sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

  • OS (VERDADEIROS) MISERÁVEIS

          Num Mundo de maldade consciente e militante das instituições e dos que as corporizam, de indiferença carnívora dos bem-aventurados pelo sistema vigente de distribuição dos bens, como é possível nos admirarmos com o facto de pessoas boas se tornarem predadoras do outro em vez de construtoras do Mundo? Num mundo de miseráveis, Les Miserables, de Victor Hugo, é uma lição impossível, hoje por hoje, homo aeconomicus por homo aeconomicus, mão que lava a mão, até a limpeza total de todo o bem da sociedade. Dir-me-ão que «as coisas são como são», e que «as pessoas colhem o que semeiam», que tudo é acção e consequência. Em parte o Mundo é construído assim, assentirei.
.         Mas e quando não existe acção e existe consequência, injusta, construída pelo mal que não verga a consciência e transforma a mentira em realidade, infortunados em incapazes? A verdade, a final, acaba por ser a mais dolorosa de todas: o mal triunfa sobre o bem, como tem sido regra desde que Caim matou Abel e a Lei da Talião entrou na alma humana como a consciência da nudez em Adão e Eva. Mas o dia virá em que não será assim, o dia virá em que o mal terá a sua recompensa: boa medida, recalcada, sacudida e transbordante de bem-fazer o que couber na sua natureza. Um dia, a consciência do bem se fartará — e que fará? Pergunta retórica? Talvez.
          Jean Valjean não mudou o mundo, mas o Mundo mudou-o, desumanizou-o e renomeou-o: 24.601. O Mundo não tem alma, mas Javert tinha — a final e afinal Javert tinha alma. Esse, pois a alma dos Javerts de hoje compram-se e vendem-se nos pelourinhos de coisas e de afectos; o mercado dos futuros dos senhores das instituições. Tudo, até o sagrado sentido do bem, tem um preço, mesquinho, demasiado mesquinho; todos têm o seu preço, igualmente mesquinho: encontra o que o outro precisa e terás o seu preço. Ah, Albino Forjaz de Sampaio! Não é cinismo, não; é a verdade quase nua e crua. A nudez, como tudo, tem a sua ocasião. Só quem nada precisa, só quem está disposto a prescindir de tudo é que não tem preço. O que é igualmente verdade. Já não há Javerts, de verdade. Mas quem não precisa de nada é um outsider deste mundo, e, cedo ou tarde, será crucificado, de uma maneira ou de outra. Deveria haver um rio puro, e almas igualmente puras nas convicções.
         Os verdadeiros miseráveis são os sem alma, os que, por mera fortuna ou preço de alma, comandam o Mundo. Condicionam mundo dos outros, os miseráveis? «Quem tem muito dentro de si pouco ou nada precisa do exterior» — dizia Goethe. E os maiores terramotos nascem de uma maldade, ou de um pensamento resolutivo. Tudo porque há miseráveis por aí, verdadeiros miseráveis de Fortuna cheia e consciência vazia. Dores de Libera, ambição de Pecunia. Les miserables, os outros, tinham as suas razões e, já bem dizia Burlamaqui, «a razão aprova, necessariamente, tudo aquilo que nos conduz à felicidade verdadeira». A felicidade radical — diz-me o meu poeta.

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