Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay — Sancho Panza in Don Quijote de La Mancha
- OPAD-CV. A LAVAGEM DE CÉREBRO E O LIVRE DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE DAS CRIANÇAS CABO-VERDIANAS OU COMO OS CEGOS CONSEGUEM VER
A propósito de uma afirmação de Carlos Veiga de que a OPAD-CV era uma organização típica dos regimes comunistas, análoga à organização fascista da Mocidade portuguesa, que tinha como objectivo a lavagem do cérebro das crianças cabo-verdianas — asserção que subscrevo sem reservas! —, o Primeiro Ministro José Maria Neves reagiu de forma atrapalhada, atabalhoada até!, e a Primeira Dama, D. Adélcia Pires, primeira Presidente da OPAD-CV (o marido, hoje Presidente Pedro Pires, era então Primeiro Ministro), veio a terreiro dizer que não, não era lavagem cerebral – era uma forma de organização da sociedade, de ocupar os tempos livres dos jovens que se “manifestaram a defender os seus direitos” e porque a sociedade era «desorganizada» e precisava de ser «organizada»; isto é: controlada. Isto num país em que eram proibidas as manifestações…
Adélcia Pires afirma o que todos sabem: organizou-se o país segundo a matriz do socialismo democrático — do comunismo, e com o respeito pela novel Pátria e a Nação e os seus símbolos como matriz formativa. Aliás, a mesma não diz que «o Estado organizou-se» ou que «o Governo decidiu» por determinado modelo de sociedade, não. Diz que o «Partido decidiu…» e o Partido, que se confundia com o Estado, com o colectivo, decidiu criar organizações para controlar as crianças, as mulheres, os trabalhadores e a sociedade em geral com instrumentos de opressão como as malditas milícias e os tribunais populares…
A OPAD-CV era o instrumento do PAIGC-CV para o controlo da liberdade de pensamento e formatação ideológica do cabo-verdiano, ainda menino, através da doutrinação dos mesmos num contexto lúdico (e nem vou deter-me na importância política deste mecanismo social de conformação da cidadania). A reformatação ideológica do homem cabo-verdiano ab ibnitio, na sua origem formadora, na sua meninice e juventude — na sua primeira idade, não era uma «lavagem de cérebro»? (Tentava-se, ao mesmo tempo, fazer o mesmo com a sociedade adulta, através da «reorganização da sociedade» que vinha desorganizada — isto é, com uma outra matriz ideológica de dominação — do tempo colonial.) Basta ouvir-se muitos dos membros da OPAD-CV para se perceber, mesmo para um leigo nas ciências adequadas ao diagnóstico de tais discursos, o que era, na verdade, tal organização: um instrumento de doutrinação das crianças pelo Partido «dirigente da Nação». Não ver isso, sim!, é algo pior do que cegueira… e que recuso-me a adjectivar, a qualificar… até porque os invisuais são privados de um sentido mas não da graça de pensar.
A lavagem de cérebro é, grosso modo, uma reforma do entendimento ou do pensamento; uma reformulação ou reformatação da forma de pensar o Mundo, de estar em sociedade e de entender o outro. No caso de Cabo Verde, segundo o ideário autoritário do Partido dirigente da nação — o PAIGC-CV: a matriz comunista. A fórmula é usada há muito tempo; não é nenhuma invenção da modernidade e muito menos da política enquanto ciência. Há uns anos trabalhava para uma dada instituição e o Presidente do Conselho de Administração começou a ter a política de contratar jovens inexperientes, muitos ainda em formação académica, em detrimento de pessoas com experiência comprovada. Percebi a razão de ser da sua política, mas não podia deixar escapar a oportunidade de aprender como ele pensava, como funcionava o seu pensamento no plano estrutural, e acabei por perguntar-lhe:
— Adeodato Pacífico (nome fictício), porque é que insistes em contratar gente jovem e sem estar devidamente preparada? Não seria conveniente contratar pessoas com maior experiência profissional?
