decolonization of African countries and the implementation of a system of peacekeeping in the World – and others who, unfortunately, has been forgotten…

  • Video: Franz Schubert´s Avé Maria, Bono (U2) and Luciano Pavarotti