E penso nela, agora, a propósito da natureza de uma outra forma de pátria ou de mátria.
Resolvi editar (postar, como agora se diz…) este texto publicado há cerca de três anos pelo Liberal. Como é público, sou defensor da afirmação da língua cabo–verdiana enquanto instrumento e veículo pleno de comunicação. Sendo certo que se devemos defender a diversidade e a integridade da língua materna, não devemos criar ou alimentar quaisquer razões ou sem razões susceptíveis de fazer perigar uma ou outra. É uma questão de responsabilidade intelectual. Por essa razão é que bairrismos ou ilhismos não têm lugar nessa discussão de afirmação de um léxico necessário da língua cabo–verdiana.
O facto de não termos a Constituição da República em língua cabo–verdiana é uma falha grave do Estado que deveria dar mais e maior prioridade à língua materna. Estranho essa nossa singularidade – sermos o único país que não tem a Constituição vertida na sua língua materna…
O tempo continua sendo de construção. Mas parece–me que torna–se imperioso agir sem medos ou constrangimentos. Deixemos o passado obscuro de diferenças artificiosas e pensemos no futuro necessário.
DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO DO CRIOULO?
Um dos temas recorrentes da sociedade cabo-verdiana tem sido, desde a independência em 1975, o do estatuto jurídico da língua cabo-verdiana ou crioulo. Independentemente das razões de ordem linguística e social, uma realidade resulta evidente e tautológica: a língua cabo-verdiana existe per si e não necessita de nenhum legislador para afirmar a sua existência na comunidade cabo-verdiana em Cabo Verde e na diáspora. A questão substancial – e formal – é, deste modo, a de saber qual é o estatuto da língua cabo-verdiana no quadro constitucional da República de Cabo Verde e se é necessário a intervenção do legislador no sentido de alterar o mesmo.
Diz a Constituição da República de Cabo Verde (CRCV):
Artigo 9º.
(Línguas oficiais)
1. É língua oficial o Português.
2. O Estado promove as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa.
3. Todos os cidadãos nacionais têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito de usá-las.
Lei Constitucional n.º 1/V/99 de 23 de Novembro
Em leitura clara resulta que – em confronto hermenêutico dos nºs.1 e 3 do Artº.9º. da CRCV – os enunciados se encontram em concorrência quanto à natureza de língua oficial, sendo que o n.º 1 diz menos do que quer dizer. Este estabelece a natureza oficial do português enquanto instrumento de comunicação da pessoa colectiva Estado com o mundo exterior; isto é, como forma de relacionar-se com os demais Estados. Fala-se, claramente, em língua como forma de comunicação – como instrumento de trabalho que se contrapõe à língua mater, língua como instrumento de identidade cultural primordial.
A afirmação constitucional de que «É língua oficial o Português» deve ser entendida – no contexto histórico e político em que se afirma – como um imperativo social de ordem relacional com o mundo que o momento da sua criação demandaria; ainda que não necessariamente. Note-se que não se diz que «O Português é a língua oficial», mas que «É língua oficial o Português» o que, verdadeiramente, ao nível hermenêutico, tem e faz toda a diferença; principalmente se for cotejado com o nº 3 da mesma norma.
Resulta claro que o legislador constitucional quis distinguir entre a língua oficial formal e a língua oficial materna; entre a forma da comunicação externa da vontade do Estado (nº 1) e a matéria (nºs 2 e 3) ou alma da comunicação cabo-verdiana. Talvez não tenha sido muito feliz na redacção do texto, mas é evidente que teve a preocupação de dar um instrumento de trabalho internacionalmente reconhecido às instituições, sem perder o norte da cultura cabo-verdiana.
Podemos mesmo dizer que se quis dar uma primazia jurídico-formal ao português – eventualmente necessário à data, reitera-se – indicando o sentido em que se deve(ria) caminhar: «paridade com a língua portuguesa»; expressão que, sem sofisma, denuncia a assunção de uma preferência prática pelo português. Mas o legislador constitucional quis, também, deixar claro que a «língua oficial» não é somente o português, mas que é, também, a língua mater (nº 3). Também aqui a redacção da ideia da dicotomia direito/dever não terá sido expressa da melhor forma; pois uma coisa é o dever de conhecer a língua e outra o direito de conhecer, aprender, ensinar e usar as línguas oficiais. O enunciado tem uma dimensão restritiva da dimensão de acesso dos cidadãos à língua cabo-verdiana no seu pleno.
Não somente pela sua inserção sistemática na CRCV, mas também pela sua natureza estruturante de ideia de cultura e de identidade nacional, a língua cabo-verdiana – e os direitos de a ensinar e aprender – tem uma natureza de valor e de direito fundamental.