E respondeu-me:
— Sabes, a razão porque opto por jovens é simples: os profissionais experientes têm muitos maus hábitos, e são difíceis de controlar; estes jovens não. Pelo que poderei moldá-los à minha forma de pensar e de fazer as coisas…
Sorri. Era isso, e muito mais. Sabíamos isso, e bastava-nos. Por vezes as palavras sobram, e o que não se diz é por demais eloquente. E era esse o caso. E não é que, em termos práticos (como era então previsível — hoje é política de emprego de grandes corporações), ele tinha razão no que dizia?
A formação e conformação ética das pessoas, ainda que não nos apercebamos disso, é a prática social mais comum que enfrentamos na modernidade e é a maior arma do Estado enquanto ente social — o sistema de educação é a prova acabada desta realidade: é a expressão de um determinado sentido de sociedade e que as políticas do Estado para a Educação, a Cultura (em muitos casos de contra cultura, de embrutecimento selectivo de determinadas franjas da sociedade ou de construção de referências icónicas transversais à sociedade) e a Justiça levam a cabo. Nos Estados autoritários a formatação social é, também e deste modo, de ordem política e ideológica mais funda; pelo que extravasa, por imperativo da própria lógica de tais sistemas políticos, as estruturas educacionais tradicionais. E começa, naturalmente e ao nível estrutural, na juventude em desenvolvimento da personalidade…
As crianças da Mocidade portuguesa faziam a saudação nazi, à imagem da Juventude italiana — cuja ideologia matriz influenciaria, v.g., a Alemanha hitleriana e as ditaduras do Brasil e da Argentina —, as cabo-verdianas uma saudação análoga, ainda que de matriz ideológica opostas; mas todas tinham em comum um factor: expressar um dado sentido de louvor e glorificação a um líder ou à ideia de nação e aos seus símbolos. Estas organizações, de matriz funcional com base científica, nomeadamente do comportamentalismo — tinham e têm como prática doutrinar as crianças num dado sentido de cultura, tidas como «revolucionárias» ou detentoras de dados valores fundacionais. Deus, pátria e nação, em regra — era a matriz do fascismo. Como o Estado autoritário de Cabo Verde entre 1975 e 1991 era de matriz socialista e ateísta, Deus desapareceu da equação, além de outras razões de ordem política; mas a lógica formativa e conformadora do homem cabo-verdiano era a mesma.
Espero que se perceba, agora e de uma vez por todas, o discurso da «perda de valores…» e a sua conexão à violência juvenil em Cabo Verde; assim como outros esforços de afirmação de primazia de dado sentido de instrumentos de cultura. Nada acontece por acaso, e a reorganização da OPAD-CV era previsível no presente contexto do discurso ideológico cabo-verdiano (por vezes de apropriação de um dado sentido da história e da memória colectiva) que, infelizmente, passa desapercebido ao cidadão comum.
Todas as sociedades autoritárias arregimentam as crianças, para ensiná-las a serem homens, melhores cidadãos, educá-las... na senda de sustentarem o seu modelo de sociedade. (Chandragupta, visionário, tinha como sua segurança e polícia secreta os seus filhos; e estes tudo faziam para proteger o Pai…) É a doutrinação social, a construção em massa de um dado modelo ético de homem — que Salomão já ensinava a fazer com as crianças: «Ensinai a criança no caminho em que deve andar, e, ainda quando for velho, não se desviará dele» (Provérbios, XXII.6). Por isso é que muitos cabo-verdianos adultos, ainda hoje, se recusam a reconhecer a bandeira e o hino nacionais emergentes da II República, e chamam Abel Djassi (Amílcar Cabral) de Pai (que é uma espécie de anagrama de Partido Africano da Independência e procede à uma duplicação subliminar da representação icónica da imagem de Amílcar Cabral e do PAICV). Não é, de todo, somente uma questão de quererem ou não; é, também, de não poderem. Estamos, neste plano, de um condicionamento psicológico de ordem subliminar herdada da I República e que a sociedade cabo-verdiana ainda não encontrou mecanismos de lidar de forma adequada.
