segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

| EPÍSTOLA DEDICATÓRIA
A meu mui honrado Senhor, William, Conde de Devonshire

Possa agradá-lo,
Era dito entre os romanos (para quem o nome de Rei tinha sido feito odioso, bem como pela tirania dos Tarquínios, como pelos génios e decretos daquela República), diziam retomo eu, os romanos, apesar de pronunciado por um discurso particular, (se podemos considerar Catão, o Censor como tal) que todos os Reis deveriam ser classificados como bestas vorazes. Porém, o império romano que elevou orgulhosamente suas Águias conquistadoras acima do vasto e longínquo mundo, trazendo os africanos, asiáticos, macedónios, aqueus e a muitas outras nações subjugadas, uma especial servidão, com o pretexto de fazer deles súbitos romanos, não é também uma besta igualmente voraz? Se Catão era sábio em suas palavras, não menos o era Pôncio Telesino, que clamava abertamente às companhias de seu exército, (na famosa batalha que travou com Sylla) que junto a esta, Roma deveria ser igualmente arrasada, pois sempre haveria lobos predadores da liberdade a menos que pela raiz fosse devastada a floresta que os abriga.

Para falar imparcialmente, ambas as declarações são verdadeiras: que o Homem é um deus para o homem, e que o homem é lobo do próprio homem. É verdadeira a primeira se compararmos entre si os cidadãos, e o segundo se comparamos as cidades. No primeiro, há alguma analogia de similitude com a Deidade, inteligentemente pela Justiça e a Caridade, irmãs gémeas da paz; No outro, porém, os bons homens defendem-se, por dever, usando como santuário as duas filhas da guerra, a mentira e a violência. Em termos claros, recorrem à mesma prática das bestas vorazes. Os homens têm o hábito de condenar uns aos outros, por um costume inato, tal conduta ao verem reflectir suas acções nos outros homens. Desta maneira, como em um espelho, tudo o que se representa do lado esquerdo, aparece à direita e as coisas que estavam do lado direito, figuram à esquerda; outrossim, o direito natural de conservação, que a todos provém dos incontestáveis ditames da necessidade, não admite que tal ato seja vicioso ainda que o confessemos infeliz.

Alguns se admiram que até mesmo Catão (homem altamente renomado por sua sabedoria) faça prevalecer à hostilidade em vez do julgamento e a parcialidade sobre a razão, que a muito ele considerou equitativa no seu Estado popular os fatos que ele mesmo censurava na monarquia como injusto. Mas eu há muito estou convencido de que nunca as pessoas vertiginosas puderam reconhecer alguma prudência que fosse superior à vulgar, ou seja, à sua por que ela não a compreenderia ou, caso o fizesse, só a rebaixaria e infamaria. Se os mais sublimes actos e os mais célebres ditos (tanto para gregos como para os romanos), se tornaram motivo de louvor, foi assim mais pela sua grandiosidade do que pela razão e muitas vezes pela próspera usurpação (a qual nossas histórias tanto costumam censurar umas as outras) e, como avassaladora torrente com o passar do tempo arrasta tudo o que está à sua frente, sejam agentes públicos como particulares.

A sabedoria assim chamada, nada mais é do que isto; o perfeito conhecimento da verdade em todos os assuntos possíveis, o qual é derivado dos registos e ralações das coisas e que se dá graças ao uso dos nomes correctos e definidos, que obviamente, não pode ser fruto de imprevista perspicácia, mas apenas da bem equilibrada razão que, ao compêndio de uma palavra chamamos de filosofia. Assim, abre-se para nós uma estrada na qual avançamos na contemplação das coisas particulares até concluirmos ou deduzirmos o resultado de acções universais.

Observemos agora, quantas espécies de coisas existem que propriamente pertencem ao círculo do que cabe à humana razão conhecer; e tais serão os ramos que brotam da árvore da filosofia e, pela diversidade de sobre o qual eles são familiarizados, foi dada a esses ramos uma vasta diversidade de nomes. Ao que trata das figuras, chamamos geometria; a física incube-se dos movimentos, a moral do direito natural e à reunião pacífica destes ramos, faz-se à filosofia, da mesma maneira que os mares britânicos, o Atlântico e o Índico, (que foram baptizados conforme a diversidade das terras que banham), reúnem-se para formar o oceano. E quanto aos geómetras, estes têm verdadeiramente executado sua parte de maneira admirável. Tudo o que contribui para melhor auxiliar a vida do homem, seja devido à observação dos céus, pela forma como descreveram a terra, ou ainda pelo registo do tempo, seja finalmente devido às mais remotas experiências da navegação, em suma, todas as coisas que em nosso tempo diferenciam-se da simplicidade rude da antiguidade, devemos reconhecer que é uma dívida que temos para com a geometria.

Se os filósofos da moralidade tivessem cumprido seu dever com a mesma felicidade, desconheço o que poderia ter sido somado, pela felicidade de nosso engenho, no que consiste ao género humano, pois se conhecêssemos a natureza dos actos humanos da mesma maneira que conhecemos a natureza da quantidade nas figuras geométricas, a força da avareza e da ambição, sustentadas pelas erróneas opiniões do vulgar sobre a natureza do Direito e da Injustiça, prontamente tornar-se-iam débeis e viriam a desfalecer, gozando então o género humano de infinita paz (a menos que seja para habitação, em suposição que a terra torne-se estreita para o número de seus habitantes), sem deixarmos a menor pretensão ou alegação que seja favorável à guerra.

