«Não há almoços de borla», Lei de Crane
Há uns anos decidi compreender a alma poética de um dos meus poetas preferidos, e pensei que somente perseguindo as suas leituras – descortinadas nos seus escritos e poemas – é que conseguiria perceber Jorge Luis Borges de forma adequada. Assim, de Gustav Meyrink a Adolfo Bioy Casares, passando pelo cabalismo judaico à compreensão da sua fé e esperança na democracia no contexto do seu tempo e das suas duas pátrias, passando pela leitura da sua correspondência à tentativa de compreender os seus amores, a sua cegueira... tudo fiz para poder ver a realidade com os seus olhos, a perspectiva criada pelas suas leituras. (A final um homem é, em parte, aquilo que lê.) Sabia, desde o início, que estava perante uma impossiblidade e que somente em parte poderia conhecer o que buscava; mas também sabia que «do que o coração está cheio fala a boca», como diz o meu Mestre, e isso era e seria bastante para perceber a essência do poeta.
E digo isto a título de exórdio de uma questão política. José Luis Neves, defendeu, numa nota e comentário no binóculo político, o PAI. Em circunstância diversa da que vivemos hoje passaria por ela com um sorriso interior, mas não nesta; não nesta... Resulta interessante a defesa do PAICV, com base numa teoria conhecida como «Institucionalismo» político (que o Primeiro Ministro é adepto; bastará vez as suas inúmeras citações de Giovanni Sartori, e conferir as suas acções políticas...) e jurídico. Este institucionalismo político foi defendido, à saciedade, durante esta campanha eleitoral e é, de matriz, o que pensa o PAICV (e o seu líder, José Maria Neves, faz questão de o lembrar, reiteramente). Todo o discurso do PAICV – quer dos apoiantes de Manuel Inocêncio Sousa quer de Aristides Lima – apoiou-se na lógica do institucionalismo político; no institucionalismo político e histórico do PAICV.
A chamada das tropas de José Naria Neves para a união (na sequência do que agora denomina de dissenso mas que já foi intriga de ratos e incompetentes, tentativa de deposição e de assassinato político do líder do PAICV e outros mimos politicamente incorrectos) e o que defende José Luis Neves – apoiante de primeira hora da candidatura de Manuel Inocêncio Sousa e um dos pontas de lança do arregimentamento da juventude –, e o PAICV do Primeiro Ministro não é, de todo, novidade e muito menos surpreendente. Era de todo previsível, pois é o que pensa o PAICV instituição e o seu líder: olham para o exterior e vêm nos outros agentes políticos como “não eleitos” no plano político, como inimigos da sua visão de sociedade. Só vêm «a sua democracia», «os seus valores» e o «seu» candidato sendo os demais outsiders ou inimigos da «sua» democracia, do «seu» pluralismo limitado e que gostariam monopartidário. O que se discortina, se infere, do que diz e do que afirma o Primeiro Ministro, é cristalino, no plano do pensamento político.
Pessoas há, no quadro politíco cabo-verdiano, que não consigo entender como não são capazes (!?) de somar 1+1 – no plano do pensamento e da estratégia política – e perceberem esta estratégia de José Maria Neves para a afirmação do PAICV, por via do consenso, como partido relevante em Cabo Verde. Afinal, somos um país onde abundam “cientistas políticos” e quejandos.
Agora, concordo com José Luis Neves: sair das organizações porque se discorda do líder... não faz sentido. O líder político (político, pois no quadro da teoria das organizações não será sempre assim) com quem se discorda deve ser enfrentado e combatido, no quadro institucional; e não abandonando "o barco" para uma afirmação a partir de exterior. E é/será por essa razão, essencialmente, que Aristides Lima e os militantes responsáveis do PAICV não abandonarão o partido... e José Maria Neves sabe-o bem. Pelo que, na sua perspectiva, só terá de lembrar a quem deve lembrar que, ao nível do institucionalismo histórico do PAICV (que este confundiu e confunde – jurídica, histórica e institucionalmente – com Cabo Verde desde o tempo do partido único, e nunca se comformou com a actual situação de pluralidade democrática externa introduzida pelo Estado de Direito democrático) que «a unidade do partido está primeiro». Quebrar a unidade, ou ser acusado de tal pecado é o pior do medos (vide, O Príncipe de Nicolau Maquiável). Basta ver os slogans «MAIS CABO VERDE» ou «MI E CABO VERDE», ou até mesmo «O CANDIDATO DA CIDADANIA» para se perceber o que está em causa, verdadeiramente.
