terça-feira, 6 de abril de 2010

| QUANDO A FICÇÃO SUPERA A REALIDADE — OS PERIGOS DA ADIÇÃO NO ON LINE

A internet, nomeadamente os jogos on line, pode ser viciante? «Não, claro que não!» — dirá a maioria, negando aquilo que parece ser uma evidência. Mas esta realidade negada pode salvar dois cidadãos coreanos de irem para prisão. Um casal sul-coreano a deixou a sua filha de três meses — “Amor” de seu nome, em Português — morrer de fome, enquanto passavam o tempo a jogar um videojogo on line: cuidavam de uma criança virtual! durante cerca de dez horas diárias. Perante a verificação da morte da filha, chamaram a polícia. Feita a autópsia, o resultado tanatológico foi lapidar: a criança morreu de mal nutrição, de fome. O extraordinário é que pais não pareciam ter consciência do que tinham feito; da sua ausência e desta ter sido a causa da morte da filha. Assumiram a culpa, demonstram arrependimento — verdadeiro ou não, nem questiono isso; mas tal demonstra a dimensão da inconsciência em que caíram — e a mãe está grávida de uma outra criança.

A estratégia da defesa é simples, e adequada à situação em si; parece assentar em duas premissas fundamentais: (i) uma causa de desculpação emergente do viciação no jogo e (ii) no arrependimento, ainda tardio pois o facto consumou-se — mas que é levado em consideração. Mas, o vício do jogo, a adição ao jogo on line como causa desculpante, não me parece que venha a valer de muito ao casal em julgamento — não somente pela cultura coreana, mas porque o grau de negligencia é de tal ordem, tão radical que toca o absurdo. Faço este juízo se nunca ter jogado um jogo desta natureza, mas tento compreender a lógica dos mesmos e o como afecta o jogador.

No entanto, e no estrito plano do princípios do direito, as possibilidade do casal poder ser absolvido são consideráveis; assim como de levarem uma pena leve, tendo em consideração que está-se perante um crime — homicídio por negligência — que é punido com pena de prisão até cinco anos pelo Código Penal da Correia do Sul. Se fosse em Portugal, e de acordo com o Código Penal em vigor, que penaliza o crime em causa com uma pena até três anos ou com multa (homicídio por negligência simples) ou com cinco anos (homicídio por negligência grosseira), ao casal poderia ser aplicado uma pena suspensa — mesmo no caso da negligência grosseira — ou, se se entender que foi negligencia simples, uma multa! Mais: com a estratégia em causa, poderia acontecer que — com recurso a peritos que demonstrassem a viciação no jogo on line e a consequente alienação do casal da realidade e, logo, da incapacidade de cumprir com os seus deveres paternais, poderiam acabar por ser absolvidos.

A vida, nestes casos, não é levada em consideração, e na devida conta pelo Código Penal Português. A função do Advogado é ingrata, por vezes uma actividade porca, mas alguém tem de cumprir com esse dever — e dizer a si mesmo que é a lei, que todos têm o direito à defesa, que se é somente mandatário do acusado, e de que, usando da falácia, a lei é justa. A consciência é que não se convence com isso, mesmo quando se cumpre com o dever, defendendo o culpado como se fosse inocente — afinal é o que diz a Lei. O Mundo está fedendo, e afogamo-nos no mau cheiro. Deveria ser em qualquer coisa líquida ou espessa, pois assim poderia dizer: "estou na asneira, mas não estou dentro da asneira" — como digo do mar: "estou no mar, mas não dentro do mar". O pior é que o fedor agarra-se a nós, entra em nós! E somente a consciência consegue combatê-la. Tem as suas armas, mas a luta é desigual.

Ao escrever este texto, com o Sol a despontar em Lisboa, lembrei-me de, um dia destes, passando pela Rua das Portas de Santo Antão em Lisboa, parei no Café Mindelo para cumprimentar dois amigos, e acabei por parar um pouco para trocar umas palavras (até que estava com alguma pressa pois ia beber um Manhattan no Hard Rock Café com um outro amigo e falar um pouco sobre coisas de homens: trabalho, mulheres e, se desse, de trapalhadas políticas e do Rei Édipo que estava para estrear no Teatro Dona Maria II). Às tantas a conversa tornou-se interessante, até que um dos interlocutores se mostrou apressado: tinha de ir embora, pois tinha de ir falar com os amigos no Facebook! Uma realidade nova, e preocupante. O não Admirável Mundo Novo.

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