- A LIBERDADE DE SERMOS O QUE SOMOS
É Domingo. Quero ir à Igreja, mas tenho uma miríade de coisas a fazer… mas Deus não deve esperar. Os seus conselhos muito menos.
Existem, diz Isaiah Berlin em Two Concepts of Liberty, "more than two hundred senses of liberty". Mas será que não basta a todos e cada um de nós o respeito por nós mesmos, pela consciência do limite da nossa liberdade perante a liberdade do outro para que toda a liberdade se realize? O Mundo é demasiado curto, a vida demasiado fugaz para se comprar as dores do outro e ter-se insónias de oiro: a bondade não é tolice; perdoar custa tanto como sofrer a indignidade, mas é, ainda assim, o caminho certo. Sim, é o caminho da liberdade de se escolher a liberdade do outro como uma barreira ética voluntária às nossas acções reactivas, legítimas ou não. O problema é que o Mundo é constituído de mudança, e todos podemos transmudar — como alerta Shi Nai An: "Não desprezes a serpente por não ter cornos, pois não sabes se um dia não se tornará num dragão".
As palavras… houve tempo em que eram corajosas; até Humpty-Dumpty reencarnar-se em escribas com o sonho do talento que só se vêm no subterrâneo do medo de não serem o Mestre-de-cerimónias das palavras que querem belas à patada: a omnibeleza da Rainha de Lewis Carroll. Malesherbes aprendeu-a de Luís XVI, quando o monarca escreveu-lhe uma carta dando-lhe conta que Turgot deveria ser afastado do poder por uma razão fundamental: o seu Ministro «pecava no bem que pensava fazer; pois não se pode obrigar um povo a ser feliz contra a sua vontade», sentenciou o Rei (o liberalismo de Turgot era, então, extemporâneo).
Se não somos felizes; não formos capazes de o ser por indignidade de alma, ambição desmedida, má fortuna ou porque temos um objecto de ódio que amamos por estar além de nós e que só destruindo-o poderemos almejar alcançar a satisfação da sua luz, chegar à penha da sua alma… o que fazer? — perguntar-me-á. Olhai para a serpente e sê sábio: deixai cair a capa da aristocracia bruta, da sine nobilitas do verbo e deixai entrar o Rei da glória: a beleza de ser belo no tempo próprio. Vem aí a mudança, o nascimento de um novo tempo! — clamam miríades de almas. Sempre foi assim, desde o início dos tempos deste confim do Universo: o solstício afasta-nos do eixo da nossa mãe prima, e fende-nos a nos mesmos… pedindo mudança. A grandeza é o ponto mais alto do início da queda; todos o sabem: de Chandragupta aos Ptolomeus de grandes sonhos; de Péricles a Luís XVI e Churchill vitoriosos e traídos pela demos ingrata que até no despertar adormece.
Se a asserção do prudentíssimo Paulo é verdadeira: libertas inaestimabilis res est, então só é possível ser-se grande em qualquer coisa quando estimamos a liberdade do outro escolher o que pode e quer ser, inclusive o anseio de ser melhores do que nós somos — se é que chegamos para ser referência de seja o que for — ou poderemos um dia vir a ser. Mas se não somos capazes disso, deveríamos fazer das tripas coração, renunciar a tudo e ajudar o outro a ser melhor do que é ou pensa que é. Difícil, dirá. Prefere o caminho largo, sem pedras pontiagudas — das que lança das ameias do seu castelo de ética de plasticina — para afinar o talento gravado? Que seja! Esta é a maior das liberdades individuais: sermos o que somos e não o que podemos ser, sendo que podemos ser melhores do somos. O ser humano veio ao mundo para deixá-lo melhor do que o encontrou; e só o pode fazer sendo aquilo que pode ser: uma pessoa humana. O respeito pela liberdade do outro é uma forma de ouvirmos a voz de Deus — digo ao meu poeta.
Imagem: Frey Bartolomeu de las Casas
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