É um problema ideológico, de concepção do Mundo e da política. Talvez seja tempo de se reler «Amirável Mundo Novo» de Aldoux Huxley, e de percebermos [tentarmos perceber, ao menos] que o que Aristides Lima tentou fazer foi livrar-se da máquina partidária (e dos seus objectivos institucionais) que considerou opressiva e violadora dos seus direitos fundamentais, mas o seu destino, lembra-lhe José Maria Neves, é ser um homem controlado pela máquina partidária, uma máquina funcional de ideias. O Primeiro Ministro relembrou aos militantes do PAICV a parábola da rã e do escorpião; resta saber é se a natureza ideológica vencerá ou não o anseio de liberdade (vê-se que, só agora, Aristides Lima percebe a verdadeira dimensão da Democracia e dos seus valores) e a responsabilidade de ser livre e de viver livre que um homem de saber tem para consigo mesmo e, num plano maior e institucional (não no de Giovanni Sartori: do pluralismo selectivo), para com a comunidade, para com o seu país e para com todos os seus cidadãos.
A final: o paradoxo de defender o institucionalismo partidário em eleições presidenciais (como fazem José Maria Neves, o PAIGC e José Luís Neves com a máquina de doutrinar a juventude oleada e a funcionar devidamente) é, insofismavelmente, uma defesa de uma democracia castrada, condicionada ex natura pois gera-se no seio do Governo por consenso de um pluralismo limitado; e tal é, de certo modo, a concretização do sonho do PAICV em 1991: ter um pluralismo monopartidário em Cabo Verde. Tal é, de todo, incompatível com o Estado de Direito democrático vigente em Cabo Verde desde 1992, mas nem por isso o PAICV deixa de ter o seu projecto autoritário e monolitista de sociedade herdada de Amílcar Cabral.
E nos últimos 10 (dez) anos é o que o PAICV tem estado a fazer... e nem os avisos dos perigos da regressão democrática – que, nomeadamente, tenho alertado há muito – despertaram quem deveria estar desperto para a realidade. «Demasiado temerário para ser verdade»; pensavam muitos, a despeito dos sinais evidentes de concentração de poderes e de desrespeito ostensivo da Constituição. «O povo está habituado à democracia»; pensavam ingenuamente outros (numa leitura também ela ingénua e apressada das teorias sobre a transição política para a democracia).
Tem sido, aos poucos, a afirmação do “Governo por consenso”, o estrangulamento da oposição sedada e o controlo efectivo das instituições democráticas e sociais pelo Partido relevante que vê a Oposição como um apêndice do sistema político. Tem sido uma revolução silenciosa, democrática... no plano formal. E tal levou a que alguns, num constitucionalismo ingénuo, a clamar – por via do Consenso parlamentar (a face mais visível desta tentativa de subversão constitucional) que mutilou a Constituição de 1992 na última revisão – «O Advento da Nova República».
É à esta revolução silenciosa que Aristides Lima opõe a [contra]revolução silenciosa da «cidadania»; é contra este consenso iluminista que José Maria Neves pretende no seio do PAICV e, alargando-o à toda a comunidade (o que logrou conseguir na Assembleia Nacional para violar a Constituição e fazer regredir direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos – e é destes que Aristides Lima fala... pena não ter tido a humildade de espírito para dizer o que eu esperava que ele dissesse: «Não votei a revisão da Constituição em 2010 porque violava os direitos fundamentais dos cidadãos e a Constitução»), dirigir a sociedade por via de uma de uma ideia de progresso de betão que o dinheiro do Millenium Challenge Account e outras fugazes alianças económicas permitiram construir para vender a imagem do homem-obra que há muito quer impor ao país: Manuel Inocêncio Sousa.
