sexta-feira, 17 de setembro de 2010

  • PROSTITUIÇÃO INTELECTUAL OU INTELECTUAIS PROSTITUTOS?
Via, no outro dia, o programa «Conversa em Dia» de 02 Set 2010 na RTC e, a dada altura, fiquei de boca aberta… quando se falava de prostituição, de “prostituição intelectual”. Não quis acreditar no que via e ouvia: estavam quatro pessoas em volta de uma mesa, três debatedores e uma moderadora, com o país inteiro a ouvir, e não sabiam do que falavam!
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Primeiro porque demonstraram não saber o que é ser-se um “intelectual”. Segundo, porque confundiram prostituição intelectual com prostituição de intelectuais; sendo esta última, em rigor, uma quase impossibilidade no nosso tempo. E pergunto: Como é possível que, estando quarto pessoas numa mesa a falar de juventude, de valores e outros assuntos sociais conexos, dentre os quais a prostituição (que era temática agendada e que não emergiu de forma acidental), se confunda prostituição intelectual com prostituição de intelectuais? Mais: que se confunda a escolaridade ou formação académica com a dura condição humana de intelectual… E, o que é mais grave!, em consequência disso, grande parte do país ficou com uma ideia pioneira sobre o que é a “prostituição intelectual”.
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Que a nossa gente tem problemas a lidar com conceitos, isso já é consabido; vivemos e sobrevivemos com isso. Mas será pedir demais que se fale somente sobre o que sabe e se domina, ao menos ao de leve? As pessoas vão às escolas, institutos e universidades para aprenderem a aprender e a pensar, mas tais instituições parecem resultar em espaços pouco úteis para os mesmos. «Porquê? Mas porquê é que as pessoas não apreendem?» — perguntar-me-á. As razões são muitas, mas, no plano estritamente subjectivo da questão, esta lembra-me uma referência de Horácio, nas suas Odes, sobre Sócrates e o que podemos chamar de aprimoramento humano:
— Certo homem não melhorou com as suas viagens — disseram a Sócrates.
— Tenho a certeza de que não. Ele foi consigo mesmo — respondeu Sócrates.
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Por não percebermos o que é ser-se “intelectual”, porque pensamos que somos todos intelectuais a partir do momento em que aprendemos algumas coisas na Escola ou na Universidade, é que viajamos sozinhos na soberba e não chegamos a melhorar o que somos e a ansiar, cada vez mais, a melhorar e saber mais e, em última análise: “aprender alguma coisa antes de morrer”, como dizia Sócrates.
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Mas uma coisa é certa, e insofismável: a prostituição do corpo é um exercício de liberdade — em circunstâncias de excepção — ou da livre necessidade, consoante as circunstâncias causais, e deve ser compreendida no quadro social existente e não com considerandos subjectivos sem sustentabilidade em dados sociais objectivos sobre a comunidade onde emerge. Por vezes a prostituição revela-se um valor como acto em si mesmo e que só absolutismos éticos obtusos não compreendem.
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Agora, a prostituição intelectual é, pela sua natureza e em razão de quem a pratica, uma actividade perniciosa, profundamente danosa para a sociedade no seu todo: tem por base o egoísmo e por fim a subversão da realidade e não a sobrevivência pessoal ou de outrem que se encontra na raiz da prostituição (a existência “sempre” de alternativas é da ordem da fantasia de quem discursa de barriga cheia e prenhe de fantasias). E ela, prostituição intelectual, ao contrário da prostituição tout court, tem, também, uma dimensão omissiva…
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Não foi por acaso que o Imperador Alexandre Severo — a conselho de Ulpiano — punia severamente os homens de conhecimento que eram dados ao que hoje se chama “prostituição intelectual”: constituíam um perigo social, para o Estado e para a cidadania. Falamos de pessoas que sabem, mas sabem para o mal; e sabem para o mal porque usam o saber de forma amoral e instrumental; desde que sejam pagos em numerário, espécie material ou honrarias… o seu saber está disponível ao poder ou a grupos com poder ou com propensão ao poder ou a ter poder. Nestas circunstâncias o saber não consubstancia um valor mas sim um desvalor social. O que não falta no mundo são prostitutos intelectuais; assim como não faltam pobres sonhando serem abastados morgados.
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Os jovens falam em valores e em ausência de valores, mas fico sempre com a percepção de que não têm consciência do sentido poliédrico do conceito de valor. Acusam os mais velhos de não transmitirem “valores” ou “modelos” aos jovens, mas parecem não ter interiorizado os valores que reclamam para os “outros” concidadãos. Um dos convidados da RTC (Ladislaz Santos; espero que ter grafado devidamente nome) falava em “nível” — no mesmo sentido de ”classe baixa”, segundo expressão de uma Ministra do presente Governo… —, sem consciência de que tal epíteto é uma forma de estigmatização da sociedade por via da estratificação qualitativa dos cidadãos em razão da sua situação social. E, pelo seu discurso, assume isso como um valor social com alguma bondade… mas se pensar bem, o que encontrará é um discurso discriminatório em razão da origem ou situação social que colide com os valores constantes dos fundamentos da nação cabo-verdiana. Isto, sim! é um paradoxo… pois a discriminação, neste sentido, seria um valor.
