domingo, 28 de fevereiro de 2010

| O PODER CONSTITUCIONAL E AMBIÇÕES PRESIDENCIAIS

A Corte Constitucional da Colômbia, anunciou a 27 de Fevereiro de 2010 que a Lei 1354 de 2009 de 8 de Setembro que autorizou o referendo que permite a Alvaro Uribe, Presidente da Colombia, candidatar-se a um terceiro mandato presidencial (2010-2014) é inconstitucional; isto é, sofre de um desvalor constitucional e, logo, não é norma vinculativa. Uma decisão para ser lida, e para atentar. Mais uma lição de que o poder político, e não só…, está sujeito à Constituição e às regras do Estado de Direito Democrático, que a utilidade — objectiva ou subjectiva — não se sobrepõe ao império da Lei.
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---- Foto: Alvaro Uribe, Presidente da Colômbia



  • A UTILIDADE MARGINAL DA REMODELAÇÃO E MANUEL INOCÊNCIO
       Quem ler o blog do deputado Humberto Cardoso e atentar no texto A Cidade dos Eventos, e verificar que o novo Ministro do Turismo, Industria e Energia é Fátima Fialho, que detinha a pasta da Economia, fica a pensar… na utilidade marginal e na taxa marginal de substituição da remodelação governamental neste particular. Analogicamente, fico a pensar se o Primeiro Ministro não terá cogitado que Fátima Fialho não alcançou a utilidade marginal no seu desempenho ministerial. É que a Ministra da Economia viu as suas atribuições e competência diminuídas, com a avocação de parte das mesmas pelo Primeiro Ministro, com o Secretário de Estado Adjunto do Primeiro Ministro, Humberto Brito, a curar da Competitividade, Investimentos, Empreendedorismo e Desenvolvimento Empresarial. E nem o facto de ficar com a novel pasta do Turismo — é uma impossibilidade criar-se e efectivar-se uma política em nove meses, quando em nove anos não ocorreu ao governo curar do turismo — a salva de uma desqualificação ministerial.

       Carlos Veiga diz que é uma remodelação de cosmética — o que poderia ser ou será uma bela ironia. Mas a presente geração da sociedade cabo-verdiana é muito pouco dada a ironias e à sua compreensão. E como o líder do MPD sabe isso, não se pode ter tal como uma ironia. Não seria mais claro que José Maria Neves deixasse de esconder cartas na manga e entregasse estes sectores da Economia (Competitividade, Investimentos, Empreendedorismo e Desenvolvimento Empresarial) a Manuel Inocêncio, Ministro dos Transportes e Telecomunicações, que há poucos dias da remodelação dizia que o seu Ministério já cumpriu com o programa do Governo sob a sua tutela? Será difícil de adivinhar porque as coisas se passam desta forma, com política subliminar?

       Ademais, ficaria mal se Manuel Inocêncio, depois de dizer que já fez e cumpriu com a sua parte no Programa do Governo viesse, agora e assim de repente, a ficar com parte substancial competências da Ministra da Economia, Fátima Fialho (que continua «Ministra da Economia», mas de partes ou sectores da economia nacional). Além de outras razões que não vêm, agora, ao caso, alguém terá dúvidas de que será o Manuel Inocêncio o verdadeiro Adjunto do Primeiro Ministro nestas questões económicas (nomeadamente a Competitividade, Investimentos, Empreendedorismo e Desenvolvimento Empresarial)? É que não se pode, no que a Manuel Inocêncio diz respeito, deixar o homem sem fazer nada e, economicamente falando, uma taxa marginal de substituição dos ministros resulta, como diz José Maria Neves, uma «necessidade».

Imagem: Device for Making Sequins, Leonardo da Vinci


  • VOZES DE ATENTAR
     Os que encontram significações torpes nas coisas belas são corruptos sem sedução, o que é um defeito.
     Os que encontram significações belas nas coisas belas são os cultos. Para estes há esperança.
------ Oscar Wilde


Imagem: Confissão: Jean Louis Grieg

sábado, 27 de fevereiro de 2010


O MEU EL SHADAY
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Escutava o meu poeta:

«Ao ver-te, sentir a brutalidade da tua beleza,
o espasmo do meu desejo de ti
ordena aos ribeiros que se cruzam nos equinócios
para lavrarem uma lavra,
uma ponte de Arco Íris,
a rosa estufada de beijos
e deixarem os frutos de Libera para mim…»

E prescreve a Deus uma pílula da minha ciência:
escutar-me com a tua voz a dizer-te que te amo.
---- Virgílio Brandão

Imagem: O Poeta, Marc Chagall


O ESPELHO DE DORIAN GRAY PORTÁTIL

A superioridade moral das pessoas não se encontra no seu conhecimento e/ou nas funções que desempenham. Um espelho da nossa natureza, um Dorian Gray portátil, ajudaria a sermos mais humanos, mais capazes de sermos polícias e juízes de nós mesmos. A superioridade moral, porque é de dimensão objectiva e não subjectiva, está na bondade, na capacidade de descortinarmos — enquanto pessoas humanas e não meros homens ou mulheres, sementes e cultivadores da espécie —, o melhor do nosso semelhante, de não prejudicar o outro voluntariamente.

O Bem, a promoção da felicidade radical, é a manifestação do divino em nós. Um bom samaritano pára, faz o que deve fazer e segue caminho. Vai mas deixa a sombra e a manifestação do seu amor e da felicidade radical atrás de si. Dorian Gray e o Bom Samaritano… e chove para lá da minha janela. Uma multidão de poemas veio visitar-me.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010


  • MANIFESTO CONTRA SARAMAGO – EPISTOLA PUBLICA A JOSE SARAMAGO
    Já me solicitaram, por várias vezes, uma cópia em formato de leitura do texto Manifesto Contra Saramago — Epistola Pública a José Saramago em tempos publicado aqui e no Liberal on line. Satisfaço, aqui e de forma colectiva, os pedidos. Fica, agora, disponibilizado e em formato pdf, o Manifesto Contra Saramago — Epistola Pública a José Saramago.

