«Amílcar Cabral foi assassinado por dirigentes do PAIGC por causa das intrigas, da sede de poder e da falta de respeito pelos valores. [...] Amílcar Cabral, [foi] morto por causa da intriga. Por pessoas que não foram leais com os seus camaradas» – disse o Primeiro Ministro José Maria Neves num comício do candidato presidencial Manuel Inocêncio Sousa. Nada de substancialmente novo, pois esta matéria tem sido objecto de várias incursões académicas, sem grande profundidade, é certo, mas interessantes q.b.; sendo a última a de Pavel Danilov (o Ministério da Cultura poderia patrocinar a edição dessa obra em português; sempre se faria algo de verdadeiramente útil para a cultura nacional que precisa de se libertar da «história oficial» do país).
A novidade é tal sair do seio do PAICV... do seu Secretário-Geral que sabe que o homícida que deu a rajada final em Amílcar Cabral chamava-se... Inocêncio! (Nada a ver com o candidato do PAICV, que tem claras debilidades enquanto candidato presidencial mas que é um paz de alma.) mas que era mero peão executor na intriga que vitimou o líder pan-africanista. Falta-nos saber qual foi a mão, de entre os membros do PAIGC (que sempre teve o discurso oficial de terem sido «os colonialistas»), que embalou a acção de Inocêncio. Todas as narrativas da morte de Amílcar Cabral deixam perceber um facto: houve acções facilitadoras, para além da segurança, que permitiram o homicídio/execução do então líder do PAIGC (em circunstâncias que lembra-me, recorrendo à analogia de situação, a morte do Imperador Ofélio Macrino às mãos dos seus seguranças).
Voltando à José Maria Neves e à sua analogia em forma de denúncia pública que num país verdadeiramente democrático seria objecto de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (espero que tal venha a acontecer, que o recém eleito Parlamento não seja como os anteriores: um grupo de deputados-carneiros que passam a ideia de serem acéfalos e em constante demissão das suas funções de guardiões políticos do Estado de Direito democrático). Esta afirmação pode ser vista como uma tentativa de conduzir o discurso político cabo-verdiano a um patamar do vale tudo das guerras das comadres, dos frater do PAICV e um alerta de que existe quem pode ir «até onde for necessário» para alcançar o poder. Mas não é somente isso, é muito mais: é o desentranhar da revelação da natureza antidemocrática do PAICV, da verdade sobre o PAIGC/CV e da sua incapacidade de lidar com a diferença inerente ao processo democrático. Aliás, José Maria Neves acusa Aristides Lima, de forma indirecta mas insofismavelmente clara, de ser (i) anti-democrático e (ii) desleal com o PAICV e com Cabo Verde, i.e, de ser um traidor da mesma jaez dos que mataram Amílcar Cabral.
Aristides Lima não quer ouvir, para não ter de responder e cair na lama que tamanho discurso dialêctico necessariamente demanda. José Maria Neves, apercebendo-se do que fez, tenta emendar a mão sem o fazer. Mas o dito e o feito, dito e feito estão. E as palavras de José Maria Neves são claras: «Temos de escolher entre quem está a dividir e quem está a unir. Entre quem é leal e respeita as regras do jogo e os outros, que não são democratas, que não são leais com os companheiros e com Cabo Verde.» É um ataque claro e feroz a Aristides Lima e ao seu caracter como cidadão e candidato; aquilo a que os americanos chamam, nestas circunstâncias, de caracter issue.
Tem razão o líder do PAICV: Aristides Lima (assim como David Hopffer Almada e Manuel Inocêncio Sousa) submeteu-se a um escrutínio democrático interno, e não aceitou o resultado porque este foi-lhe desfavorável. Neste aspecto o juízo de José Maria Neves sobre a anti-democraticidade de Aristides Lima é de todo inatacável. Aliás, este juízo até está enraízado na história política de Aristides Lima que não somente (i) foi contra a abertura política democrática do país como (ii) não votou a Constituição democrática que institui a democracia e (iii) nos seus escritos académicos revela-se entre aqueles que defende que a 13 de 1991 não houve lugar à uma ruptura política e mais tarde constitucional com a Constitução de 1992.