Mas agora pelo contrário, nem àquele que porta a espada ou a pena deveria ser permitido qualquer cessação; que o conhecimento da Lei de Natureza deveria perder seu crescimento, não avançando uma polegada além de sua antiga estatura; que os filósofos a tal ponto confrontam-se em facções diversas e hostis, que a mesmíssima acção por uns é verberada, e demasiado elevada por outros; que o mesmo homem em momentos distintos abraça opiniões distintas, e estimas suas próprias acções de maneira contrária ao que faria às acções de outros; Isto que digo, são claros signos e argumentos manifestos, que provam que tudo o que foi escrito pelos filósofos da moralidade em nada fez progredir o conhecimento da Verdade; mas, se o mundo o acolheu não foi pela luz que este lançou à compreensão, mas como entretenimento para os afectos, já que pelo sucesso de seu discurso retórico, foram confirmadas aos homens suas opiniões apressadamente aceitas. Assim, esta parte da filosofia sofreu o mesmo destino daquelas vias públicas que se abrem à todos os passageiros para travessia em todos os sentidos, como ruas abertas e estradas reais. Alguns nelas seguem por divertimento e outros por negócios, de forma que pelas impertinências de alguns c às altercações de outros, esses caminhos nunca têm um tempo para receber as sementes e sendo assim, neles nada se colhe.

O argumento para esta falta de sorte deveria parecer ser isto; Que entre todos os escritores daquela parte da filosofia, não há nenhum que adopte um princípio idóneo para tratá-la. Nós não podemos, como em um círculo, iniciar a manipulação de uma ciência de qualquer ponto que nos agrade. Existe um certo fio da razão que tem seu início na escuridão, mas conforme o desenrolamos nos conduz de maneira que tenha seu fim em uma luz mais clara, de modo que o princípio da doutrina deve ser extraído daquela escuridão e depois, a luz deve retornar a ela, de maneira que possa irradiar todas as dúvidas.

Assim, o que é frequente, toda vez que um escritor abandona aquela pista, seja por ignorância ou pela sua própria vontade, ele nos descreve os passos não de seu progresso na ciência, mas de suas extravagâncias que dela o afastam. Por isto, quando dediquei meus pensamentos para a investigação da justiça natural, foi anunciado pela própria palavra (que implica em uma firme vontade de dar a cada um o que é seu) de que minha primeira questão deveria ser: de onde procede que um homem queira chamar qualquer coisa como seu e não de outro? E quando achei que isto não procede da natureza, mas sim do consentimento (pois aquilo que a natureza a princípio colocará em comum, foi depois pelos homens distribuído em diversas apropriações), fui incitado por outra pergunta, a saber: para que fim, e sob que impulsos (quando tudo era igualmente comum entre os homens) os homens consideraram que fosse bastante adequado que cada um deveria ter o seu bem? Considerei que a razão foi que, se os bens fossem comuns a todos, surgem necessariamente controvérsias acerca de quem deverá extrair o maior prazer de tais bens, e das controvérsias segue-se de maneira inevitável todo o tipo de calamidades, as quais, pelo instinto da natureza, a todo homem é ensinado evitar.

Tendo chegado assim a duas máximas da natureza humana, uma proveniente da parte concupiscente, que deseja destinar ao uso particular aquelas coisas nas quais todos os outros têm igual participação e interesse, o outro procedimento é racional, que ensina a todos os homens afastar-se das dissoluções que vão contra a natureza, como sendo o maior dano que se pode causar à natureza.

Baseado nestes princípios, assim colocados, penso ter demonstrado por conexões evidentes, neste pequeno trabalho de minha autoria, primeiro a necessidade absoluta da existência de ligas e contratos, e com isto os rudimentos da moralidade e da prudência civil.

Quanto aos acréscimos, relativos ao regimento Divino, foram incorporados com o intento de que as ordens do altíssimo Deus, na Lei de natureza, não devam parecer repugnantes à Lei escrita, a nós revelada em Sua palavra. Fui também cauteloso em todo o meu discurso, de não me intrometer no referente às Leis civis de qualquer nação particular, quer dizer, que evitei aportar em qualquer praia, ciente de que estes tempos infestaram a todas com tempestades e escolhos.

Não ignoro o custo desta investigação sobre a verdade em tempo e engenho; porém, não sei avaliar seu resultado. Por sermos juízes parciais de nós mesmos, somos também parciais no julgamento de nossas produções. Eu então, ofereço este livro a seus Domínios, não a seu favor, mas sim à censura de Vossa Senhoria, como sendo de vosso julgamento por muitas experiências, não o crédito do autor, nem o zelo pelo trabalho, nem ainda o ornamento do estilo, mas apenas o peso da razão, que por seu favor me recomende sua opinião e aprovação. Se nisto a fortuna me favorecer, quer dizer, se lhe útil, se for judicioso e não for vulgar, humildemente o ofereço a Vossa Senhoria pedindo-lhe minha glória e protecção; mas se em qualquer coisa que errei, Vossa Senhoria ainda o aceitará como um testemunho de minha gratidão, visto que os meios de estudo que desfrutei por sua bondade foram consagrados em prol da obtenção de seu favor. Que o Deus do céu coroe Vossa Senhoria com longa vida nesta estação terrestre, e na Jerusalém divina com uma coroa de Glória.
Seu mui humilde e dedicado criado,
------ Thomas Hobbes, in O Cidadão

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