sexta-feira, 20 de junho de 2008

  • ÁFRICA NA ENCRUZILHADA
O continente africano tem sido vítima, ao longo dos séculos, de depredações sucessivas por vários povos. As grandes civilizações nascidas no berço de África foram destruídas e pouco ficou da sua memória – Numídia, Cartago, Egipto, as Etiópias… – e mesmo esse pouco tem sido escondido dos africanos.

A urbe, segundo a entendemos hoje, nasceu – segundo a tradição judaico-cristã – do engenho de Nimrod, descendente de Cush e imigrante de segunda geração; assim como, nessa mesma lógica de pensamento, a ideia de multiculturalidade nasceu nesse mesmo local.

África, sempre África no berço das coisas...

Depois da queda do Império africano na bacia do mediterrâneo em 146 a.D – com a destruição de Cartago às mãos de Cipião, o Africano – a decadência de África tornou-se uma inevitabilidade. A Numídia, dos descendentes de Massinissa, seria, também ela, destruída nas Guerras de Jugurtha (Bellum Iugurthinum de Salústio) e os resquícios do tempo em que parte da península itálica, a Córsega, a Sicília e a Península Ibérica (Hispánia) foram colónias africanas foram apagados da história.

Na verdade foi a má gestão do colonizador europeu da modernidade que fez com que África – ao contrário do que acontecia com a Administração romana do território – fosse se desertificando. Da obrigação de cultivar a terra – que tornou África, nomeadamente o Egipto e a Líbia, o celeiro de Roma e seu ponto estratégico em termos alimentares – passou-se a um período, com a queda do Imperium e o início da era feudal, de abandono da terra aos caprichos da natureza e ao alastramento do deserto que, em grande parte, a emergência do Islão no Século VIII travou nalguns casos.

Mas este aspecto ainda se manteve durante muito tempo, até a idade moderna. Aliás, as primeiras incursões portuguesas no território africano – Ceuta e Melilla – foram à procura de cereais que escasseavam em Portugal; não foram por nenhum “desígnio divino”, não: foi a falta de pão que embalou a mão dos navegadores lusitanos, a mesma que move os africanos para o norte europeu e enriquecido. O país estava, verdadeiramente, numa encruzilhada entre a fome e os celeiros de África; ganho a fome e começou a odisseia que se conhece, mas escrita com mãos de seda ocidental.

Mas depois, depois vieram as culturas intensivas e irracionais de cereais e a introdução de espécies animais desadequadas à realidade geo-fisica de parte substancial do continente conhecido e, consequentemente, o aumento da desertificação – o caso de Cabo Verde é exemplar e elucidativo: o colonizador não somente destruiu a sua flora como, com políticas desadequadas no norte de África, agravou, mediatamente, ainda mais os danos que causara directamente.

O colonizador, como não tinha mais nada que depredar, depredou o que Cabo Verde tinha: o verde da sua flora. Hoje, de algum modo, continua a depredação de África; mas agora com uma lógica não de emigrante conquistador mas com o consentimento expresso e/ou tácito dos países. E quem não colabora na lógica predatória é, logo, tido como criminoso ou remetido à condição de pária internacional.

África encontra-se, hoje, perante uma encruzilhada múltipla.

A postura pragmática e relativa da China em relação aos direitos humanos encontra em muitos governos africanos – ainda que não por razões de pensamento ou razão – eco natural. A ligação política e comercial é, assim, isenta de censuras mútuas; o que os torna, deste modo, parceiros naturais.

O desenvolvimento económico chinês e a sua crescente ajuda ao desenvolvimento dos países africanos – uma espécie de conquista silenciosa – constitui um considerável perigo económico ao ocidente, à Europa em especial; mas mais do que isso: é uma ameaça consideravelmente grave dos valores que, formalmente, sustentam a União Europeia.

A ideia de universalidade dos direitos humanos, por exemplo, poderá ser questionada em muitos aspectos pela China – fora do espectro de um isolamento ideológico chinês – se apoiado por África. Os povos do continente encontram-se perante uma encruzilhada e que é a de ter de avançar para um dado modelo de desenvolvimento – que terá que ser sustentado num novo paradigma – e escolher quais os parceiros privilegiados dessa caminhada ou então continuar dentro do sistema castrador do desenvolvimento de base assistêncialista e paternalista e que se tem revelado falho de sentido prático.

Não é a escolha no plano meramente económico que preocupa o ocidente; é, verdadeiramente, um choque civilizacional – não é uma mera “escolha” no plano social e religioso que muitas nações africanas enfrentaram no passado (entre o cristianismo e o Islão) – ao nível dos valores universais que emergiram da Declaração Universal dos Direitos do Homem da ONU.

Uma aliança civilizacional – ainda que baseada no pragmatismo político e nos interesses económicos – da actual África com a China é susceptível de criar desequilíbrios institucionais consideráveis no seio da ONU e, o que não é de todo despiciendo, no plano ético da lógica democrática quando vista em termos meramente numéricos, de maioria formal.

Mas, como me ensinou um professor de Filosofia no já longínquo ano de 1987, entre o sim e o não existe o talvez; isto é, a media via. E esta pode ter a natureza de functor deôntico ou de uma verdadeira alternativa a um ou outro caminho. Na verdade – como se vai descobrindo, ao nível da praxis –, o que varia entre os modelos de civilização é uma questão de grau ou nível de garantia ou de violação dos direitos fundamentais do homem.

  • Imagem: Icarus, Boris Vallejo

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