Aristides Lima, no epicentro desta realidade, poderia ter enfrentado o eleitorado com uma frontalidade maior, e este foi um dos seus erros maiores, um dos seus pecados capitais; as razões maiores da sua derrota pois é dificil combater uma revolução silenciosa e autoritária com uma cidadania vendada.
Do mesmo modo que dizer – como é o mote do PAICV na presente campanha presidencial – que somente Manuel Inocêncio Sousa é o garante da estabilidade política resulta, objectivamente, uma apologia contra a Constituição pois a matriz política desta Constituição (porque democrática!) é de pesos e contra-pesos, de equilibrio político e de controlo político do poder executivo pela Assembleia Nacional e deste e do Governo, em matéria normativa, pelo Presidente da República. Este não serve para tapar os buracos do Governo e da Assembleia Nacional mas para controlar e fiscalizar os erros, os excessos e as omissões governativas e legislativas.
Agora, para o PAICV somente Manuel Inocêncio Sousa pode garantir a estabilidade política, pela seguinte razão: o pluralismo que defende é limitado, é um pluralismo interno (ditado pelos órgãos do Partido) que não admite a lógica multipartidária ou vozes contrárias aos interesses do Partido que, do seu ponto vista, deve controlar todas as estruturas do Estado de modo a melhor distribuir as benesses sociais e, por essa via, controlar toda a sociedade, até conseguir dirigir (de formrava directa ou indirecta) a própria consciência individual e colectiva através do empobrecimento da sua capacidade de reacção social [com a pobreza de facto] e da sua capacidade crítica no plano ético [com a alienação via ludi, v.g., a televisão massificada, as redes sociais, os festivais], nomeadamente da ética democrática. É um discurso autoritário activo análogo ao de 1975-1991, só que mais polido, subliminar, perigoso e efectivo; como os ratos na noite: comem, assopram; assopram, comem... e quando a pessoa perceber já lhe comeram um bocado de qualquer coisa. Acto falhado a famosa analogia? Parece que sim...
Este discurso de arregimentação do PAICV para eleger o seu candidato (para garantir estabilidade e obras!, diz a Porta-voz do Governo, Janira Hopffer Almada, e cujo discurso disemina-se como vox Dei) é de quem não compreende a função presidencial na matriz constitucional da Constituição de 1992 em vigor. Esta não é o que o institucionalismo do PAICV deseja e pratica mas é o que é: uma Constituição inclusiva e de todos, não de alguns mas de todos. E é por não compreender esta Constituição, a matriz de Constituição aberta à participação e protecção de TODOS os cidadãos (e não o «Governo de consenso» de um partido ou liderança relevante do institucionalismo de Giovanni Sartori) que Manuel Inocêncio Sousa não só não pode como não deve ser Presidente da República de Cabo Verde.
Manuel Inocêncio Sousa teve uma postura ética que apreciei, e que critiquei em Aristides Lima: não se candidatou a deputado, defraudando o eleitorado, mas isso, sendo inteligente, não chega! António de Oliveira Salazar, e a história assim o testumunha, foi um dos cidadãos mais éticamente irrepreensíveis da hitória de Portugal (e de Cabo Verde também, já agora...), e foi o que foi no plano político. (Atenção! ó libelinhas, almas frias... não há, aqui, nenhum juízo ou termo comparativo mas mera analogia situacional.) A demais, a sua candidatura – em medida bastante para, em susbstância, a ferir de ilegalidade – é cada vez mais a candidatura do PAICV e não do cidadão Manuel Inocêncio Sousa, o que num país verdadeiramente democrático, com as instuições a funcioanrem devidamente, teria de ter consequências jurídicas. Mas a realidade é como é porque é, em verdade e substância, dirigida pelo PAICV como órgão de base do poder, directa ou indirectamente.
A Presidência da República não pode ser a extensão deste poder; que a candidatura de Aristides Lima demonstra (se mais provas fossem necessárias) ser numa dimensão mais monolíitica. A resistência é, também, interna... os ratos sentem o perigo, conhecem o perigo; por isso sobrevivem amiúdas vezes. E o mesmo acontece a quem percebe o seu sinal, como o da calmaria antes da tempestade.