S. Paulo — que distinguia a relação entre (i) o homem com Deus e (ii) o homem com o Estado — dizia aos cristãos em Roma que deveriam ser «transformados pela renovação do entendimento», do pensamento (Romanos XII.2). E isto foi a causa maior da perseguição dos cristãos no Império romano: o seu desrespeito pelas regras anteriormente existentes no plano religioso que a transformação de sentido ético e social da mensagem cristã transportava e que revolucionou a sociedade romana, mesmo sem esta querer. Um olhar atento ao pensamento de S. Paulo — nomeadamente a dimensão jurídica — e da sua evolução proporciona uma compreensão mais cabal desta necessidade do homem conformar-se à normalidade social ou transformá-la nas suas raízes. E foi o que o cristianismo fez ao Império romano… iniciou o ensino de uma nova forma de pensar e de ver o Mundo e a existência, introduzida lentamente no coração de Roma, até ter poder suficiente para se impor como lei (Édito de Milão, de Constantino e Licínio em 313 d.C) e acabar por ser o «normal» em todo o Império. Quem, hoje, no Ocidente, admite, por mera possibilidade, a existência de algo diferente do monoteísmo, e defenda o modelo religioso romano? Foi uma transformação social que começou com a transformação do entendimento, do pensamento. «Ensinai a criança no caminho em que deve andar, e, ainda quando for velho, não se desviará dele» — asseverava com razão Coélet.
É que no que às crianças diz respeito, a situação é bem mais simples: a sua idade mental permite que, facilmente, a sua formatação ética e ideológica seja feita com naturalidade pois a sua personalidade está a ser formada, em desenvolvimento. Neste aspecto, estes movimentos, quer a Mocidade Portuguesa quer a Organização dos Pioneiros de Abel Djassi e organizações análogas constituiam instrumentos políticos que brigam com o princípio do livre desenvolvimento da personalidade da pessoa humana.
Poderá ser uma questão de cegueira, de se ser incapaz de ver ou não ver esta realidade. O que sei é que não sou cego quanto a isto. Poderei ser estrábico no que concerne à compreensão cabal da mecânica quântica, mas não quanto a este aspecto. Agora, concordo com o Primeiro Ministro José Maria Neves: não faz sentido cercear a liberdade das pessoas — nunca fez sentido! Mas, disse que não faz sentido, hoje, cercear a liberdade das pessoas. E anoto o «hoje» da sua afirmação. E pergunto: Mas, e durante o regime autoritário do Partido Único do PAIGC/CV, fazia sentido cercear a liberdade das pessoas ó M.I. Primeiro Ministro José Maria Neves? É que não existia em Cabo Verde a liberdade de locomoção dos cidadãos para o estrangeiro (de emigração — que dependia de «autorização de saída» do Partido), de reunião, de manifestação, de pensamento, de livre expressão... Era essa a «liberdade», a «tolerância» e a «dignidade» que se ensinava às crianças cabo-verdianas? A opressão social, a castração do maior bem que o homem tem depois da vida? Give me a break, Prime Minister! A realidade não se engana.
A verdade é simples: A OPAD-CV era uma organização de natureza política e cerceava a liberdade de pensamento e o livre desenvolvimento da personalidade das crianças cabo-verdianas. É um facto histórico objectivo que vai para além da percepção dos sentidos ou da interpretação subjectiva do devir histórico cabo-verdiano.
A repristinação desta organização não constitui nenhum bem à comunidade, pelo contrário; é um desvalor histórico, uma desconsideração da memória colectiva e um, mais um, mau sinal dos tempos. Pode, sim, trazer algum bem ao novo mundo amarelo do PAICV por via da mensagem gráfica subliminar que as crianças levarão aos seus progenitores e para a sociedade em geral. A pseudo ressurreição da OPAD-CV neste ciclo eleitoral não é, de todo, inocente. Assim como não o foi o famoso fundo amarelo do boletim de voto de certo candidato em eleição passada… Não querer ver é cegueira moral, sim. E nisso tenho de concordar com a Primeira Dama Adélcia Pires — e eu sou daqueles que teimo em ver o que deve ser visto.
