OS «ESTADOS UNIDOS DE ÁFRICA» E O DESENVOLVIMENTO – DE KWAME NKRUMAH A MUAMAR KHADAFI
Festeja-se. Hoje (ontem), celebra-se uma ideia. A propósito do «Dia de África» renasce em fóruns diversos – improvisados ou recalcitrando ideias –, qual fénix renascida, a ideia de uma África com padrões de desenvolvimento iguais aos dos países desenvolvidos; imagens da «riqueza das nações» atravessam os espíritos. Mas há que conceder: A questão do desenvolvimento é, sem sombra de dúvida, uma das questões fracturantes e mais importantes da actualidade, principalmente para os países pobres.
No período pós colonialismo, África, Ásia e a América do Sul percorreram caminhos diversos – mas todos procuram ou procurararm um desiderato comum: o desenvolvimento. Ásia – com a emergência dos gigantes China e India –, tem conseguido um desenvolvimento económico considerável mas a que não corresponde, verdadeiramente, um desenvolvimento social e humano reais. O mesmo se pode dizer dos países do Mercosul – com o Brasil, a Venezuela e o Chile a encabeçar a lista dessa realidade que já teve melhores clamores em defesa de um «capitalismo de rosto humano» que empurra para a emergencia de socialismos ad hoc ou uma «Teología da libertação» pouco libertária.
África, tem uma realidade diferente, ainda que potencialmente seja um poder a ser considerado em termos mundiais – hoje é um gigante fragmentado e com pés de barro da pobreza estrutural, da guerra cíclica, do nepotismo enraízado, da incompetência institucionalizada, do hedonismo centralizador do medo do mérito, da politicofagia... Mas anseia – na verdade é mais que uma vontade, é uma necessidade – por desenvolvimento.
Pode parecer uma ideia nova, do pós colonialismo tardio – mas não é! Para muitos a solução passa(va) pela constituição dos «Estados Unidos de África» como forma de ultrapassar os desafíos do desenvolvimento económico e social da África pós independência. O grande pensador, advogado dessa ideia, foi inicialmente Kwame Nkrumah e hoje é Muamar Al Khadafi que ressuscitou a idea dos «Estados Unidos de África» depois da falência da Organização da Unidade Africana (OUA).
Kwame Nkrumah, Presidente do Gana, depois de um esforço titânico de desenvolver o país em termos industriais, chegou à conclusão – após ter visitado a China, a União Soviética e outros países socialistas – de que o que o Gana precisava era de uma economia centralizada e forte o bastante para seguir a senda do desenvolvimento económico. Estava-se em 1961 e erigiu as grandes companhias nacionais ganesas; do aço ao ouro (o Gana é hoje a segunda referência em África – depois da África do Sul – no que ao ouro diz respeito), passando pela agricultura e serviços. Em 5 anos – de 1961 a 1966 – fundou mais de 50 grandes empresas industriais. No entanto, o seu esforço – sério e comprometido – não tinha correspondência na estrutura humana do país. O esforço económico, nomeadamente industrial, não tinha suporte ao nível do desenvolvimento humano prévio e a gestão da coisa pública foi de tal forma desastrosa que o país quase que ia à bancarrota e o poder de compra dos trabalhadores ganeses baixou consideravelmente e em termos reais; segundo estudos de 1963, desceu para os valores de 1939. A manipulação – pelos países ricos – de alguns produtos no mercado internacional, nomeadamente do cacau em 1961, criou problemas acrescidos ao esforço de desenvolvimento do país.
Mas Kwame Nkrumah achava que o seu esforço por desenvolver o seu país, o Gana, deveria estender-se ao continente; deveria ser um esforço por desenvolver África – através da fundação dos «Estados Unidos de África» – e, dizia, que «devemos agir agora. Amanhã poderá ser tarde demais». É esta ideia que, em 1963, leva à reunião que deveria fundar a OUA. Nesta reunião constitutiva, Nkrumah pediu aos chefes de Estado presente que assinassem uma declaração conjunta em que todos os Estados africanos independentes acordavam na criação de uma União de Estados Africanos – «Os Estados Unidos de África». Era uma «União» no sentido jurídico e político da expressão – não a que viria a ser a Organização da União Africana (OUA).