Imagem: Jesus Cristo e Pôncio Pilatos — o "Julgamento"

  • OS (VERDADEIROS) MISERÁVEIS

          Num Mundo de maldade consciente e militante das instituições e dos que as corporizam, de indiferença carnívora dos bem-aventurados pelo sistema vigente de distribuição dos bens, como é possível nos admirarmos com o facto de pessoas boas se tornarem predadoras do outro em vez de construtoras do Mundo? Num mundo de miseráveis, Les Miserables, de Victor Hugo, é uma lição impossível, hoje por hoje, homo aeconomicus por homo aeconomicus, mão que lava a mão, até a limpeza total de todo o bem da sociedade. Dir-me-ão que «as coisas são como são», e que «as pessoas colhem o que semeiam», que tudo é acção e consequência. Em parte o Mundo é construído assim, assentirei.
.         Mas e quando não existe acção e existe consequência, injusta, construída pelo mal que não verga a consciência e transforma a mentira em realidade, infortunados em incapazes? A verdade, a final, acaba por ser a mais dolorosa de todas: o mal triunfa sobre o bem, como tem sido regra desde que Caim matou Abel e a Lei da Talião entrou na alma humana como a consciência da nudez em Adão e Eva. Mas o dia virá em que não será assim, o dia virá em que o mal terá a sua recompensa: boa medida, recalcada, sacudida e transbordante de bem-fazer o que couber na sua natureza. Um dia, a consciência do bem se fartará — e que fará? Pergunta retórica? Talvez.
          Jean Valjean não mudou o mundo, mas o Mundo mudou-o, desumanizou-o e renomeou-o: 24.601. O Mundo não tem alma, mas Javert tinha — a final e afinal Javert tinha alma. Esse, pois a alma dos Javerts de hoje compram-se e vendem-se nos pelourinhos de coisas e de afectos; o mercado dos futuros dos senhores das instituições. Tudo, até o sagrado sentido do bem, tem um preço, mesquinho, demasiado mesquinho; todos têm o seu preço, igualmente mesquinho: encontra o que o outro precisa e terás o seu preço. Ah, Albino Forjaz de Sampaio! Não é cinismo, não; é a verdade quase nua e crua. A nudez, como tudo, tem a sua ocasião. Só quem nada precisa, só quem está disposto a prescindir de tudo é que não tem preço. O que é igualmente verdade. Já não há Javerts, de verdade. Mas quem não precisa de nada é um outsider deste mundo, e, cedo ou tarde, será crucificado, de uma maneira ou de outra. Deveria haver um rio puro, e almas igualmente puras nas convicções.
         Os verdadeiros miseráveis são os sem alma, os que, por mera fortuna ou preço de alma, comandam o Mundo. Condicionam mundo dos outros, os miseráveis? «Quem tem muito dentro de si pouco ou nada precisa do exterior» — dizia Goethe. E os maiores terramotos nascem de uma maldade, ou de um pensamento resolutivo. Tudo porque há miseráveis por aí, verdadeiros miseráveis de Fortuna cheia e consciência vazia. Dores de Libera, ambição de Pecunia. Les miserables, os outros, tinham as suas razões e, já bem dizia Burlamaqui, «a razão aprova, necessariamente, tudo aquilo que nos conduz à felicidade verdadeira». A felicidade radical — diz-me o meu poeta.

VOZES DE ATENTAR


O cúmulo da injustiça está em querer recompensa por realizar a justiça, Cícero.

  • ESCRUTINIO
«Nunca mostre a um tolo um trabalho incompleto...», diz um ditado judaico. Pelo que — infere e diz-me o meu poeta — a um sábio nunca deverá ser entregue um trabalho completo. Quid veritas? Cá para mim é tudo uma questão de escrutínio, e a paciência é como a justiça divina. Ou será a justiça divina que é como a paciência? Quid veritas?

Imagem: Coroação — Caravaggio

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010


  • O (DES) EMPREGO NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA E A APOLOGIA DO ESTADO ECOLÓGICO
A Administração Obama demonstra os seus ganhos na luta contra o desemprego. Não se venceu a crise, mas luta-se para isso, e demonstra-se os resultados dessa luta, os ganhos conseguidos. Tudo sujeito ao escrutínio e crítica do povo americano. É, também, uma boa notícia para os cabo-verdianos radicados nos Estados Unidos da América: a economia dá sinais de recuperação no plano do emprego (o investimento público anunciado pelo plano de recuperação económica começa a dar os seus frutos), o que é sinal de recuperação económica e de ánimo da América.

Quando é que verei tal demonstração, de forma tão clara e comparativa, em Cabo Verde? A demontração — que é do plano da transparência democrática — e não um plano em si, se bem que gostaria de ver um Plano Nacional de Desenvolvimento Económico e Social e uma nação mobilizada para o executar. Cabo Verde pode, se o desejar — pois tem, todas as condições para isso — ser um farol para o Mundo se decidir ser a primeiro Estado ecológico do Mundo. Sem visão o povo perece, lá dizia o profeta. Yes, we can!

| A PAZ SOCIAL CABO-VERDIANA

A Associação Pró-Praia promoveu um Movimento pela Paz que, como vem sendo habitual nestas manifestações cívicas, teve uma adesão aquém do esperado e desejado. Mas o que me faz escrever esta nota é a razão de ser da concentração e os aderentes à mesma. Noto que o Presidente da República, Pedro Pires, afirmou que «A luta social pela Paz é de todos e de cada um de nós. Começa na família e continua na sociedade, passando pela escola. A Paz social deve ser reassumida como um valor incontornável.» Concordo, sem reservas, com o Presidente da República. Agora, o facto do magno magistrado da nação e a Ministra da Presidência, Janira Hopffer Almada, e do Edil da capital do país, Ulisses Correia e Silva, se manifestarem em prol da paz social é prova acabada de que falta paz social à sociedade cabo-verdiana. La Palisse não concluiria melhor.

Mas porquê é que falta paz social à sociedade cabo-verdiana? — perguntar-me-á. As razões estão aí, para todos verem. Não vale a pena estar chover no molhado, em cursos de água a arrebentar. Mas estas razões são o efeito visível do mal-estar social que tem causas, e muitas delas profundas e estruturais, que devem, principalmente, ser atacadas na sua raiz e não com meros paliativos.

No que concerne ao Presidente da República, que reconhece este mal-estar social, bem lhe fica aderir a estas acções sociais, mas, em razão da função que ocupa, bem seria que fosse mais longe e, usando do seu magistério presidencial e de primeiro cidadão da República, fizesse uma comunicação à nação cabo-verdiana e às instituições republicanas que têm o dever de encontrar a panaceia que a situação exige. Levará tempo — que ninguém pense que existem e existirão soluções milagrosas para este e outros problemas do país —, mas o maior dos problemas conexos com esta problemática, a violência, pode e deve ser debelada de forma integrada até ser erracidade como um vírus indesejável. A violência é o dengue social, e demanda acção concertada de todos para erradicar as suas causas — matar o mosquito foi a solução?

O problema é que não temos um sistema social para lidar com a violência, assim como não temos um sistema de protecção civil e social adequado às realidades do país, nomeadamente a insularidade e os custos naturais da mesma. Temos fragilidades, umas naturais e emergentes da estrutura económica nacional, outras que têm e terão a ver com a (inadequada) gestão de recursos e a ausência de uma visão mais alargada da nossa realidade projectada no futuro. São, ainda, problemas estruturais e que representam um desafio à sociedade no seu todo, pelo que o Presidente da República deveria ser mais activo nesta questão e fazer a sua parte — até porque não tem os constrangimentos de ter de pensar numa reeleição.