Se dependesse de Aristides Lima, ainda hoje teríamos a Constitução semântica de 1980 e o Partido único a governar Cabo Verde num sistema de pluralismo monopartidário. Assim, a sentença de José Maria Neves a laudar Aristides Lima, seu então líder parlamentar, de antidemocrata tem de ser tida em consideração. Não pode ser tida como uma afirmação leviana (aliás, Manuel Inocêncio Sousa veio dizer que este era um discurso para o interior do PAICV; feito na rua, para rádio e televisão gravarem! Que bem fica ao candidato do PAICV: defender o seu líder e o seu camarada, mesmo tendo-o como adversário). Mas no plano de não assunção da Constituição e dos seus valores, aquando da sua aprovação, também se aplicaria a ele mesmo e a Manuel Inocêncio Sousa (mas eles, dirá o Primeiro Ministro, estão convertidos... pois respeitam as regras democráticas, até no Partido; Aristides Lima, não!).
Curioso será de notar que Aristides Lima não votou a Constitução que quer defender como Presidente da República; não votou a sua aprovação, porque era contra o sistema democrático que ela veio a introduzir, e não votou as posteriores alterações à mesma Constituição. Porquê? Esta é uma questão que José Maria Neves (e a revelia partidária da candidatura presidencial provam?) respondeu: porque é um antidemocrata. Se não é o caso, se a acusação não procede, i.e., que se converteu à democracia do Estado de Direito democrático, deve uma explicação ao povo de Cabo Verde, antes de se submeter ao escrutínio popular no dia 7 de Agosto de 2011:
(1) identifica-se com os valores da presente Constituição ou não?
(2) Porque não votou a Contituição em 1992 e não votou as suas alterações em 1999 e 2010?
Como candidato a Presidente da República, o cidadão Aristides Raimundo Lima tem esta dívida com os cidadãos cabo-verdianos; comigo e consigo, leitor. Insofismavelmente. Eu até que perceberei as razões subjacentes a tais factos... mas é como o Imperador Marco Aurélio dizia à Faustina a Nova e a Lucilla Augusta: À mulher de César não basta ser séria...
Sobre a deslealdade para com o PAICV... o facto de candidatar-se a revelia do partido, violando regras por ele aceites como militante e agindo de forma que prejudica, objectivamente, o PAICV e os seus interesses, é de ter-se como desleadade para com o partido a quem fez tantas declarações de amor ainda há pouco tempo (quem não se lembra da última campanha eleitoral e do que a precedeu?). E deslealdade – neste caso em que se esperava uma outra acção de Aristides Lima, um outro sentido ético partidário – é traição ao Partido de que é, ainda, militante (coisa estranha... num candidato a Presidente da República).
Agora, sobre a desleadade para com Cabo Verde, eu gostaria de ver este aspecto esclarecido, pois é, uma vez mais, a já arcana apropriação da ideia e do estatuto de «povo» e «nação» pelo PAICV (como a ala do PAICV que apoia Aristides Lima faz com o de «cidadania»). É que Manuel Inocêncio Sousa tem como slogan a máxima absolutista «Eu sou Cabo Verde», e o entusiasmo juvenil e autoritário da campanha tem acento tónico na primeira pessoa. Aristides Lima atraiçoa, afinal, que Cabo Verde? O Cabo Verde que é o PAICV/Manuel Inocêncio («Mais Cabo Verde», i.e, «Mais PAICV» foi o slogan de José Maria Neves nas eleições Legislativas) ou, pelo contrário, o Cabo Verde que é a nação e o Estado indivisível e inapropriável?