A dignidade das pessoas demanda liberdade — a que não se tinha durante o regime de partido único que pariu a OPAD-CV, braço cívico e ideológico do PAIGC-CV entre as crianças —, e uma liberdade plena, nomeadamente a do livre desenvolvimento da personalidade da pessoa humana. Esta fica ferida com a reactivação desta organização que, na verdade, não é meramente recriada mas sim reactivada em pleno pois esteve na clandestinidade social envergonhada ao longo de muitos anos… e agora arregimenta-se o saudosismo dos ex-membros no tempo próprio. Mais reitero: fere a memória histórica do país; e deveríamos ser mais cuidadosos com a nossa memória colectiva e com os ganhos obtidos com o Estado de Direito Democrático que, aos poucos, vão tendo um efeito boomerang...
Claro que tudo pode ter acontecido por acaso, que não havia nenhuma ideia ou plano de conformação e de formatação do pensamento do cidadão cabo-verdiano segundo uma matriz de pensamento baseado no socialismo democrático — comunismo; claro que tudo pode ter sido uma espécie de «obra e graça do Espírito Santo» ou uma extraordinária coincidência: a existência dessa realidade e matriz ideológica conexa à OPAD-CV e outras organizações criadas pelo PAIGC-CV… mas como tal forma de pensar o Mundo e a existência não liga com a ideia de Espírito Santo e o acaso, como Jean-Louis Boursin demonstra (As Estruturas do Acaso), não existe… só pode ser o que é! E não é uma questão de cegueira, não; é soment uns caloi t’krê ser Rei na terra d’gent ceg. E, parafrasenado uma das leis de Murphy, entre uma explicação complexa e uma simples, a simples é, em regra, verdadeira.
E sobre cegueira, há muito que estamos conversados… pois o 13 de Janeiro de 1991 retirou um glaucoma facolítico chamado Estado autoritário e de sentido único do PAICV dos olhos dos cabo-verdianos. E agora, agora… os cegos vêm! Eu, que nunca fui pioneiro nem militante de coisa nenhuma — nha militância era corrê orc e lê — sempre ouvi dos mais velhos e sábios: Ôi viv ne melom…
------- Prima forma: Liberal on line.
Imagem: Aristóteles meditando
------- Prima forma: Liberal on line.
Imagem: Aristóteles meditando
4 comentários:
Nunca fiz parte dessas organizações. Anda miúdo, via-as como inutilidades. Hoje, a constatação continua.
As coisas são como são e essas organizações tinham os seus propósitos e são bem claros.
Acompanhei no Facebook a este debate, naturalmente à cabo-verdiana, i.e, politizado e extremado q.b, e reparei que algumas pessoas diziam que Carlos Veiga pertenceu à Mocidade portuguesa.
Fiquei com a dúvida sobre esse ponto pois permitiria-me ter uma perspectiva, quiçá, mais global sobre o tema.
Amílcar,
gostaria de ver esta questão discutida com a razão... mas, o que fazer? E penso que o facto de Carlso Veiga ou qualquer outr cidadão ter feito parte ou não da mocidade portuguesa não é relevante para a discussão em si: sobre natureza da OPAD-CV e o seu papel de educador político das crianças e dos jovens cabo-verdianos.
Abraço fraterno
Percebo o teu ponto de vista.
Meti as duas organizações no mesmo saco porque não as conheço por dentro. Por fora, fica a sensação de terem o objectivo, bem definido, de arrebanhamento.
Embora mais modernas e sofisticadas, as actuais Jotas não têm o mesmo modus operandi?
As actuais jotas, sim; umas mais outras menos organizadas... :-)
Enviar um comentário