E nem me digam que tal iniciativa tem dimensão preventiva, pois as trancas que se colocam na(s) porta(s) espelham uma realidade eu não dá para enganar. De todo o modo, todas as iniciativas pela paz — como esta da Pró-Praia — são bem-vindas e louváveis. Pena é a sociedade participativa que se diz existente em Cabo Verde ser de Tabanca, Funanã e Carnaval e quejandos que não de gritar basta! aos males que a afrontam. Um dia o povo perceberá que a paz social não é um bem adquirido e irreversível, pois a paz social social conquista-se todos os dias. E eu aqui, com saudades do Mindelo e do carnaval! Sim, de brincá m’ascrinha de cu pelôd y um data d’cosa ke m’djor e um f’ka calod

Imagem: The Return of the Flame — René Magritte

| A MARTURBAÇÃO E LEITURA DE CARNAVAL

É carnaval. Choveu imenso em Lisboa. Passei grande parte dia a escrever e a ler a tese de mestrado de Fazıla Derya Agiş (Fazıla Derya Agiş: A Comparative Cognitive Pragmatic Approach to the Judeo-Spanish and Turkish Proverbs and Idioms that Express Emotions, Ankara, 2007). Uma tese interessante, com metáforas e analogias deliciosas. A de Kövecses (idem, p.29) é particularmente esclarecedora: «Emotion is a fluid in a Container». Mais adiante, o autor diz «El amor es un leblebi, entra por la boka, sale por la nariz» (p.106) e, numa metáfora (¿?) existencial anota que «Love / affection begins with a kiss, and ends easily, if money lacks.» De um provérbio turco, em dois sentidos:
(Literal) «The nose does not fall from the face.
(Metaphorical) «A loved person can never be separated from her / his lover.»

Bem se poderia fazer alusão, neste plano, aos esquimós e — certamente — a juízos freudianos e ao «côcô polvo» mindelense. Mas a coisa pode ser bem mais simples, pois de e em metáforas e mitos vivemos. Tenho, muitas vezes, rido com a metáfora da masturbação intelectual que se usa na blogueria crioula. E resolvi, agora, deixar esta brincadeira de Carnaval, anunciando que os conteúdos para muitos considerados “adultos” e “eróticos” passaram a ser isso mesmo: “adultos”, “eróticos” e o que quiser chamar-lhes e estarão, doravante e para quem for adulto, aqui: cunnus. Ah, a tese de mestrado em causa tem muitas coisas que, claramente, estão presentes na sociedade cabo-verdiana. Será porque já fomos, também — como os lusos formais — espanhóis? Não sei, o que sei é que as mulheres masturbam-se mais do que os homens. Se tiver dúvida, pergunta e verá a surpresa que terá! E isto fica como expressão de liberdade e justificação da mudança. Afinal, como dizia Paulo, Libertas inaestimabilis res est. E assim morrem os momentos eróticos (que não artisticos, note-se!) por aqui...

Ah, para quem se interessar fica a hiperligação de download da tese de Fazıla Derya Agiş

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

| A IMPERFEIÇÃO DO HUMANO

As preocupações estéticas não são de hoje, são, na verdade, uma dimensão do mais humano que existe em nós. Os antigos egípcios, que no tempo de Amenofis IV (Akenaton) tinha uma dimensão realista da arte que influenciaria os conquistadores romanos de África, testemunham isso mesmo. O humano, nas suas dores, grandezas e vaidades é e sempre foi o mesmo. A natureza é assim mesmo — uma busca da perfeição perdida ou a busca da normalidade imposta pela sociedade? Será, provavelmente, uma e outra coisa.

Imagem: Prótese de um dedo de uma múmia do antigo Egipto.

| LO PERDIDO

¿Dónde estará mi vida, la que pudo
haber sido y no fue, la venturosa
o la de triste horror, esa otra cosa
que pudo ser la espada o el escudo


y que no fue? ¿Dónde estará el perdido
antepasado persa o el noruego,
dónde el azar de no quedarme ciego,
dónde el ancla y el mar, dónde el olvido


de ser quien soy? ¿Dónde estará la pura
noche que al rudo labrador confía
el iletrado y laborioso día,


según lo quiere la literatura?
Pienso también en esa compañera
que me esperaba, y que tal vez me espera.
------- Jorge Luis Borges, 1972

Imagem: Autoretrato Marc Chagall

  • O MEU POETA
A dor é como o deserto: cresce a cada dia, mesmo sem raízes. — diz-me o meu poeta.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

| IMPORTEMOS O ANTINEPOTISMO DO BRASIL

Quando era menino, estudando no Liceu Bedjo no Mindelo, um professor que tinha o mau hábito de beber cerveja na sala de aula enquanto comia uns pasteis de milho quentinhos, resolveu ensinar aos alunos uma regra que, na altura — assim como hoje —, me pareceu batota. E disse-nos que em situação de dúvida sobre a forma correcta de escrever uma palavra, deveríamos escrever das duas formas, e uma haveria de estar certa. O professor, ao fazer a correcção pensaria que o aluno redactor sabia escrever a palavra da forma correcta, somente se tinha enganado (um lapsus scribendi, diria hoje) na forma de escrever — sabia, pelo que a forma errada não poderia ser considerada erro. O professor corrigiria o erro, e o aluno ficava a saber como era a forma correcta. E não teria erro, a marca vermelha no caderno… esperteza mindelense, pois claro — dir-me-á. Mas será mesmo?

Cabo Verde, que copiou a solução brasileira para a extradição de cidadãos cabo-verdianos (com a lógica discriminatória de cidadãos nados e naturalizados) durante o processo de revisão da Constituição bem que poderia ter copiado, também, outras soluções, como, por exemplo, a do Salário Mínimo e a do acesso a cargos públicos como entendido pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil. Sobre este, deixo à consideração dos leitores de Terra-Longe a Súmula Vinculante nº.13 de 21 de Agosto de 2008 e do que dizem, e bem, os Ministros do STF (sobre a forma, parece-me ser desconforme com a lógica do Estado de Direito, mas isso é outra questão):

«A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função gratificada na Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.» Isto é, o Artº.37º. da Constituição Federal.

Copias selectivas, que dá jeito ao poder político e não povo? Se não é assim, parece. E, por vezes, o que parece é. E coisas há que parecem-se tanto com a realidade que não podem ser miragem mas realidade. Importemos, além das novelas, das sungas, do samba carnavalesco e a discriminação dos cidadãos pátrios as muitas coisas boas que o Brasil tem: importemos o Salário Mínimo, importemos o anti-nepotismo, já!