Vem ao de cimo o que me parece uma evidência há muito patente: o PAICV e os seus militantes ainda não interiorizaram os valores do Estado de Direito Democrático e ainda pensam, como pensavam e agiam durante a Ditadura de Partido de 1975-1991, que Cabo Verde é o PAICV e que o PAICV é Cabo Verde. Aristides Lima, que não pode dizer (como defendia com José Maria Neves e Manuel Inocêncio Sousa o slogan «Mais Cabo Verde», subliminarmente «Mais PAICV») que ELE (MI) é Cabo Verde só poderia apropriar-se e dizer outra coisa: EU sou a cidadania (os apoiantes de Aristides Lima, chamam-no O Presidente da cidadania; pois claro...). É uma questão endógena, de formatação política. Até mesmo o naif Joaquim Monteiro (cuja coragem cívica se saúda), confesso militante do PAIGC, também age nesta mesma senda, e se auto-intitula «o candidato do Povo». A fabula do escorpião e da rã aplica-se, ao caso, por analogia necesssária: as pessoas são o que são e não o que dizem ser.
Agora, prezado leitor, deverá conseguir perceber a razão do juízo do Primeiro Ministro José Maria Neves, e porque é que uma pessoa «desleal» para com Cabo Verde foi caucionada por ele para ser Presidente da Assembleia Nacional durante duas Legislaturas consecutivas: Porque para José Maria Neves, para Manuel Inocêncio Sousa e Aristides Lima Cabo Verde é o PAICV; Cabo Verde, «o povo» e a «cidadania» são eles e a sua troupe e entourage socio-ideológica e mais ninguém. Enquanto dividiam os poderes e as benfeitorias do Estado, como se este fosse coutada sua, tudo corria bem; até o cortador oficial do queijo dobrar a mão, contra o que a intelectualidade de Aristides Lima considera ser o normal, o racional: Ele era «o candidato natural», o messias presidencial do PAICV, «o melhor homem da terra», do Cabo Verde/PAICV. A estrela de Alva caiu, rebelou-se contra a ordem das coisas do PAICV, e resolveu imitar a natureza da sua estrutura natural: intitulou-se O Candidato da Cidadania (na falta da estrada das estruturas do Estado, agrarrou-se à berma deste; tudo sob o manto diáfano do discurso popular legitimador).
Aristides Lima traiu o PAICV? Sim, mas não o fez sozinho.
Aristides Lima traiu Cabo Verde? Sim, traiu o Cabo Verde democrático ao alinhar com essa ideia de um Cabo Verde que é o partido PAICV e, deste modo, traiu o Cabo Verde dos cidadãos. Sempre optou por servir mais ao Cabo Verde/PAICV que ao Cabo Verde real, a da cidadania que agora reclama ser Sua, que quer encarnar à força e pela força, como o PAICV encarna, em mensagens subliminares, o Cabo Verde que quer Ele mas que, na realidade constitucional, é democrático e não é ninguém mais que a soma de todos nós. Cabo Verde é demasiado grande para ser resumido a um MI autoritário! e a cidadania e o povo não dão (não deram nem podem dar, ex natura) carta branca a ninguém para encarnar e dizer-se escolhido antes de ir às urnas.
Se devidamente compreendida, a acusação de José Maria Neves a Aristides Lima é extensível a todos aqueles que estão com Aristides Lima e a sua candidatura: serem anti-democráricos e terem, eles, os «intriguistas» do PAIGC/CV, participado na morte de Amílcar Cabral (neste com o sentido simbólico deste momento, um momento de destruição da Unidade, da unidade do partido e da unidade/confusão (em sentido jurídico e que ainda está na alma de muitos dirigentes e militantes do PAICV) do partido com Cabo Verde. E esta foi/é, reitero, uma das razões porque o PAICV não aprovou a Constituição de 1992 em resistência a democracia pluripartidária e ao Estado de Direito Democrático: o Estado de Direito era o Estado dirigido pelo PAIGC/CV, ente dirigente da sociedade e supraestadual). É o próprio líder do PAICV que acusa os membros do seu partido de anti-democráticos... por não respeitarem as decisões do seu próprio partido (e extende-se para além...); e tem razão ao dizer isso.