O projecto de Kwame Nkrumah era um ideário integracionista e federalista que não agradou aos demais – muito menos a forma autoritária com que apresentou a ideia que denunciava um projecto pessoal muito claro. Julius Nyerere, então Presidente da Tanzánia – secundado por outros líderes – confrontou-o e criticou duramente essa ideia de Nkrumah pois tinha outra perspectiva do que deveria ser a Unidade Africana. O que, aliás, volta a acontecer hoje…
Um outro factor que opunha Kwame Nkumah a Julius Nyerere e aos outros chefes de Estado (em especial os seus vizinhos da Costa do Marfim, Níger, Togo e Nigéria) era de natureza política – entendía que o «socialismo científico» deveria prevalecer sobre o «socialismo africano» defendido pela maioria dos chefes de Estado africanos –, chegando a acusar os Estados francófonos da África Ocidental de serem marionetas do neo-colonialismo francés. Nkrumah pensava África com um misto de ciência e pragmatismo político com vista ao futuro; o que – talvez por excesso de confiança e alguma inabilidade política que dela naturalmente emergiu – os seus pares não alcançaram a real dimensão da sua proposta. Consequência disso foi que perdeu o apoio necessário para fundar os «Estados Unidos de África». Continuaria a sua luta por esse objectivo, ajudando os povos africanos não independentes a lutar pela autodeterminação tendo em vista uma ideia de África global e integrada que esses futuros Estados poderiam vir a fazer parte.
O seu sonho e objectivo teve, no entanto, um revés irreversível. A 24 de Fevereiro de 1966, enquanto estava em Beijing – China, foi deposto por uma revolta militar. A ideia perder-se-ia e a Organização da Unidade Africana (OUA) – fundada a 25 de Maio de 1963 em Addis Abeba, Etiópia – não cumpriria o seu papel, sendo substituida pela Unidade Africana (UA) em 2002. Esta ainda tem muito que percorrer mas é, de algum modo, o repredestinar, com muitas cautelas, da ideia de desenvolvimento de África com base numa África unida que estava subjacente ao pan-africanismo defendido por Kwame Nkrumah.
O primeiro passo na senda do retorno da ideia de Kwame Nkrumah foi a constituição, em 1975, pelo «Tratado de Lagos» da «Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental» [CEDEAO], de que Cabo Verde viria a tornar-se membro em 1976. Sendo que muitos defendem a saída do país da Organização, caso venha a fazer uma parceria especial com a União Europeia; o que, por si, é uma imprudência política.
A actual «União Africana», inspira-se no modelo da União Europeia – que tem tendências claramente federalistas –, o que resulta, em parte, um paradoxo histórico pois – se descontarmos o discurso pró Europa de Winston Churchill em 1946 – vem do pensamento de Kwame Nkrumah ao propor a criação dos «Estados Unidos de África»: um espaço de integração económica, política e social e em que se poderia ter um areópago que advogasse o bem-estar dos povos pobres de África em busca do desenvolvimento económico, social e humano.
Depois do discurso de Winston Churchill em 1946, que propôs a criação dos «Estados Unidos da Europa», foi criado um Comité Internacional de Coordenação dos Movimentos para a Unidade Europeia. Em 1948, há lugar ao «Congresso da Europa» – primeira tentativa de «União Europeia» que adoptou a seguinte resolução:
«Nenhum esforço para reconstruir a Europa sobre a base das soberanias nacionais, rigidamente divididas, pode ter êxito. As nações da Europa devem criar una união política e económica para manter a sua segurança, sua independência económica e seu progresso social; para este fim os estados devem acordar a fusão de alguns dos seus direitos soberanos (Congreso de Europa, La Haya, Mayo, 1945. Resoluciones, editado por el Comité Internacional de Coordinación de los Movimientos para la Unidad de Europa, Bruselas, 1998). Falhou a base política da União Europeia e que somente viria a ser alcançado com o Tratado da União Europeia (pelo meio ficaram os tratados CECA, CEE e EURATOM).