Para depois, para depois fica Deus. Um dia importaremos Deus, e poderemos dizer que Deus é cabo-verdiano. Teremos alegria a rodos, gás natural, ouro, petróleo, uma terra agrícola fértil e uma economia a crescer — como aconteceu com o Brasil: descobriu que Deus era brasileiro e deixou-o crescer, até ter idade para, agora, estar a trabalhar e a dar pão ao povo brasileiro e a outros que ainda não importaram Deus de algum lugar. Mas podemos começar, já, por agora, a importar o antinepotismo.

Andy Warhol — Still Life (polaroid exhibition)

VOZES DE ATENTAR...

O fim da Constituição radica mais na realização de valores do que na ordenação dos procediementos. Mauro Cappelletti

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

| O COMUNISMO SERÓDIO DE NELSON MANDELA E O HUMANISMO

A 11 de Fevereiro de 1990 Nelson Mandela saía da prisão, depois de décadas de encarceramento por motivos políticos. Há, exactamente 20 anos e um dia saia da prisão para dar uma lição de humanidade ao Mundo e, aos políticos, mostrar-lhes que o caminho não é a eternização no poder mas sim fazer o melhor que se pode para os cidadãos da nação nas circunstâncias em que estiver. A lição está aí, perene e uma espada para as consciências, para ser apreendida. Uma lição magna de vida de que os homens mudam, e são, no plano do ser, o que escolherem ser como pessoas.

Na sua juventude, ainda estudante de Direito, conheceu a teoria comunista — e se deixou seduzir pelo canto dos amanhãs que cantam — e, mais tarde, a Satyagraha, a teoria da não-violência e da resistência pacífica de Gandhi. Este dizia que «A força de um homem e de um povo está na não-violência» (parafraseava Plutarco: «a grandeza de um povo está na forma como enfrenta desgraça»), e, por isso, Tagore o denominou de Mahatma — grande alma.

A escolha de Nelson Mandela foi e era simples: entre o comunismo conquistador — que tinham uma dimensão opressora da liberdade da pessoa humana — ou um humanismo activo e não violento. Venceu, em Nelson Mandela, a consciência de um humanismo activo e democrático — pelo que a atitude de dar as mãos aos seus algozes, numa prova de que a acção deve acompanhar o discurso e de que devemos mostrar ao mal que não somos melhores do que os que o praticam mas somos e devemos, sim, melhores do que o mal, e compartilhar com eles o poder é de uma singularidade que chega a transcender a natureza humana e a sua relação com o poder.

Mas, além disso, Nelson Mandela também é o testemunho vivo de que se pode transcender a consciência política do socialismo democrático e o pseudo humanismo que sustenta e, no plano político e social, trilhar um caminho mais humano e mais justo. Não é, assim, por acaso que há algumas décadas que se houve falar em capitalismo de rosto humano e até, num plano mais alargado, de política de rosto humano. Mas porquê política de rosto humano? Pressupõe esta asserção de que a política não é de rosto humano? Não, pois tal seria contra a própria política — como arte de governar, e bem governar. O que pressupõe é que os políticos governam de forma desumana, olhando para o seu umbigo e ventre anafado e não para a barriga, a educação e a cultura dos cidadãos cujos interesses governam.

A final, há que dizer que não se deve ter medo dos comunistas — como Churchill tinha, a ponto de elogiar o nacionalismo fascista italiano de Benito Mussolini, chamando a este «o maior legislador vivo», ou que levou à hedionda caça às bruxas no “democrático” Estados Unidos da América — mas sim pensar que, em dado momento histórico, muitos foram os homens bons que apoiaram o comunismo, o trotskismo, o nacional-socialismo, o fascismo e quejandos.

O homem de hoje é que importa, e não se tem de renegar nem esconder as origens para se ser o que almeja. A coragem de ser a soma de todas as coisas que vivemos é que faz o homem — não vale a pena querer-se ser super-homens, pois aí nasce o mal de todos os ismos. A grandeza de Mandela, e de todos os homens anónimos igualmente grandes, é não querem ser grandes, é não quererem ser mais do que os outros. Isso, sim, é humanismo. Mas há quem queira fica no passado, e no passado ficará. E isso, também, é humano. E isso, também, é liberdade; liberdade e crescimento, próprio da idade mental das pessoas.

Imagem: Nelson Mandela, no dia da sua libertação

| BOAS NOTÍCIAS DA TACV

Lisboa/Mindelo/Lisboa a partir de 30 de Abril. Ficamos à espera…

| GOZEMOS A VIDA, LÉSBIA...

V
Gozemos a vida, Lésbia, fazendo amor,
desprezando o falatório dos velhos puritanos.
A luz do sol pode morrer e renascer
mas a nós, quando de vez se nos apaga a breve luz da vida,
resta-nos dormir toda uma noite sem fim.
Beija-me mil vezes, mais cem;
outras mil, outras cem.
Depois, quando tivermos ajuntado muitos milhares,
vamos baralhá-los, perdendo-lhes a conta,
para que nenhum invejoso, incapaz de contar beijos tantos,
possa mau-olhado nos lançar.
------- Catulo

| A PROPOSTA DE CAÇA ÀS BRUXAS DE MÁRIO MATOS

Li, segundo publicado na FORCV on line, o comunicado de Mário Matos, Membro do Conselho Nacional do PAICV e Coordenador das Estruturas da Europa do PAICV e a que se seguiu o Comunicado da Região Política de Portugal do MpD, subscrito por Emanuel Barbosa (textos publicados aqui neste blog) e tenho, telegraficamente, de dizer o seguinte:

Mário Matos tem razão: as afirmações de Carlos Veiga, a serem verdadeiras, são graves — sendo certo que, também, provam que o então candidato presidencial teve bom senso em agir de acordo com o quadro constitucional e legal do país. É uma matéria para a história, em particular a história política do país e para a compreensão da dimensão da democracia cabo-verdiana. Mas os políticos colocam-nos demasiado no passado, e fazem-nos esquecer o futuro, tão distraídos que, como sociedade, ficamos no passado. E o que isto tem a ver com o futuro? Sim, o que Mário Matos pretende quando «exorta as instituições da República, nomeadamente o Governo e a Assembleia Nacional, a tomarem as medidas para esclarecer os fundamentos dessas graves afirmações do Líder do MpD, que podem manchar a imagem e o prestígio de duas importantes instituições republicanas e minar a confiança dos cidadãos nas mesmas»? Não escreveu o que escreveu, e na condição em que o fez, só por fazer.

