sexta-feira, 9 de setembro de 2011

  • A PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA – (DES)LAMENTOS DA PÁTRIA
Lembro-me de em 2000, com a esperança de um novo milénio a despontar, ter estado na Associação Cabo-verdiana em Lisboa a assistir a apresentação da candidatura do comandante Pedro Pires à presidência da República e, depois dos discursos de circunstância e iguais cumprimentos, ter dito ao mesmo que seria o próximo Presidente da República de Cabo Verde. Olhou-me nos olhos e tive a percepção de que ou não acreditava no que ouvia ou pensou que eu estaria a ser jocoso; bem, são dúvidas que me ficaram – uma outra foi confirmada: foi eleito Presidente em 2001. Certamente que, como será natural, não se recordará desse episódio; lembrei-me agora, ao ouvir a sua entrevista à Rádio Ecomidia no Brasil.

Sabemos todos quais foram as vicissitudes políticas e jurídicas que se seguiram às eleições de 2001 e, ao que parece – necessariamente, voltam a ser repredestinadas na nossa memória colectiva; não para nos assombrar mas para testar a grés de povo que somos.

As declarações do Presidente da República em terras de Vera Cruz, de que o assunto das irregularidades eleitorais é «[…] uma questão encerrada […]», de que «[…] não vale a pena chorar sobre o leite derramado ou querer refazer a história […]», de que não dá «[…] muita importância à essa questão […]» e que o que interessa «[…] é ocupar-me da função para a qual fui eleito e tentar cumprir da melhor forma […]», que «[…] os cabo-verdianos não têm nada que lamentar […]» uma vez que «[…] o país hoje é muito mais credível, goza de muito maior confiança da comunidade internacional e dos estados e instituições de que Cabo Verde faz parte»; remetendo tudo o mais à história e às suas cinzas como se o vento que jaz na memória não existisse. Confesso que fiquei estupefacto pelo momento e conteúdo da entrevista, pois melhor teria sido que o Presidente Pedro Pires não tivesse dito nada; pois se é verdade que o povo cabo-verdiano merecia uma explicação do seu Presidente quando o mesmo foi acusado de fraude eleitoral – e não o deu, não se percebe porque teve de o fazer agora; e de forma tão desastrosa.

A questão em si é, naturalmente, uma questão encerrada do ponto de vista do direito: os prevaricadores materiais dos crimes eleitorais foram identificados e sujeitos ao juízo jurisdicional. Esta é uma das perspectivas da questão que, do ponto de vista do Presidente da República, esgotaria a questão. Mas não é, não pode nem deve ser assim; pois o exercício do poder – especialmente no contexto em que foi adquirido e para além da sua natureza transversal ao humano – tem outras dimensões, nomeadamente de ordem política, social e moral.

Dizer, sem mais, «que não vale a pena chorar sobre leite derramado» é fomentar a irresponsabilidade política e moral dos governantes da nação e ser-se um não-exemplo para os cidadãos que o Presidente da República representa; especialmente este Presidente que é, efectivamente, um dos Pais da Pátria cabo-verdiana.

A história, como é consabido, não pode ser reescrita nem refeita; a história existe por si mesma e os factos que a sustentam miram-nos do fundo dos tempos e, se olharmos nos seus olhos, veremos a verdade e nada mais – a não ser que precisemos de colírio. Mas há quem pense que pode refazer ou reparar a história política por via do bom exercício do poder; parece ser essa a perspectiva do Senhor Presidente da República: a legitimidade pelo exercício do poder presidencial (muitas vezes quase executivo), com uma maior visibilidade internacional do país, é compensação bastante para os cabo-verdianos que não se podem queixar pelo facto das eleições terem sido efectivamente inquinadas por ilegalidades pois, no fim, quem ganhou até que fez um bom papel…

Esta perspectiva é, verdadeiramente, considerar a ideia democrática que Cabo Verde abraçou como fundamento do Estado não um valor em si mesmo mas sim um instrumento de pragmatismo político e social que é, no mínimo, sofrível. A legitimidade, em democracia representativa, deve ser não somente pelo exercício mas também pela origem. Das palavras do Presidente da República se infere que o mesmo está consciente da ilegitimidade quanto a origem do seu mandato presidencial (aliás não questiona as decisões judiciais que condenaram quem o beneficiou nas urnas), mas que se encontra satisfeito com o seu desempenho. O que, na realidade, não surpreende pelo pragmatismo revelado; basta atentar na história política cabo-verdiana para compreender essa dimensão mutante e resiliente do Presidente Pedro Pires; Ibn Khaldun e Aristóteles não hesitariam em chamá-lo de animal político.

O discurso do Presidente Pedro Pires é uma forma de auto-satisfação moral e de justificação política atendível mas não bastante. Muitos dirão que o Presidente da República, quando se verificou que tinha havido irregularidades eleitorais bastantes para impedir a sua vitória eleitoral, deveria ter renunciado ao mandato presidencial e marcado nova eleições. Parece-me que, em bom juízo moral e jurídico, é um raciocínio procedível; não fosse o facto dessas decisões terem chegado já fora do tempo admissível para uma eventual renúncia presidencial que não prejudicasse mais o país que a continuação do mandato do actual Presidente. Nessa perspectiva a decisão do Presidente da República foi a mais responsável, ainda que não a mais correcta do ponto de vista da ética política; o exercício do poder tem estes paradoxos.

