segunda-feira, 10 de setembro de 2007


CABO VERDE: DESOVA DE TARTARUGAS

«PATRIMÓNIO COMUM DA HUMANIDADE» OU PATRIMÓNIO MUNDIAL?


«A propósito da aplaudível protecção das tartarugas em Cabo Verde li na imprensa cabo-verdiana que «[...] o PM disse que “Cabo Verde é o segundo país no Mundo onde as tartarugas desovam, o que constitui um património mundial extremamente importante”» e não pude deixar de escrever algumas linhas sobre isso; não sei se é por ter comido muitos ovos de tartaruga quando era menino e ter degustado a carne das mesmas e hoje ter a consciência pesada por isso – mas era menino e aos meninos se perdoa com facilidade – ou se é por achar que Cabo Verde poderia maximizar algumas das suas características naturais e não o faz.

Seja como for, é de todo verdade um facto: a espécie está em vias de extinção e merece a protecção de todos os que podem fazer algo para preservá-la; educar os jovens e a população em geral para a protecção dos ecosistemas marinhos e conexos é fundamental para o futuro do país e é de aplaudir e de louvar com entusiasmo, desde que seja sustentado no tempo e corresponda à uma visão estratégica ambiental com vista ao desenvolvimento.

Mas o que me motivou – além das memórias de menino e algum criticismo social – a lavrar este texto foi o facto de haver uma confusão quase generalizada entre «Património Mundial» e «Património Comum da Humanidade», que são institutos jurídicos substancialmente diferentes.

O património mundial é um bem ou um local com excepcionais características culturais e/ou naturais que, reconhecido e classificado pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Cultura, Ciência e Educação), pode aceder aos fundos de conservação e presevação do World Heritage Fund criada pela «Convenção sobre a Protecção do Património Cultural e Natural», adoptado pela Conferência Geral da UNESCO em Paris a 16 de Novembro de 1972 e ratificado por Cabo Verde a 28 de Abril de 1988. Como seriam os casos dos núcleos históricos de São Filipe e Chã das Caldeiras, na Ilha de Fogo ou da cidade velha em Santiago (o que, aliás, Cabo Verde já promoveu).

Seja como for, uma coisa é considerarmos este ou aquele espaço património mundial – como as praias Boavisteira e São vicentina onde ocorrem as desovas das tartarugas – e outra, substancialmente diferente, é a mesma ser considerada e reconhecida pelos organismos internacionais competentes. Infelizmente, os locais em causa não o são; mas podem vir a sê-lo...

Os espaços naturais de desova das tartarugas – santuários imemoriais para as mesmas – pela sua importância global para a humanidade, na perspectiva da preservação da espécie que nos terá precedido planeta, tem ou terá mais possibilidades de conseguir esse estatuto que os locais referidos e já promovidos por Cabo Verde, à imagem do que acontece, por exemplo, com o santuário nacional das aves de Djoudj, no Senegal ou com a paisagem vinhateira dourense em Portugal. Não é porque os outros lugares não mereçam esse reconhecimento – a meu ver merecem-no – mas porque há diferenciar o diferenciável e a singularidade da natureza e da vida da obra humana.

A consciência dessa dimensão de «património mundial» ou colectivo desses espaços de excelência de preservação da vida de uma espécie em extinção por parte do Primeiro Ministro de Cabo Verde deverá, espero, ter a consequências necessárias que é a) continuar a promover a protecção dos espaços em causa [nomeadamente com o programa de monitorização via satélite das tartarugas e na prevenção da contaminação desses espaços pelo turismo urbano ou economicista] e b) promover a sua classificação como «património mundial» pela UNESCO. Sendo certo que estes espaços têm já uma protecção jurídica internacional, nomeadamente pela «Convenção sobre Diversidade Biológica», assinada no Rio de Janeiro, em 05 de Junho de 1992.

No entanto, quando falamos de bens (no sentido técnico de «bem jurídico») ou espécies em vias de extinção, como é o caso das tartarugas, já não falamos de «património mundial» mas sim do conceito de res communis humanitas – de «património comum da humanidade»; isto é, de um «bem» que interessa à toda a humanidade e que não é passível de apropriação ou comércio em benefício particular de qualquer pessoa singular ou colectiva, ainda que Estado – serão os casos dos corpos celestes, da diversidade genética e linguística e dos fundos marinhos do alto mar. Neste último caso, com a emergência da Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar – conhecida como a «Convenção de Montego Bay» de 10-12-1982, é represdistinado o conceito latino de património comum da humanidade que tem subjacente uma ideia simples: existem bens jurídicos que pertencem à toda a humanidade e a sua preservação é um direito e um dever de todos.

As tartarugas fazem parte da memória colectiva do Cabo Verde profundo e a sua protecção – assim como da nossa diversidade linguística e étnica – deve ser um traço distintivo da estrutura geocultural da pátria e uma forma de promover essa coisa plana e serena que vamos aprendendo e construindo e que chamamos de caboverdeanidade.

Sejam do mundo ou da humanidade, são, antes de tudo, nossas. E se não preservamos o que é primeiramente nosso – porque nascem nas areias paridas pela nossa terra –, alguém o fará por nós?... Sempre que vejo uma tartaruga, olho e penso com nostalgia: Aquela deve ter nascido na mesma terra em que nasci... E será que elas sabem o que é o ius soli?... Não sei, mas comecei a pensar em adoptar uma tartaruga criola; é que elas – no silêncio dos dias e no pulsar mecânico dos satélites – também levam o nome de Cabo Verde ao mundo.»

Post scriptum: Vejo nas televisões europeias a forma bárbara como (ainda) se matam as tartarugas e sinto-me profundamente envergonhado de pertencer à mesma espécie desses algozes. Ah, sei que (já o ouvi…) correrá mundo o comentário: são cabo-verdianos, bárbaros da faca. Desta vez ouvi e pensei que - atentando no horror que vi - havia um pouco de verdade nesse juízo. Se, colectivamente, não somos culpados por acção, somos por omissão; pensei e resolvi represtinar este texto publicado algures há cerca de dois anos.

Para mim é claro: até mesmo comer tartaruga deve(ria) ser considerado crime! E, assim, vamos ficando cada vez mais pobres...

Virgílio Rodrigues Brandão

2 comentários:

Salvadorvet disse...

Parabéns pelo teu blog e parabéns por abordares um tema muito caro para mim, porque o objectivo da minha vida é a defesa da biodiversidade, e mais importante ainda quando se passa relativamente à minha terra-berço.

Um grande abraço
Salvador Mascarenhas (Tutim)
Ps. Outra espécie de grande importância nas nosas ilhas são as baleias-de-bossa me que Cabo Verde é um dos pontos mais importantes para a sua reprodução.

NEGRA BELEZA DA COR disse...

Parabéns pela tua escrita esclarecida, como sempre.

É escabroso o que nos mostraram. A forma cruel como os bichos eram esquartejados, ainda vivos.
Nesse momento tive vergonha de ser Caboverdiano. Como tu, também eu, hoje, tenho remorsos de ter comido ovos de tartaruga.

bem hajas por esta chamada de atenção.