Kwame Nkrumah quis – em função do seu sentido de «urgência» na criação dos Estados Unidos de África –, claramente, evitar este falhanço no seio dos Estados africanos e assumiu a postura de uma liderança forte e incontestada; o que provocou a falência da sua ideia que assentava nas mesmas bases programáticas da Resolução do «Congresso da Europa». Faltou, na altura, a Nkrumah e aos outros dirigentes africanos, o espírito de concórdia e de paz que a Europa encontrara na «Declaração Schuman» de 9 de Maio de 1950 e que daria origem às negociações para a assinatura – a 18 de Abril de 1951 – do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), que foi o primeiro passo da Integração Europeia (entrou em vigor a 25 de Julho de 1952). Note-se que o problema da Europa do pós-guerra era – essencialmente – um problema de desenvolvimento, de reconstrução das estruturas económicas e sociais; análogo ao que se passa(va) em África. Kwame Nkrumah tinha ideias análogas, mas o seu esforço de desenvolvimento económico foi – ao contrário do Europeu – inglório.
Porquê? Perguntar-me-ão. Por várias razões, além das já referidas; mas fundamentalmente porque a vontade de desenvolvimento da Europa não encontrava entraves como os que África encontrava e encontra ainda hoje. Depois, além do apoio do «Plano Marshall», a constituição da CECA e mais tarde da CEE (Comunidade Económica Europeia) – que constituiram um verdadeiro motor de desenvolvimento económico. A ideia de «União Europeia» – ao contrário do que muitos pensam ao tentarem travar a ideia novada de «Estados Unidos de África» – constituiu um travão efectivo aos conflitos armados no seio da Europa ocidental e pode ter esse mesmo efeito em África.
Mas não foi somente a ajuda norte americana, com o «Plano Marshall» (como não será – a um nível ou escala menor – a do Millennium Development Goals em África) que ajudou a Europa na senda da reconstrução; foi a sua noção de «comunidade» e sua vontade de trabalhar e levantar-se das cinzas que fizeram o trabalho maior – além de que as rivalidades bélicas foram transferidas para o plano dos ganhos e perdas nos planos do desenvolvimento económico, social e humano.
Ainda ontem, 24 de Maio de 2007, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon anunciou a criação de um grupo de trabalho para revigorar a parceria entre os doadores – em sede de ajuda ao desenvolvimento – e os países subsaharianos. Isso porque – segundo carta enviada aos chefes de Estado e de Governo do G8 (que estará reunido no próximo mês na Alemanha) – teme que, citando, “There is now a danger that the commitment you made at the Summit in Gleneagles in 2005 to double aid to Africa by 2010 will not be met […]”. É um alerta a ser levado a sério pois os dados macroeconómicos assim o indicam.
A preocupação é de que muitos dos países não venham a alcançar os objectivos do Millennium Development Goals (MDGs) em 2015 e a pobreza extrema e os males a ela conexas não sejam erradicadas de África. O secretário-geral da ONU coloca o dedo na ferida ao pedir aos países do G8 (Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Federação Russa, Reino Unido e Estados Unidos) que assumam um papel mais activo na ajuda a alcançar os objectivos do programa – quer ao nível do desenvolvimento quer ao nível da protecção do ambiente, nomeadamente no plano das alterações climáticas que «têm o potencial de destruir muito do que já se conseguiu ao nível do desenvolvimento humano»; mas, mais do que isso, na promoção de um comércio multilateral aberto e não discriminatório entre os países desenvolvidos e os subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento.