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O debate foi, de todo, confrangedor.
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Os valores não são dados, são imanentes à dada sociedade e transmitidos e apreendidos pelos cidadãos e pela comunidade globalmente considerada. Álcool, droga, prostituição e violência sempre existiram; hoje haverá mais… mas importado em virtude e termos uma sociedade mais aberta e consumista; pois também importamos valores e “modelos”, a todos os níveis! Até o modelo de Estado — e os valores que propugna — foi importado, de um prêt-à-porter de segunda linha experimental da Europa democrática. Ademais, bom seria que tivéssemos em consideração que Valor é um produto da relação do sujeito com os fundamentos da sociedade em que vive, seja ela segmentada ou universal. Não é por acaso que encontramos em Nicolai Hartmann e Max Scheler a ideia de um direito natural de “conteúdo variável”.
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Todas as sociedades têm um conjunto de valores que emanam da livre necessidade da comunidade, não é dada, é apreendida de acordo com a ética que essa sociedade retira da natureza e adere ao longo do tempo e os agentes políticos têm o dever de sustentar com normas jurídicas adequadas e acções políticas necessárias e no plano da escolha certa (pelo que dever-se-á estar consciente de que nem todos os valores formais são, per si, universalizáveis). No plano substancial, é assertiva a afirmação de Montesquieu de que “Não tirei meus princípios de meus preconceitos, e sim da natureza das coisas”.
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Os valores não se dão, assim como as “mentalidades” não se mudam de forma voluntária — o tempo e dado sentido ético adquire-se naturalmente; e neste sentido o sistema educativo tem um papel primordial (e é por isso que o sistema educativo não pode ser gerido de forma casuística e conjuntural: deve ter preocupações geracionais) na formação e formatação da pessoa humana. Bastará olharmos para o sistema de multiplicação de certos extractos familiares na sociedade cabo-verdiana (com uma substituição da classe média colonial por uma “classe dirigente” no pós independência, e que geraria a intelectualidade balofa que hoje temos) para percebermos que a predominância de determinados valores positivos está conexa com a educação familiar e formal, em particular da educação religiosa ou conexa com ela, e outros, de natureza negativa, conexos com o darwinismo.
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E é este darwinismo social que engendra quer a prostituição somática quer a prostituição intelectual, esta ao nível da ambição e não da sobrevivência. E elas, reitero, agora de forma desnecessária, não são a mesma coisa! Messalinas ouve-as e haverá em todas as eras e sociedades — assim como a pobreza e as formas de pobreza —, Aspásia de Mileto foi só do seu tempo e lugar… mesmo quando ouvimos vozes como a da deputada italiana Angela Napoli dizer que, como citada no El País, "No excluyo que haya senadoras o diputadas que hayan sido elegidas después de haberse prostituído."
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Agora o que me preocupa é, ainda, ver a nossa juventude a não apreender os conceitos e a não perceber que não precisa de “modelos” para forjar a sua estrutura mental, emocional e moral, que o “modelo” de pessoa humana não pode nem deve ser dado pelas instituições — fazer apologia tal modelo e/ou aceitá-lo é estender e predispor a mente às cadeias da opressão; aceitando a ideia de sub-homem e/ou de super-homem — mas construída na liberdade de pensamento e de agir no quadro do que a humanidade em cada um de nós determina (e a humanidade inerente à pessoa humana não concede títulos nem classes ou níveis sociais…) no quadro de uma sociedade fundamentada na natural dignidade e na liberdade da pessoa humana. Um dia, quem sabe, talvez possamos todos dizer — e fazer! — como Propércio: Unusquisque sua noverit ire via (Deixemos que cada homem escolha o caminho que deve seguir).
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Agora, uma questão emerge e inquieta-me: deve um intelectual prostituir a sua alma, o seu saber e seu pensamento por amor à humanidade? Num Mundo cada vez mais feito de barricadas ser-se intelectual é uma actividade perigosa… para os que não se silenciam.
---- Prima forma: Liberal on line.
Imagem: Donna seduta — Joan Miró

2 comentários:

Amílcar Tavares disse...

A mim, o que me inquieta é saber estar para além, acima, das barricadas.

Virgilio Brandao disse...

Pois é, Amílcar...
Abraço fraterno