terça-feira, 4 de dezembro de 2007

O MEU PRIMEIRO AMOR

O meu primeiro amor vivia numa rua do Mindelo cujo nome, qual Fénix, esqueço todos os dias – aí, na esquina com a rua da Casa Serradas e por detrás da Rua d´Matijim. Era mais bela que a beleza – pensava nos meus tenros anos mindelenses. Todos os dias corria que nem desalmado para ir comprar peixe p´catchupa n’plurim d´pexe e ficava encostado na esquina à espera de vê-la debruçar-se sobre o terraço da sua casa térrea e lançar-me um sorriso de plumas que baixavam à minha alma formando-se e construiam uma avenida aos meus sonhos.

Era uma criola perolina, florescendo como os girassóis de Van Gogh e que a mãe – com ou sem razão – protegia dos pretinhos d´fralda como eu, a modos de guardadora de um tesouro escondido de piratas sanguinários. Pelas circunstâncias, trocamos poucas palavras – mas para quê falar se o olhar era tudo? Combinamos (será que é como as minhas memórias do Orfeu Negro?...) ver-nos no Domingo, no cinema Eden Park, para ver o filme «Melody» no tradicional vespertino cinema d´menine.

Poupei dinheiro que não tinha (troquei e vendei alguns livros seródios) e aí estava eu – o cheiro domingueiro dos gelados, sucrinha d´coco, barão q´doce d´lete... Ah, a banda tocando no Coreto da Praça Nova, cores em coração de menino e a alma tremendo de prazer eram companhia bastante para um dia feliz, sonhava. Não vi o filme – passei o tempo todo a procurar na escuridão o meu amor de olhar de Lua plena.

Saí apressado, comprei dois gelados e fui à sua procura. Encontrei-a com um sorriso sim na companhia da mãe que olhou para mim como se fosse um leproso em quarentena com dois sininhos, vociferou maldições de verbo não reproduzíveis e arrastou a filha – minha aurora de tudo – deixando-me com os sorvetes a derreter nas mãos… Ela, em olhar de angústia, levava quilómetros de lágrimas – ou sou eu que penso que sim?

Nunca mais consegui vê-la, a não ser ao longe – sempre policiada e com um sorriso que até Deus alimentaria de paixão a alma e redimiria todos os danados. Depois, depois terra-longe tragou-me para o seu ventre; deixando a minha alma em terra pisada pelo meu amor de menino. Voltei, anos depois, já homem – a primeira coisa que fiz no Mindelo foi procurar essa casa térrea, esperando encontrar o meu amor no terraço à espera…

Estava lá, a casa abandonada há muito – «foram para Praia ou para stranger»; disseram-me. Procurei, com diligência de Sherlock, saber mais; mas nada! Tinha, então, acabado de perder o meu primeiro amor – na mesma rua de pedra negra e esquina de paraíso. E nunca soube como se chamava… Sempre que ouço – como agora – «Melody friend», lembro-me. Será que – pergunto de alma exilada há uma eternidade em Lisboa – Lucífer teve olhos de ternura consolando-o quando, injustiçado pelo sonho de Deus, caiu do Céu?
Virgílio Rodrigues Brandão
Publicação originária> JORNAL DE CABO VERDE

domingo, 2 de dezembro de 2007

O CRIOLO, OUTRA VEZ

«When we look to the individuals of the same variety or sub-variety of our older cultivated plants and animals, one of the first points which strikes us, is, that they generally differ more from each other than do the individuals of any one species or variety in a state of nature». Assim começa a magna obra de Charles Darwin, On the Origin of Species by Means of Natural Selection or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life.

E penso nela, agora, a propósito da natureza de uma outra forma de pátria ou de mátria.

Resolvi editar (postar, como agora se diz…) este texto publicado há cerca de três anos pelo Liberal. Como é público, sou defensor da afirmação da língua cabo–verdiana enquanto instrumento e veículo pleno de comunicação. Sendo certo que se devemos defender a diversidade e a integridade da língua materna, não devemos criar ou alimentar quaisquer razões ou sem razões susceptíveis de fazer perigar uma ou outra. É uma questão de responsabilidade intelectual. Por essa razão é que bairrismos ou ilhismos não têm lugar nessa discussão de afirmação de um léxico necessário da língua cabo–verdiana.

O facto de não termos a Constituição da República em língua cabo–verdiana é uma falha grave do Estado que deveria dar mais e maior prioridade à língua materna. Estranho essa nossa singularidade – sermos o único país que não tem a Constituição vertida na sua língua materna…
O tempo continua sendo de construção. Mas parece–me que torna–se imperioso agir sem medos ou constrangimentos. Deixemos o passado obscuro de diferenças artificiosas e pensemos no futuro necessário.

DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO DO CRIOULO?
Um dos temas recorrentes da sociedade cabo-verdiana tem sido, desde a independência em 1975, o do estatuto jurídico da língua cabo-verdiana ou crioulo. Independentemente das razões de ordem linguística e social, uma realidade resulta evidente e tautológica: a língua cabo-verdiana existe per si e não necessita de nenhum legislador para afirmar a sua existência na comunidade cabo-verdiana em Cabo Verde e na diáspora. A questão substancial – e formal – é, deste modo, a de saber qual é o estatuto da língua cabo-verdiana no quadro constitucional da República de Cabo Verde e se é necessário a intervenção do legislador no sentido de alterar o mesmo.

Existe, realmente, a necessidade de «oficializar» a língua cabo-verdiana? Não estaremos, na realidade, perante uma desnecessidade? Para concretizarmos as ideias subjacentes a estas perguntas, vejamos – em apertada síntese – a natureza jurídica da língua.

Diz a Constituição da República de Cabo Verde (CRCV):
Artigo 9º.
(Línguas oficiais)
1. É língua oficial o Português.
2. O Estado promove as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa.
3. Todos os cidadãos nacionais têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito de usá-las.
Lei Constitucional n.º 1/V/99 de 23 de Novembro

Em leitura clara resulta que – em confronto hermenêutico dos nºs.1 e 3 do Artº.9º. da CRCV – os enunciados se encontram em concorrência quanto à natureza de língua oficial, sendo que o n.º 1 diz menos do que quer dizer. Este estabelece a natureza oficial do português enquanto instrumento de comunicação da pessoa colectiva Estado com o mundo exterior; isto é, como forma de relacionar-se com os demais Estados. Fala-se, claramente, em língua como forma de comunicação – como instrumento de trabalho que se contrapõe à língua mater, língua como instrumento de identidade cultural primordial.

A afirmação constitucional de que «É língua oficial o Português» deve ser entendida – no contexto histórico e político em que se afirma – como um imperativo social de ordem relacional com o mundo que o momento da sua criação demandaria; ainda que não necessariamente. Note-se que não se diz que «O Português é a língua oficial», mas que «É língua oficial o Português» o que, verdadeiramente, ao nível hermenêutico, tem e faz toda a diferença; principalmente se for cotejado com o nº 3 da mesma norma.

Resulta claro que o legislador constitucional quis distinguir entre a língua oficial formal e a língua oficial materna; entre a forma da comunicação externa da vontade do Estado (nº 1) e a matéria (nºs 2 e 3) ou alma da comunicação cabo-verdiana. Talvez não tenha sido muito feliz na redacção do texto, mas é evidente que teve a preocupação de dar um instrumento de trabalho internacionalmente reconhecido às instituições, sem perder o norte da cultura cabo-verdiana.

Podemos mesmo dizer que se quis dar uma primazia jurídico-formal ao português – eventualmente necessário à data, reitera-se – indicando o sentido em que se deve(ria) caminhar: «paridade com a língua portuguesa»; expressão que, sem sofisma, denuncia a assunção de uma preferência prática pelo português. Mas o legislador constitucional quis, também, deixar claro que a «língua oficial» não é somente o português, mas que é, também, a língua mater (nº 3). Também aqui a redacção da ideia da dicotomia direito/dever não terá sido expressa da melhor forma; pois uma coisa é o dever de conhecer a língua e outra o direito de conhecer, aprender, ensinar e usar as línguas oficiais. O enunciado tem uma dimensão restritiva da dimensão de acesso dos cidadãos à língua cabo-verdiana no seu pleno.

Não somente pela sua inserção sistemática na CRCV, mas também pela sua natureza estruturante de ideia de cultura e de identidade nacional, a língua cabo-verdiana – e os direitos de a ensinar e aprender – tem uma natureza de valor e de direito fundamental.

Nesta perspectiva, ao nível do dever que o Artº.9º., nº 3 CRCV impõe aos gestores da coisa pública, constitui um mandado constitucional de optimização do direito dos administrados conhecerem, aprenderem e ensinarem a sua língua-matriz cultural que ultrapassa a natureza de mera norma programática – seja ela exequível por si mesma ou não exequível por si mesma. Isto é, estamos perante um direito/dever iusfundamental que beneficia do regime jurídico dos direitos, liberdade e garantias constitucionais.

Mas o que é que isso dizer? Significa que se está perante uma norma que se aplica por si mesma, de per si, sem necessidade de mediação do legislador ordinário – isto é, ao caso, da Assembleia Nacional.

A intervenção do legislador ordinário – isto é, da Assembleia Nacional – no âmbito da dita «oficialização» não pode ter o efeito, directo ou indirecto, de dar um sentido hermenêutico restritivo da natureza da norma sobre a língua cabo-verdiana; qualquer intervenção deve ser no sentido de optimizar e/ou maximizar os efeitos promovidos pela norma e nunca o contrário.