Os custos da inação, alerta ainda Ban Ki-moom – à imagem do que Kwame Nkrumah dizia aos seus colegas presidenciais em Addis Abeba, no dia 25 de Maio de 1963 – excederão em muito os de tomar uma acção imediata. Nihil novi sub sole, dizia bem Coelet.
A lógica dos programas de ajuda ao desenvolvimento de África – mesmo as como o Millennium Development Goals – estão e serão sempre falhas de sentido e de resultados enquanto não nascer em África a vontade real de erguer-se da apatia e reclamar o seu lugar natural no concerto das nações desenvolvidas. Era o que Kwame Nkrumah queria, é o que Muamar Al Kadafi deseja – é mais parecido com Kwame Nkrumah do que se poderá pensar… –, mas também enfrenta imensas resistências (vide as últimas Cimeiras da Unidade Africana) no caminho para uma Integração Africana que seja mais do que quimera política.
Não é de todo incompatível que Cabo Verde – que dá mostras, nalguns sectores, de se afastar perigosamente de África –, por exemplo, tenha uma parceria especial com a União Europeia e seja membro da CEDEAO e da União Africana. Se calhar é a CEDEAO que deve repensar a sua estrutura como parte de uma União Africana mais forte – não necessariamente federalista de imediato mas integracionista, como acontece noutras partes do globo com resultados ao nível do desenvolvimento económico, social e humano consideráveis.
A ajuda dos países mais ricos ou desenvolvidos ao desenvolvimento de África não é caridade – como a expressão «doadores» em regra parece fazer crer; não. É um dever moral que emerge não somente da culpa responsabilizadora por uma descolonização selvagem e sem considerar a falta de macro estruturas para sustentar os Estados emergentes da descolonização e por um saque sucessivo dos bens de África – quer dos recursos naturais quer humanos –; mas também da própria dimensão solidária que sustenta os sistemas políticos dos países mais desenvolvidos. É um dever que emerge de um sentido civilizacional e humanístico da existência e que se expressa na interdependência dos povos da Terra.
Um outro aspecto, não menos despiciendo, é o da necessidade que têm de desenvolver África de forma a travar a migração (nomeadamente a emigração internacional transcontinental) massiva do continente. Uma realidade é certa: só o desenvolvimento económico, social e humano travará a emigração dos países africanos para os países ricos – v.g., a Europa. Nesta perspectiva – e abstraindo-me da dimensão puramente económica da questão –, o desenvolvimento de África é, também, uma necessidade dos países mais ricos.
A ideia de Kwame Nkrumah era a de uma África Unida que – em unidade e salvaguardando os valores e as tradições africanas – conseguisse o desenvolvimento harmonioso perante os desafios do capitalismo. É um desafio, um objectivo que ainda permanece por cumprir. É possível, pode ser conseguido – mas é preciso mais do que fundos de natureza monetária para perseguir e sustentar objectivos meramente economicistas; é preciso ideia, projecto, objectivos e gente capaz de os realizar.
A visão de Muamar Al Kadafi de transformar a União Africana (UA) nos «Estados Unidos de África» até 2015 pode parecer uma agenda apertada e muito ambiciosa, mas é melhor que não ter nenhuma. Cogitar e dizer que outras gerações poderão pensar e resolver esta questão é ter medo do futuro, pois o futuro é agora; como já foi. Os medos devem ser combatidos com racionalidade; como Kwame Nkrumah em 1963, hoje a ideia é protagonizada por Muamar Al Kadafi que, certamente, não quer ficar na história ligado a mais um passo atrás de uma etapa necessária ao desenvolvimento do continente africano.
Hoje, celebra-se uma ideia. Sabem os africanos o que comemoram? Uma coisa sabemos todos: a ideia, como tudo o que é belo, tarda em cumprir-se mas chegará a hora…
Virgílio Rodrigues Brandão, vrbrandao@hotmail.com
- publicação originária em LIBERAL: http://www.liberal-caboverde.com/index.asp?idEdicao=50&id=13622&idSeccao=533&Action=noticia
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