Da acção do Governo, das suas «medidas», só quererá dizer a instauração de inquéritos — eventualmente a descambar em processos disciplinares — sob a égide do Ministério da Defesa e do Ministério da Administração Interna para saber quem se prontificou para «sair à rua» com Carlos Veiga e, assim, se proceder à uma caça às bruxas no seio das instituições cuja honra Mário Matos se faz paladino mas que é, em última análise, uma defesa boomerang que, a final, só prejudicará os defendidos? A utilidade, de todo, só poderia ser essa.

O mesmo se diga da intervenção da Assembleia Nacional. Quererá, como sugere subliminarmente, que se faça uma Comissão Parlamentar de Inquérito para sindicar as palavras de Carlos Veiga e, assim, condicionar, no plano do discurso e da acção, o Presidente do MPD neste período pré eleitoral e, ao mesmo tempo, procurar caçar aqueles que terão — muito provavelmente como cidadãos e não como militares e agentes de autoridade — se solidarizado com o candidato presidencial derrotado nas circunstâncias consabidas.

E o Mário Matos tem razão, e concordo com ele na plenitude das suas palavras: devemos defender as instituições da República de quaisquer ataques à sua probidade. E, como o mesmo diz no seu artigo no ASemana on line, «No nosso sistema político, fundado num sistema de partidos, são eles a formar a vontade política.» Isto é, os partidos políticos, enquanto instituições, são fundamentais para a nação. Assim, não percebo porque o mesmo Mário Matos não apareceu a defender a honra dos partidos políticos quando o Presidente do PAICV e actual Primeiro Ministro, José Maria Neves, disse que os partidos políticos em Cabo verde estavam ligados ao narcotráfico. Se o tivesse feito, podendo e devendo fazê-lo — até porque era Secretário Geral do PAICV por essa altura —, perceberia a sua indignidade e a dimensão ética da mesma.

Isto sim, foi uma ofensa gravosa às instituições que, do seu ponto de vista, estão destinadas «a formar a vontade política». A vontade política da nação, para que se saiba, é formada pelas instituições democráticas da nação — o Parlamento, o Governo e o Presidente da República democraticamente eleitos. Os partidos políticos são meros mediadores institucionais, e não criadores da vontade política do Estado — deixou de ser assim com a revisão da Constituição formal de 1980 em 1990, mas o Mário Matos ainda continua a pensar pela mesma cartilha ideológica do Estado/Partido, sendo este o órgão dirigente da nação. Fica claro, e compreensível.

Pelo que, neste plano discursivo, a resposta constante do Comunicado da Região Política de Portugal do MpD é inócua do ponto de vista político. Todos os planos — os verdadeiros — têm, ao menos, um plano dentro do plano. E não me parece que se deva procurar vítimas entre as Forças Armadas e a Polícia Nacional, e se se deve procurar responsabilidades, as competências de tal empresa não são nem seriam do Governo e da Assembleia Nacional mas sim do foro judicial pois estar-se-ia — na mente dos agentes de autoridade e dos militares — uma subversão do regime democrático. A questão é bem mais complexa e está ser vista com demasiada leveza.

Esta nota é mero exórdio do que está em causa no plano político, mas agora tenho de prestar atenção ao programa Palavras Cruzadas da RCV. Talvez volte à esta questão…

Imagem: Ambrogio Lorenzetti — Alegoria do Bom Governo (A Magnanimidade, a Temperança e a Justiça), Siena, Palazzo Pubblico, Sala dei Nove.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

| MOMENTO ZEN

Perderei a minha utilidade no dia em que abafar a voz da consciência em mim – Gandhi

Imagem: Adriana Lima

| COMUNICADO da Comissão Política Regional de Portugal do MPD

"A Região Politica de Portugal do MpD, com algum espanto, viu-se, ontem, confrontada com um comunicado, divulgado pelo PAICV, assinado pelo Sr. Mário Matos, cujo propósito único é o de tentar reduzir o impacto do encontro entre o Dr. Carlos Veiga, presidente do MpD, e estudantes cabo-verdianos, em Lisboa. Desorientado com os resultados da reunião, o Sr. Mário Matos quis apenas, embora o não vá conseguir, lançar a confusão e a discórdia no seio da nossa diáspora, em Portugal.

Outro propósito por detrás do qual se esconde o Sr. Mário Matos é o de tentar criar um facto político para desviar as atenções dos Cabo-verdianos dos assuntos que verdadeiramente lhes interessam e cujo governo do PAICV, que ele defende, ferrenhamente, não consegue dar respostas, tais como o desemprego, a segurança, o endividamento público excessivo, o défice elevado, o crescimento da economia aquém do expectável, etc, etc.

Sem hesitação, afirmamos, claramente, que estamos do lado do nosso líder, Dr. Carlos Veiga, porque é sobejamente conhecido que, de facto, houve fraude nas eleições Presidenciais, tanto de 2001 como de 2006, tendo na de 2001 ficado provado nos tribunais com julgamento e condenação de alguns dos envolvidos.

Outro dado que não se pode escamotear é que o Dr. Carlos Veiga teve sentido de estado, que lhe é reconhecido tanto a nível nacional como internacional e colocou, como sempre fez, os interesses de Cabo Verde, em primeiro lugar. Todos nós sabemos que o povo votou, livremente, o Dr. Carlos Veiga nas presidenciais de 2001, mas que a máquina da fraude não o deixou festejar e ver na Presidência o político que lá gostaria que estivesse.

O PAICV, como é o seu hábito, na tentativa de lançar confusão para esconder a sua incapacidade de governar Cabo Verde, está contra a reunião do Dr. Carlos Veiga com os estudantes, em Lisboa. Aliás, diga-se de passagem, foi um encontro bastante profícuo, onde foram abordadas diversas matérias, no fim do qual ficou a nu a governação sem norte deste governo.

Nesta reunião, ficou claro, também, que existem problemas de fundo relativo à política de Ensino Superior seguida pelo PAICV e o seu governo, os quais deveriam engajar-se fortemente na solução dos problemas dos estudantes, ao invés de entrarem no campo da demagogia e da politiquice, com o qual pretendem deitar areia aos olhos dos Cabo-verdianos.

Queremos afiançar ao Sr. Mário Matos que o seu comunicado, falho de sentido e de responsabilidade políticas, não chegou para tirar o brilho ao encontro do Dr. Carlos Veiga com os estudantes de Lisboa. O seu intento não foi cumprido, porque a razão está do lado do Dr. Carlos Veiga e do MpD, que juntos irão ganhar as próximas eleições legislativas e colocar Cabo Verde de novo no caminho certo."

