- A «BÍBLIA PARA TODOS» OU A MORTE DA BÍBLIA E A REDUÇÃO DE DEUS
A Bíblia é uma obra que não tenho entre a minha lista de livros preferidos, simplesmente porque é muito mais do que um livro. Faz-me falta, como os livros em geral, mas ela em particular! Assim, depois de ter lido oito versões das escrituras sagradas cristãs, tenho-me contentado, nos últimos anos, a revisitar uma tradução de João Ferreira de Almeida ou a ler uma passagem, diariamente, da King James no meu telemóvel. Não pensava, tão cedo, decidir ler o texto de uma ponta a outra — e de forma atenta. Mas não é que tive a notícia de que foi publicado uma nova tradução em português: «A Bíblia Para Todos»? Assim, lá me lancei, entusiasmado, a ler esta nova tradução da Bíblia.
Há muito que não tinha uma decepção literária tão grande, nem encontrava uma obra análoga com tantos erros. O primeiro erro aparece logo na primeira frase, com a introdução do advérbio «quando» que denuncia a natureza interpretativa — de compromisso ecuménico da moderna cristandade com outros grupos religiosos — e não meramente tradutora e de simplificação compreensiva da obra em si. Este advérbio vem truncar uma riquíssima dimensão interpretativa de Génesis I.1: «No princípio criou Deus os céus e a terra.» Parecerá coisa de pouca monta, mas não é! É uma questão de exegese; e no texto em causa a interpretação funde-se ao texto literal, retirando-lhe forma e substância interpretativa para quem entende, como eu, que houve dois momentos de criação da Terra no devir temporal que é descrito entre os versículos 1 e 2 do primeiro capítulo do livro de Génesis.
O texto, neste caso, passa a ter um outro sentido para o leitor; leitor que é, por si mesmo e segundo a natural liberdade de livre interpretação, um intérprete do texto que se lhe apresenta. O sentido interpretado passa, assim, a ser o texto a ser interpretado. O que tem e terá consequências sobejamente negativas na forma como se vê e se verá — o leitor mediano não deixará de o ver — a Criação em si e o homem pré-histórico a partir desta nova versão da Bíblia.
Como se não bastasse isso, Genésis I.3 (“E disse Deus: Haja luz; e houve luz.”) é traduzido na seguinte forma: “Então disse Deus: «Que exista a luz!» E a luz começou a existir.” Uma frase, a terceira do texto! e temos um livro — sagrado para muitos e memória dos antigos para outros (o que torna o ecumenismo, a partida, uma falácia bem intencionada) — com 2415 páginas assassinado. É a tradução «A Bíblia Para Todos»; para todos, menos para mim. Este é o segundo de quatro erros colossais que se descortinam logo no primeiro parágrafo do livro de Génesis desta nova tradução. E os erros acumulam-se nos parágrafos seguintes… e, note-se, só falo da página 17 de um livro com 2415 páginas. E já nem atento no aspecto formal do livro que, a um leitor comum e iniciante na leitura da Bíblia é passível de causar estranheza e confusão, pois assume uma disposição não tradicional dos livros.
Que ganhos se tem com isso? Nenhuns, a não ser para os estudiosos do Livro — que não serão os alvos primeiros da edição. Mas mesmo para estes, resulta estranho a disposição dos livros, mau grado a justificação constante da apresentação — que não tem um critério uniforme e, do meu ponto de vista, pouco convincente tendo em consideração os fins da obra em causa. Perceberei a lógica de igualdade aristotélica subjacente a tal critério, se fosse de aplicação universal, mas não! Só é aplicável às tradições religiosas diferentes, não ao cidadão… o destinatário primeiro da obra. Mas esta é uma outra dimensão da questão…
A primeira conclusão que tiro, desde já, é que esta tradução, ao querer simplificar, procede à uma subversão ontológica de Deus e retira o sentido teleológico da Criação do texto, impossibilitando qualquer cotejo lógico da ciência — no seu actual estádio — com o relato da Criação como facto histórico. O que é de gravidade extrema no plano teológico, pois enfraquece as posições de fé do cristianismo em frente da razão como ciência.
A ponte compreensiva entre as várias facções do cristianismo, e destas com o judaísmo, não deve ser feita com o corte da corda que une aquelas: com o sacrifício (i) de uma ideia de Deus omnipotente e (ii) de um Verbo divino criador como a Luz da existência (iii) com um plano para a pessoa humana no devir da história e da existência. Estes dois aspectos, sendo que o segundo não é compartilhado pelos outros povos e religiões do Livro (o judaísmo e o islamismo), são fundamentais para o cristianismo — tanto quanto a ressurreição. E esta tradução, «A Bíblia Para Todos», briga com estes valores fundamentais do pensamento e da ética cristãs; e vai para além do farol da razão que foi bandeira de Lutero e demais reformadores da Igreja — a liberdade de livre interpretação das escrituras (é necessariamente pleonástico). Mas esta livre interpretação é de ordem subjectiva, e não pode — seguindo a lógica do glosadores do Talmude ou dos comentadores da cristandade medieva — é integrar a interpretação no texto dando-lhe uma dimensão objectiva na forma, na compreensão literal da mesma, que é dimensão hermenêutica mais básica para o leitor comum.
Genésis I.3 (“E disse Deus: Haja luz; e houve luz.”), traduzido na forma: “Então disse Deus: «Que exista a luz!» E a luz começou a existir” consubstancia — assim como a questão do mal no sentido maniqueísta — uma redução da grandeza de Deus (o que, em última análise, é a negação de Deus como conceito) ao expurgar da divindade a luz. Assim como a autonomia do mal diminui a totalidade de El Eloha, o Deus criador, a emergência da luz no momento da Criação demanda a conclusão de que ela não existia antes. E o verbo divino, então, no sentido hermenêutico que emana do texto em causa, deixaria de ser a Luz do Mundo antes da criação deste, e Deus não poderia ser Luz (e até o argumento de que existe luz em sentido físico, ético e teológico não procederá nesta sede, naturalmente… pois nada é ou pode ser subtraído a Deus). O que, do ponto de vista do cristianismo, é um contra-senso. Uma heresia, dir-se-ia noutros tempos. E digo-a agora: é uma heresia! Uma interpretação herética do sentido das escrituras, que no plano do texto em si quer na globalidade das escrituras.
Esta tradução, se bem que legítima e com louváveis intenções, não constitui uma mais-valia para o cristianismo da actualidade e muito menos para os fins últimos do cristianismo, pelo contrario! A equivalência semântica não deve, nem pode, levar a alterações formais que alteram a substância do texto bíblico. Mas esta tradução, se bem que avisa que «procura preservar certos aspectos formais do texto original», vai longe demais: assassina o texto bíblico logo no início e, no plano teológico, apresenta um Deus menor ao leitor e uma terra inicialmente sem ordem, que não é a mesma coisa que vazia — o que tem um sentido hermenêutico — contrário às tradições cristãs.
Como se não bastassem o ateísmo e os tocadores de tambor da “morte” de Deus, agora temos um texto Bíblico que, além de matar o conceito tradicional de Deus, abre brechas insanáveis perante a ciência ao nos apresentar uma Terra criada “sem ordem”; o que é absurdo pois contraria a natureza em si e a história geológica do planeta. Parafraseando Salomão: «Há caminho que ao homem parecem direitos, mas cujos fins são caminhos da morte» (Provérbios XIV.12). Nada poderia ser tão assertivo como esta asserção do sábio Coélet.
---- Prima forma: Liberal on line.
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