Sobre a compra de votos, tal é, historicamente, somente um meio para alcançar um fim: o poder. É uma fragilidade da democracia: o voto consciente, o juízo, é uma arma; mas é preciso ter-se consciência e ser-se livre (maxime: não condicionado pela falta de pão ou pelo medo de perder a capacidade de o adquirir) para ela o poder ser. A compra de votos é um porco na pérola que é a democracia. E somente a ética democrática do Estado de Direito democrático censura esta forma de acessão ao poder.
Não vendo o PAICV no pluralismo multipartidário um "bem" ou "enriquecimento social", e tendo o seu modelo e ideia de sociedade como "o ideal de Cabral" – a Unidade do Partido com o Estado e as suas instituições, inclusive a Presidência da República – não verá, nunca, no condicionamento ou viciação eleitoral como um meio ilícito de «defender» o que considera o bem comum. É uma forma de jesuitismo político, e, assim sendo, não considera(rá) tais meios como ética ou moralmente censuráveis desde que consiga os seus fins: o poder by any means necessary.
Tais meios são censuráveis numa sociedade democrática, num Estado de Direito democrático e de pluralismo pleno; só que estas são realidades com as quais o PAICV não se identifica no plano substancial. Faltará, ao PAICV, o que se chama de falta de consciência da ilicitude, pois o seu quadro ético e institucional é substancialmente diverso daquele que foi instituido pela Constituição de 1992. Pelo que não lutar contra este sentido ético divergente do espírito dos tempos resulta, no plano da ética democrática, um non sense político. E resulta confrangedor ver outros partidos políticos, como a UCID e o PT, a não assumirem o imperativo do apoio necessário a Jorge Carlos Fonseca a fim de evitar-se a consolidação da ditadura do consenso em Cabo Verde (e consenso nacional, ao nível do poder institucional, e intra partidário no PAICV – o que Aristides Lima tentou evitar com a sua candidatura – com a saída de Pedro Pires da cena do poder formalmente instituido).
A final, prezado concidadão, tenho de emitir o presente juízo: quem não se identifica com a Constituição e os seus valores não o pode guardar. Não se pode colocar um lobo a guardar um cordeiro de um povo distraido e socialmente indefeso (esta é uma das muitas razões porque ainda não temos o Provedor de Justiça e o Tribunal Constitucional para defender o povo e a Constituição). É um facto simples. Os militantes conscientes do PAICV – os que são cidadãos antes de serem militantes – concordarão comigo, certamente. O país e os direitos das pessoas estão acima dos partidos políticos e dos seus projectos de sociedade, e é necessário que o povo real, a cidadania individual e genuína exerça o seu poder soberano dizendo não à opressão, seja ela patente ou subliminar, seja de muitos ou de alguns.
Votar em Jorge Carlos Fonseca é votar no pluralismo, na liberdade e na independência, não na independência, liberdade e pluralismo que querem outorgar como se fôssemos subditos de um reino do PAICV mas sim como homens livres. Mais do que votar no homem Jorge Carlos Fonseca deve-se votar na ideia de liberdade e independência necessária que ele encarna, hoje. No dia 21 irá votar-se para escolher o Presidente da República, o guardião da Constituição e das liberdades políticas, e a escolha é entre quem se revê nestes valores (Jorge Carlos Fonseca) e quem, sendo Delfim de José Maria Neves (Manuel Inocêncio Sousa), tem uma visão autoritária da República e quer consolidar a ideia de uma sociedade dirigida pelo PAICV em democracia formal.
As últimas eleições demonstraram que a democracia cabo-verdiana é uma coisa nua, e que o PAICV e os seus dirigentes entraram na democracia pluralista sem conceder nada de susbstancial; não mudaram nada. E a sociedade cabo-verdiana não pode aceitar essa revolução silenciosa levar-lhe de volta a um passado opressivo e opressor. E somente o voto em Jorge Carlos Fonseca pode travar a regressão democrática em curso.