Pela Comissão Política Regional de Portugal
Emanuel Barbosa

| COMUNICADO da Coordenação das Estruturas da Europa do PAICV

«Num encontro com estudantes universitários, realizado no dia 6 do corrente na Universidade Lusófona em Lisboa, o Líder do MpD, Dr. Carlos Veiga, terá afirmado que, nas eleições presidenciais de 2001, foi vítima de fraude eleitoral e que recebeu telefonemas de elementos da Polícia e das Forças Armadas, disponibilizando-se a “ir para a rua” com ele e que só não aceitou a oferta porque é um democrata e coloca os interesses da Nação acima dos interesses pessoais.

Estas graves afirmações têm sido reiteradamente feitas pelo Dr. Carlos Veiga, em vários espaços da diáspora, no seu afã de se apresentar junto dos cabo-verdianos como vítima de fraude eleitoral e verdadeiro ganhador das eleições presidenciais de 2001 e de 2006.

O processo eleitoral cabo-verdiano tem sido considerado por observadores, políticos e investigadores, nacionais e internacionais insuspeitos, como exemplar e que orgulha os actores políticos e a Nação. Tem decorrido no estrito respeito pela legalidade, com isenção, equidade, rigor, transparência e justiça, próprios de um verdadeiro Estado de Direito Democrático.

As afirmações do Dr. Carlos Veiga lançam graves suspeitas sobre duas instituições da República – a Polícia Nacional e as Forças Armadas - cujo comportamento e imagem de instituições respeitadoras e defensoras do Estado de Direito Democrático, são intocáveis porque exemplares.

Acto de tamanha gravidade, ganha contornos de irresponsabilidade, inaceitável num cidadão que desempenhou durante dois mandatos o elevado e nobre cargo de Primeiro-Ministro e é, actualmente, líder do maior partido da Oposição, apresentando-se como candidato a Chefe do Governo, nas próximas eleições legislativas.

A Coordenação das Estruturas da Europa do PARTIDO AFRICANO DA INDEPENDÊNCIA DE CABO VERDE, ciente de estar a interpretar os sentimentos dos militantes e amigos do PAICV e de qualquer cabo-verdiano defensor dos valores e ideais democráticos, exorta as instituições da República, nomeadamente o Governo e a Assembleia Nacional, a tomarem as medidas para esclarecer os fundamentos dessas graves afirmações do Líder do MpD, que podem manchar a imagem e o prestígio de duas importantes instituições republicanas e minar a confiança dos cidadãos nas mesmas.

A Coordenação das Estruturas da Europa do PARTIDO AFRICANO DA INDEPENDÊNCIA DE CABO VERDE, reitera a sua total confiança no processo de democratização cabo-verdiano, na fiabilidade, no rigor, legalidade, equidade e justeza do processo eleitoral, bem como a sua total confiança na Polícia Nacional e nas Forças Armadas, enquanto pilares da defesa do Estado de Direito Democrático.
Coordenação das Estruturas da Europa do PAICV
Mário Matos
Membro do Conselho Nacional do PAICV


  • VOZES DE ATENTAR…
«Infelizmente, somos democratas apenas na conversa». Lídio Silva, deputado da União Cabo-verdiana Independente e Democrática (UCID)

| 40.000 MOSCAS

Separados por una tormenta pasajera
nos juntamos nuevamente
Buscamos cuarteaduras en paredes y techos
y las eternas arañas
Me pregunto si habrá una mujer más.
Ahora
40,000 moscas recorren los brazos
de mi alma
cantando:
"I met a million dollar baby in
5 and 10 cent store"
¿Brazos de mi alma?
¿moscas?
¿cantando?
¿qué clase de mierda es ésta?
Es tan fácil ser poeta
y tan difícil ser
hombre.
------- Charles Bukowsky

Imagem: Um menino entrando na sua casa, algures.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

| O SILÊNCIO VOLUNTÁRIO E OS INOCENTES

Ouvia as convidadas do programa Espaço Público da RCV, Carmelita Santos — Directora Geral da Administração Pública, e Filomena Araújo, da UNTC-CS, a dissertar sobre o horário de trabalho único  da função pública quando um ouvinte do Sal entra em linha a queixar-se do trabalho escravo que acontece, segundo o mesmo, na Ilha do Sal e da necessidade de se investigar tal fenómeno. Terminada a sua intervenção, as convidadas, instadas a comentar o apelo emocionado e desesperado do ouvinte, limitaram-se a dizer, em voz comprometida — como Pilatos no feminino —, que «não ouviram bem» o que o ouvinte dissera. Mas ouviram bem, ambas as convidadas, o que os outros disseram. Azar, muito azar o do homem que se sente escravizado, e queixa-se de haver outros concidadãos na sua situação.

Eu ouvi. Pena é que as convidadas, com responsabilidades acrescidas no plano laboral nacional, não tenham ouvido. Espero que quem de direito tenha ouvido, e faça o que o dever impõe. O autismo voluntário ao mal dos outros é um mal, e bom seria que as pessoas — todos nós — tivessem consciência disso. Ignorar o mal alheio é uma acção contra a humanidade, uma profunda indignidade que empobrece o olho que não vê, o ouvido que não ouve, a mão que não ajuda e, a final, o todo social. Não se pode ver e ouvir a sociedade com palas nos olhos e com cera de conforto nos ouvidos. Uma denúncia como a de escravatura, uma queixa como a de escravidão não podem passar assim, ao de leve — a não serem escutadas, ainda que fossem ou sejam um fumus malus.

O princípio da humanidade demandava, ao menos, uma atenção ao denunciante e não um «não ouvi bem» — e razão tinham as convidadas do Espaço Público, pois bem é que não era a causa da queixa do homem. Como disse a ouvinte Helena Fontes, no mesmo programa e a propósito de outra questão, “falta humanidade”. Ah, falta sim! Falta uma humanidade activa, desperta para a dor do outro. Falta de sensibilidade, ou excessiva conformação social da liberdade das pessoas gritarem não à afronta? Dizem que as mulheres são “mais sensíveis do que os homens”, e eu até acho que, em regra, assim é. E se assim for… é só seguir a argumentatio, como diria Santo Isidoro de Sevilha.

Imagem: Gennady Shlykov

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

| MUTAÇÕES

Como dizia Heraclito, depois Severo, depois Petrarca, depois Camões, depois Lavoisier — num outro sentido… «todo o Mundo é feito de mudança». Mas será que é mesmo todo o Mundo? O quanto é que mudamos, e porque mudamos? Não nos damos ao trabalho de fazer isso, de sermos críticos e polícias de nós mesmos – a sombra das palavras dizem muito do que somos de verdade, do nosso imutável. O tempo somente nos revela o que somos, mostra-nos as rugas, as cavernas da nossa alma — diz-me o meu poeta.