Nesta perspectiva, ao nível do dever que o Artº.9º., nº 3 CRCV impõe aos gestores da coisa pública, constitui um mandado constitucional de optimização do direito dos administrados conhecerem, aprenderem e ensinarem a sua língua-matriz cultural que ultrapassa a natureza de mera norma programática – seja ela exequível por si mesma ou não exequível por si mesma. Isto é, estamos perante um direito/dever iusfundamental que beneficia do regime jurídico dos direitos, liberdade e garantias constitucionais.
Mas o que é que isso dizer? Significa que se está perante uma norma que se aplica por si mesma, de per si, sem necessidade de mediação do legislador ordinário – isto é, ao caso, da Assembleia Nacional.
A intervenção do legislador ordinário – isto é, da Assembleia Nacional – no âmbito da dita «oficialização» não pode ter o efeito, directo ou indirecto, de dar um sentido hermenêutico restritivo da natureza da norma sobre a língua cabo-verdiana; qualquer intervenção deve ser no sentido de optimizar e/ou maximizar os efeitos promovidos pela norma e nunca o contrário.
Assim sendo, a Assembleia Nacional pode, na verdade deve!, legislar no sentido de cumprir com o mandado constitucional de promover a língua cabo-verdiana, ensinando-a, como faz com o português, em todos os níveis de ensino; naturalmente que com a adequação imposta pela reserva do possível, pelas limitações do conhecimento formal da língua e da sua transmissão académica com níveis de excelência.
Este é um dos dados da questão, a outra prende-se com os efeitos da pretensa «oficialização» da língua cabo-verdiana ou crioulo.
Como vimos, o cabo-verdiano – enquanto língua-cultura-matriz do povo de Cabo Verde – é língua formal e materialmente constitucional e, neste sentido, a intervenção legislativa de o tornar «língua oficial» via lei ordinária, procederia a uma desconstitucionalização da mesma; tornando-a numa língua-segunda e subalterna – por via de uma interpretação claramente restritiva e contra a Constituição – em relação ao português. Tal solução resulta inadequada ao nível da boa decisão legislativa e inadmissível em termos de fortalecimento da identidade nacional, pois feriria de morte a alma da nação cabo-verdiana; ainda que se tenha, certa e necessariamente, boas intenções. Cabo Verde já teve a sua parte de de memoricídio e não pode suportar, agora, a subalternização formal e material da sua memória comunicacional.
Mas então, o que fazer?
Sou da opinião de que a solução adequada – sem prejuízo da necessidade urgente de se promover o desenvolvimento formal da língua cabo-verdiana e o seu ensino nas escolas, institutos e universidades – passa pela revisão da Constituição no sentido de esclarecer o texto do Artº. 9º e expurgar do seu enunciado todas as ambiguidades.
A fim de evitar a ideia de estar a eventar um problema sem propor soluções concretas e alternativas, proponho – como base de trabalho futuro – a seguinte redacção para o Artº.9º da CRCV:
Artigo 9º
(Línguas oficiais)
1. São línguas oficiais da República de Cabo Verde, o Cabo-verdiano e o Português
2. Os documentos oficiais serão redigidos em Português, incumbindo ao Estado promover o Cabo-verdiano e criar as condições necessárias para que a exteriorização da sua vontade seja feita em ambas as línguas oficiais.
3. Todos os cidadãos nacionais têm o direito e o dever de conhecer, aprender, ensinar e usar as línguas oficiais.
A questão do estatuto da língua cabo-verdiana é um problema de afirmação do Estado e que demanda um consenso parlamentar alargado e a assunção prática dos deputados da República da sua função de verdadeiros representantes do povo e da nação cabo-verdiana; as querelas e os interesses de ordem política e partidárias devem dar lugar ao interesse nacional.
O momento é de afirmação; de afirmação e de fortalecimento da cultura, da nacionalidade e das instituições cabo-verdianas, nunca e em momento algum do contrário; e conhece-se algum instituto da caboverdeanidade que mais se identifica com a boa ideia de nação como a língua?... Como se dizia no Mindelo quando eu era menino, Se bo crê um coza, bo tem d´garral.
Virgílio Rodrigues Brandão
2 comentários:
gostaria de saber onde consultar o espolio, catalogos de exposições do fotografo nuno pombo costa sobre africa? tenho duas fotos do mesmo, uma intitulada : cidade da praia, ilha de santiago e outra : baia das gatas , ilha de são vicente datadas de 2000 e gostaria de saber mais sobre as mesmas ?
marantant@hotmail.com ou um site do fotografo?
Marco,
seguem os mails do Foto Jornalista Nuno Pombo Costa.
Há alguns anos publicou um Caderno Especial no Público sobre Cabo Verde e que continua a ser o trabalho mais exaustivo até hoje publicado em Portugal sobre a matéria.
Tem um espólio considerável sobre Cabo Verde, terra de qual se sente um filho adoptivo.
nunopombocosta@gmail.com
nunopombocosta@netcabo.pt
Contacte com ele.
Abraço fraterno,
Virgílio
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