Assim sendo, a Assembleia Nacional pode, na verdade deve!, legislar no sentido de cumprir com o mandado constitucional de promover a língua cabo-verdiana, ensinando-a, como faz com o português, em todos os níveis de ensino; naturalmente que com a adequação imposta pela reserva do possível, pelas limitações do conhecimento formal da língua e da sua transmissão académica com níveis de excelência.

Este é um dos dados da questão, a outra prende-se com os efeitos da pretensa «oficialização» da língua cabo-verdiana ou crioulo.

Como vimos, o cabo-verdiano – enquanto língua-cultura-matriz do povo de Cabo Verde – é língua formal e materialmente constitucional e, neste sentido, a intervenção legislativa de o tornar «língua oficial» via lei ordinária, procederia a uma desconstitucionalização da mesma; tornando-a numa língua-segunda e subalterna – por via de uma interpretação claramente restritiva e contra a Constituição – em relação ao português. Tal solução resulta inadequada ao nível da boa decisão legislativa e inadmissível em termos de fortalecimento da identidade nacional, pois feriria de morte a alma da nação cabo-verdiana; ainda que se tenha, certa e necessariamente, boas intenções. Cabo Verde já teve a sua parte de de memoricídio e não pode suportar, agora, a subalternização formal e material da sua memória comunicacional.

Mas então, o que fazer?

Sou da opinião de que a solução adequada – sem prejuízo da necessidade urgente de se promover o desenvolvimento formal da língua cabo-verdiana e o seu ensino nas escolas, institutos e universidades – passa pela revisão da Constituição no sentido de esclarecer o texto do Artº. 9º e expurgar do seu enunciado todas as ambiguidades.

A fim de evitar a ideia de estar a eventar um problema sem propor soluções concretas e alternativas, proponho – como base de trabalho futuro – a seguinte redacção para o Artº.9º da CRCV:
Artigo 9º
(Línguas oficiais)
1. São línguas oficiais da República de Cabo Verde, o Cabo-verdiano e o Português
2. Os documentos oficiais serão redigidos em Português, incumbindo ao Estado promover o Cabo-verdiano e criar as condições necessárias para que a exteriorização da sua vontade seja feita em ambas as línguas oficiais.
3. Todos os cidadãos nacionais têm o direito e o dever de conhecer, aprender, ensinar e usar as línguas oficiais.

A questão do estatuto da língua cabo-verdiana é um problema de afirmação do Estado e que demanda um consenso parlamentar alargado e a assunção prática dos deputados da República da sua função de verdadeiros representantes do povo e da nação cabo-verdiana; as querelas e os interesses de ordem política e partidárias devem dar lugar ao interesse nacional.
A solução de, por via legislativa ordinária, criar-se um estatuto para a língua, matriz-cultural dos cabo-verdianos, é, a meu ver, passados trinta anos sobre a proclamação da independência, dar muitos passos em frente e em direcção ao império da língua e da cultura portuguesa sobre a caboverdeanidade. Se Fernando Pessoa dizia que a «A minha pátria é a língua portuguesa»; porque não podem os cabo-verdianos – sem prejuízo da sua herança cultural lusitana – dizer que a sua pátria linguística e comunicacional é o cabo-verdiano ou crioulo?

O momento é de afirmação; de afirmação e de fortalecimento da cultura, da nacionalidade e das instituições cabo-verdianas, nunca e em momento algum do contrário; e conhece-se algum instituto da caboverdeanidade que mais se identifica com a boa ideia de nação como a língua?... Como se dizia no Mindelo quando eu era menino, Se bo crê um coza, bo tem d´garral.
Virgílio Rodrigues Brandão
Publicação originária:

Salvador Dali, O Sonho, 1931


DREAM ANGUISH

My thought of thee is tortured in my sleep--
Sometimes thou art near beside me, but a cloud
Doth grudge me thy pale face, and rise to creep
Slowly about thee, to lap thee in a shroud;
And I, as standing by my dead, to weep
Desirous, cannot weep, nor cry aloud.
Or we must face the clamouring of a crowd
Hissing our shame; and I who ought to keep
Thine honour safe and my betrayed heart proud,
Knowing thee true, must watch a chill doubt leap
The tired faith of thee, and thy head bow'd,
Nor budge while the gross world holdeth thee cheap!

Or there are frost-bound meetings, and reproach
At parting, furtive snatches full of fear;
Love grown a pain; we bleed to kiss, and kiss
Because we bleed for love; the time doth broach
Shame, and shame teareth at us till we tear
Our hearts to shreds--yet wilder love for this!

Maurice Hewlett, Helen Redeemed and Other Poems