Podemos tentar mudar, mas se formos escorpião seremos sempre escorpião — lá ensina a consabida fábula. O historiador judeu Yosef Ben Matityahu, ao adquirir a cidadania romana, tomou nome latino de Titus Flavius Josephus; mas seria sempre um judeu; o mesmo se diga de Saulo de Tarso, que tomou o nome de Paulo, fez amizade com Séneca (também ele um naturalizado da Hispânia) e escrevia em grego como os romanos cultos do seu tempo – mas continuou sendo um fariseu convertido ao pensamento de Jesus Cristo. Para não falar de Antonino Bassiano, cujo pai mudou-lhe o nome, mas não a natureza. Sim, há coisas que não mudam, o interesse espúrio, o oportunismo, a maldade e a sede de glória, as raias do mal.

«Pensar é o trabalho mais difícil que existe. Talvez por isso tão poucos se dediquem a ele» — dizia Henry Ford com razão. Mas quem se dedica a isso, ou pensa que se dedica, não pode pensar que tem o monopólio de pensar, ou de criticar. Pensar assim, é não pensar! — é estar-se, ainda, nas coisas de menino, a discorrer como menino sem a idade adulta de uma estrada de Damasco qualquer. Mas o Mundo é feito de mudança, sim. Da pedra à flor. E (eu que és tu) posso mudar, também. Mas nunca para menos livre do que sou. Mentes autoritárias grassam na garrafa, na pedra ou na rede, e precisam olhar para cima — ou para dentro. Não importa: opinar é preciso! Mas coragem, coragem de cara e de verbo é preciso, também.

A filosofia faz mal? A poesia corrompe? Bem, mate-se de fome a filosofia! Desterre-se a poesia! Cicuta legionária, vá! Voltemos a Stoneange, queimemos os computadores e quejandos! Transformemos as canetas em picaretas, pedras lascadas e facas homicidas! E os livros… Ah, os livros! Que sejam companheiros calados para caiszinho y rotcha nu! Ou fiquemos entre o óbvio e o obtuso! O certo é que, como dizia Spinoza, «quanto menos liberdade de opinião se concede aos homens, mais nos afastamos do Estado [...] e mais violento é o poder» (Spinoza, Tratado Teológico-Político, Lisboa, 1988, p. 372). Mas pior que o Leviathan colectivo é o que transportamos na alma – sim: em todos os homens reside um ditador adormecido a querer despertar. Isso é mudança? Não, é natureza! E por alimentamos esta natureza é que nos queixamos, do que temos e do que não temos e poderíamos ter. A mudança, sendo natural, é o instrumento maior do bem comum. E por isso o Mundo, e nós, somos feitos de mudança — o connatus essendi ou a morte física ou moral.
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Imagem: As Termas de Caracala — Lawrence Alma-Tadema

| EPÍSTOLA DEDICATÓRIA
A meu mui honrado Senhor, William, Conde de Devonshire

Possa agradá-lo,
Era dito entre os romanos (para quem o nome de Rei tinha sido feito odioso, bem como pela tirania dos Tarquínios, como pelos génios e decretos daquela República), diziam retomo eu, os romanos, apesar de pronunciado por um discurso particular, (se podemos considerar Catão, o Censor como tal) que todos os Reis deveriam ser classificados como bestas vorazes. Porém, o império romano que elevou orgulhosamente suas Águias conquistadoras acima do vasto e longínquo mundo, trazendo os africanos, asiáticos, macedónios, aqueus e a muitas outras nações subjugadas, uma especial servidão, com o pretexto de fazer deles súbitos romanos, não é também uma besta igualmente voraz? Se Catão era sábio em suas palavras, não menos o era Pôncio Telesino, que clamava abertamente às companhias de seu exército, (na famosa batalha que travou com Sylla) que junto a esta, Roma deveria ser igualmente arrasada, pois sempre haveria lobos predadores da liberdade a menos que pela raiz fosse devastada a floresta que os abriga.

Para falar imparcialmente, ambas as declarações são verdadeiras: que o Homem é um deus para o homem, e que o homem é lobo do próprio homem. É verdadeira a primeira se compararmos entre si os cidadãos, e o segundo se comparamos as cidades. No primeiro, há alguma analogia de similitude com a Deidade, inteligentemente pela Justiça e a Caridade, irmãs gémeas da paz; No outro, porém, os bons homens defendem-se, por dever, usando como santuário as duas filhas da guerra, a mentira e a violência. Em termos claros, recorrem à mesma prática das bestas vorazes. Os homens têm o hábito de condenar uns aos outros, por um costume inato, tal conduta ao verem reflectir suas acções nos outros homens. Desta maneira, como em um espelho, tudo o que se representa do lado esquerdo, aparece à direita e as coisas que estavam do lado direito, figuram à esquerda; outrossim, o direito natural de conservação, que a todos provém dos incontestáveis ditames da necessidade, não admite que tal ato seja vicioso ainda que o confessemos infeliz.

Alguns se admiram que até mesmo Catão (homem altamente renomado por sua sabedoria) faça prevalecer à hostilidade em vez do julgamento e a parcialidade sobre a razão, que a muito ele considerou equitativa no seu Estado popular os fatos que ele mesmo censurava na monarquia como injusto. Mas eu há muito estou convencido de que nunca as pessoas vertiginosas puderam reconhecer alguma prudência que fosse superior à vulgar, ou seja, à sua por que ela não a compreenderia ou, caso o fizesse, só a rebaixaria e infamaria. Se os mais sublimes actos e os mais célebres ditos (tanto para gregos como para os romanos), se tornaram motivo de louvor, foi assim mais pela sua grandiosidade do que pela razão e muitas vezes pela próspera usurpação (a qual nossas histórias tanto costumam censurar umas as outras) e, como avassaladora torrente com o passar do tempo arrasta tudo o que está à sua frente, sejam agentes públicos como particulares.

A sabedoria assim chamada, nada mais é do que isto; o perfeito conhecimento da verdade em todos os assuntos possíveis, o qual é derivado dos registos e ralações das coisas e que se dá graças ao uso dos nomes correctos e definidos, que obviamente, não pode ser fruto de imprevista perspicácia, mas apenas da bem equilibrada razão que, ao compêndio de uma palavra chamamos de filosofia. Assim, abre-se para nós uma estrada na qual avançamos na contemplação das coisas particulares até concluirmos ou deduzirmos o resultado de acções universais.