A própria oposição, maxime o candidato vencido, Dr. Carlos Veiga, terá percebido a dimensão social, política e económica do problema – além de uma manifesta capitalização moral e de patriotismo que a gestão do problema lhe granjeou (o que não deixará, certamente, de explorar nas próximas eleições presidenciais) – para se conter nas críticas que legitimamente poderia ter feito. Notemos, em anotação clara e inequívoca, que a honorabilidade pessoal do Senhor Presidente da República encontra-se acima de qualquer suspeita e/ou suspeição; como dizem os britânicos: The King can do no wrong. Para além de que a responsabilidade, salvo prova em contrário, é de ordem individual e/ou pessoal.

Mas o povo tem razões para se lamentar

Deve lamentar-se de a) ter um sistema político e judicial desadequados ou pouco funcionais, de b) não ter verdadeiras alternativas de escolha política (vai voltar a ter os mesmos [menos] candidatos de 2001 – representantes de dois momentos de ruptura da nossa história) e de, ao que parece, c) não importar quem ganhe as eleição desde que faça as coisas bem feitas ou esteja convencido de que assim fez. E nem vale a pena falar das condições de vida dos cidadãos ou dessa coisa estranha e absurda que é exigir-se que aos políticos que cumpram com o que a lei estatui… E não há nada para, nós, cabo-verdianos, lamentarmos…

Sim, é que o Presidente Pedro Pires, questionado sobre a sua recandidatura, respondeu que «Não disse isso ainda […].» Isto é, que se recandidata; note-se: «[…] ainda»… E é ainda porque, como passamos a viver – nos últimos 5 anos – no melhor dos mundos possíveis e na mais bela e próspera das nações africanas, estamos ansiosamente à espera que o nosso D. Sebastião continue a ser o magistrado supremo da República e que, sem nevoeiro ou cajado, nos leve de volta à uma terra onde volte a manar leite e mel.

Bem, não será nem deve ser por isso…

Por uma questão de honra pessoal, entende-se que o PR queria se recandidatar e almeje a vitória; mas como a história não pode ser refeita nem apagada o melhor seria – dir-se-á – o mesmo recolher-se às suas memórias e à actividade cívica em prol de Cabo Verde e deixar a história seguir o seu curso natural. Até porque o seu lugar, nos bons e nos maus momentos do nosso devir como povo formalmente independente, está guardado na história da pátria cabo-verdiana e não valerá a pena borrar a pintura – o silêncio das acções às vezes é de ouro e uma eventual derrota nas presidências indesejável. Se a omissão, parafraseando Alexandre Koyré e Emmanuel Kant, é – em determinadas circunstâncias – um dever por amor à humanidade (ao caso, à caboverdeanidade), nestas circunstâncias é exactamente o contrário.

As circunstâncias exigem a(s) candidatura(s) do Presidente Pedro Pires e do Dr. Carlos Veiga; será uma forma de, também, mostrarmos ao mundo que podemos conviver com as nossas adversidades e que ninguém tem medo de perder. Sendo uma evidência que a não recandidatura do actual Presidente, que tem o dever moral de se apresentar nas urnas, tornaria as próximas eleições um acto quase plebiscitário face a candidatura quase certa do Dr. Carlos Veiga. O que seria empobrecedor da nossa democracia; seria como que um remake – agora com eventuais candidatos – da segunda eleição do Presidente Mascarenhas Monteiro.

Acabo de ver na TVE a cerimónia de encerramento da XV Cimeira dos Chefes de Estado e de Governo Iberoamericanos em Salamanca e de escutar um discurso inspirado e inspirador do Presidente do Governo espanhol, José Luiz Zapatero, que disse que: «Toda a Pátria deve ter as suas raízes nos céus; mas o que nos deve guiar devem ser os nossos valores.» Assim é, valores pessoais e colectivos – estes exigem dos representantes da pátria, a cada momento, a assunção de representantes não somente políticos mas essencialmente desses valores que nos tornam uma entidade com uma identidade e um futuro comuns. O pessoalismo deve, tem, na acção política, ceder perante aquilo que é o interesse da nação; se existem custos, o que fazer? Citando Nazim Hikmet:

«Se eu não me queimo
Se tu não te queimas
Se nós não nos queimamos
Como podem as Trevas fazer-se Luz?»

Uma coisa é certa e há que acordar com o Senhor Presidente da República: não vale a pena chorar sobre leite derramado, pois já não há leite! E lamentar podemos todos, pois, como dizia o profeta Jeremias, «De que se queixa o homem? Queixa-se dos seus próprios pecados». Mas de pecados sem mel… Destes e doutros (des)lamentos vai a pátria sendo feita; talvez venha a parir algo de bom – para além da matria; quem sabe… Amanhã nos dirá.

Texto publicado em Liberal, 16 de Outubro de 2005

1 comentário:

Ariane Morais-abreu disse...

"...não o deu, não se percebe porque teve de o fazer agora; e de forma tão desastrosa..." porque pexe ta morré pa sé boca e precisava justificar-se perante a opiniao internacional que é mais importante do que a opiniao e votaçao dos Cabo-verdianos !! PP nunca foi amigo do nosso povo porque é um "assimilado" complexado que sonhava de grandeza e intelectualismo, nao se deve esquecer onde nasceu...