As consequências desta realidade são evidentes: Feliberto Vieira, v.g., deixou de ter espaço no elenco governamental liderado pelo Primeiro Ministro José Maria Neves. Como é que um intriguista, antidemocrático (que desrespeita as decisões da cupula do Partido que sustenta o Governo) e traidor pode fazer parte do Governo de Cabo Verde? Só se esse Governo for, também ele, constituido por antidemocratas. Depois das eleições, ou o homem das pombas se demite ou, obviamente... A fuga para a frente de Feliberto Vieira (para escapar da armadilha da afirmação de competência que o cargo de Ministro lhe impõe; o que foi bem pensado! no quadro da estratégia do jogo de poder pela futura liderança do Partido) pode não servir-lhe de nada, a final. Resta ver o que vai fazer: mostrar-se agarrado ao poder ou avançar para a oposição interna patente a José Maria Neves. Estas eleições presidenciais decidem muito mais do que o cargo de Presidente da República...
Acresce à esta confissão de falta de democracia interna (diz Aristides Lima, e os seus apoiantes «rebeldes») e de democratas (diz José Maria Neves) no seio do PAICV, uma outra confissão: a da morte de Amílcar Cabral ter sido orquestrada pelos intriguistas do PAIGC. É uma acusação de gravidade extrema, e que não pode passar despercibida; até que não foi nem pode ter sido dito de ânimo leve (sabe-se, de forma insofismável, a quem a bateria foi dirigida; e o momento até é propício a tal). José Maria Neves sabe quem foi que mandou matar Amílcar Cabral, e sabe os motivos. Mais: sabe que foram pessoas do partido político que dirige: o PAIGC/CV (quem conhece os meambros políticos de então, por vivência ou estudo, sabe(rá) tirá conclusões de difícil contestação). Esta informação não pode ser escondida do povo cabo-verdiano (até este momento admitia que pudesse estar sujeita a segredo de Estado; mas não agora). O primeiro Ministro tem o dever de o divulgar sem rodeios ou demitir-se do Governo; até porque, ao que se infere das suas palavras, também teme ser morto como Amílcar Cabral o foi pelos camaradas. E aponta o dedo... terrível!
O fratricídio e o homicídio político, estes, já os tinha notado (entre camaradas, muitos que ainda nem nascidos para a política estão, e entre aqueles que a história clama o nome) como prática corrente e recorrente na sociedade cabo-verdiana... agora temer o homicídio físico no nosso tempo histórico, como teme José Maria Neves, é algo de tenebroso. E os maus, desta vez, não são o MPD e quem não lê pela velha Cartilha pan-africanista mas o próprio partido, o PAICV (seja qual for a facção) que continua a querer confundir-se com o Estado de Cabo Verde.
Democracia em Cabo Verde? Não basta haver eleições e haver uma alternância no poder para se qualificar um Estado de democrático. O PAICV continua a ter Cabo Verde ideologicamente sequestrado, e o que é triste é ver que o país não percebe isso... Resta saber é se não perceberá isso ao ponto de acreditar que quem é acusado – de forma sustentada – pelos camaradas de longas caminhadas e lutas partidária de (i) anti-democrata, (ii) intriguista e (iii) traidor (além de não ter votado a Constituição e as suas revisões) pode ser campeão da cidadania e, mais: Presidente da República de Cabo Verde, i.e., guardião do Estado de Direito democrático que, ao que parece, não se identifica.
Who watches the watchmen, afinal? Supostamente deveríamos ser nós, o povo. Mas parece que existe um povo dentro do Povo em Cabo Verde...