Observemos agora, quantas espécies de coisas existem que propriamente pertencem ao círculo do que cabe à humana razão conhecer; e tais serão os ramos que brotam da árvore da filosofia e, pela diversidade de sobre o qual eles são familiarizados, foi dada a esses ramos uma vasta diversidade de nomes. Ao que trata das figuras, chamamos geometria; a física incube-se dos movimentos, a moral do direito natural e à reunião pacífica destes ramos, faz-se à filosofia, da mesma maneira que os mares britânicos, o Atlântico e o Índico, (que foram baptizados conforme a diversidade das terras que banham), reúnem-se para formar o oceano. E quanto aos geómetras, estes têm verdadeiramente executado sua parte de maneira admirável. Tudo o que contribui para melhor auxiliar a vida do homem, seja devido à observação dos céus, pela forma como descreveram a terra, ou ainda pelo registo do tempo, seja finalmente devido às mais remotas experiências da navegação, em suma, todas as coisas que em nosso tempo diferenciam-se da simplicidade rude da antiguidade, devemos reconhecer que é uma dívida que temos para com a geometria.

Se os filósofos da moralidade tivessem cumprido seu dever com a mesma felicidade, desconheço o que poderia ter sido somado, pela felicidade de nosso engenho, no que consiste ao género humano, pois se conhecêssemos a natureza dos actos humanos da mesma maneira que conhecemos a natureza da quantidade nas figuras geométricas, a força da avareza e da ambição, sustentadas pelas erróneas opiniões do vulgar sobre a natureza do Direito e da Injustiça, prontamente tornar-se-iam débeis e viriam a desfalecer, gozando então o género humano de infinita paz (a menos que seja para habitação, em suposição que a terra torne-se estreita para o número de seus habitantes), sem deixarmos a menor pretensão ou alegação que seja favorável à guerra.

Mas agora pelo contrário, nem àquele que porta a espada ou a pena deveria ser permitido qualquer cessação; que o conhecimento da Lei de Natureza deveria perder seu crescimento, não avançando uma polegada além de sua antiga estatura; que os filósofos a tal ponto confrontam-se em facções diversas e hostis, que a mesmíssima acção por uns é verberada, e demasiado elevada por outros; que o mesmo homem em momentos distintos abraça opiniões distintas, e estimas suas próprias acções de maneira contrária ao que faria às acções de outros; Isto que digo, são claros signos e argumentos manifestos, que provam que tudo o que foi escrito pelos filósofos da moralidade em nada fez progredir o conhecimento da Verdade; mas, se o mundo o acolheu não foi pela luz que este lançou à compreensão, mas como entretenimento para os afectos, já que pelo sucesso de seu discurso retórico, foram confirmadas aos homens suas opiniões apressadamente aceitas. Assim, esta parte da filosofia sofreu o mesmo destino daquelas vias públicas que se abrem à todos os passageiros para travessia em todos os sentidos, como ruas abertas e estradas reais. Alguns nelas seguem por divertimento e outros por negócios, de forma que pelas impertinências de alguns c às altercações de outros, esses caminhos nunca têm um tempo para receber as sementes e sendo assim, neles nada se colhe.

O argumento para esta falta de sorte deveria parecer ser isto; Que entre todos os escritores daquela parte da filosofia, não há nenhum que adopte um princípio idóneo para tratá-la. Nós não podemos, como em um círculo, iniciar a manipulação de uma ciência de qualquer ponto que nos agrade. Existe um certo fio da razão que tem seu início na escuridão, mas conforme o desenrolamos nos conduz de maneira que tenha seu fim em uma luz mais clara, de modo que o princípio da doutrina deve ser extraído daquela escuridão e depois, a luz deve retornar a ela, de maneira que possa irradiar todas as dúvidas.

Assim, o que é frequente, toda vez que um escritor abandona aquela pista, seja por ignorância ou pela sua própria vontade, ele nos descreve os passos não de seu progresso na ciência, mas de suas extravagâncias que dela o afastam. Por isto, quando dediquei meus pensamentos para a investigação da justiça natural, foi anunciado pela própria palavra (que implica em uma firme vontade de dar a cada um o que é seu) de que minha primeira questão deveria ser: de onde procede que um homem queira chamar qualquer coisa como seu e não de outro? E quando achei que isto não procede da natureza, mas sim do consentimento (pois aquilo que a natureza a princípio colocará em comum, foi depois pelos homens distribuído em diversas apropriações), fui incitado por outra pergunta, a saber: para que fim, e sob que impulsos (quando tudo era igualmente comum entre os homens) os homens consideraram que fosse bastante adequado que cada um deveria ter o seu bem? Considerei que a razão foi que, se os bens fossem comuns a todos, surgem necessariamente controvérsias acerca de quem deverá extrair o maior prazer de tais bens, e das controvérsias segue-se de maneira inevitável todo o tipo de calamidades, as quais, pelo instinto da natureza, a todo homem é ensinado evitar.

Tendo chegado assim a duas máximas da natureza humana, uma proveniente da parte concupiscente, que deseja destinar ao uso particular aquelas coisas nas quais todos os outros têm igual participação e interesse, o outro procedimento é racional, que ensina a todos os homens afastar-se das dissoluções que vão contra a natureza, como sendo o maior dano que se pode causar à natureza.

Baseado nestes princípios, assim colocados, penso ter demonstrado por conexões evidentes, neste pequeno trabalho de minha autoria, primeiro a necessidade absoluta da existência de ligas e contratos, e com isto os rudimentos da moralidade e da prudência civil.

Quanto aos acréscimos, relativos ao regimento Divino, foram incorporados com o intento de que as ordens do altíssimo Deus, na Lei de natureza, não devam parecer repugnantes à Lei escrita, a nós revelada em Sua palavra. Fui também cauteloso em todo o meu discurso, de não me intrometer no referente às Leis civis de qualquer nação particular, quer dizer, que evitei aportar em qualquer praia, ciente de que estes tempos infestaram a todas com tempestades e escolhos.

Não ignoro o custo desta investigação sobre a verdade em tempo e engenho; porém, não sei avaliar seu resultado. Por sermos juízes parciais de nós mesmos, somos também parciais no julgamento de nossas produções. Eu então, ofereço este livro a seus Domínios, não a seu favor, mas sim à censura de Vossa Senhoria, como sendo de vosso julgamento por muitas experiências, não o crédito do autor, nem o zelo pelo trabalho, nem ainda o ornamento do estilo, mas apenas o peso da razão, que por seu favor me recomende sua opinião e aprovação. Se nisto a fortuna me favorecer, quer dizer, se lhe útil, se for judicioso e não for vulgar, humildemente o ofereço a Vossa Senhoria pedindo-lhe minha glória e protecção; mas se em qualquer coisa que errei, Vossa Senhoria ainda o aceitará como um testemunho de minha gratidão, visto que os meios de estudo que desfrutei por sua bondade foram consagrados em prol da obtenção de seu favor. Que o Deus do céu coroe Vossa Senhoria com longa vida nesta estação terrestre, e na Jerusalém divina com uma coroa de Glória.
Seu mui humilde e dedicado criado,
------ Thomas Hobbes, in O Cidadão