- A POBREZA DE CABO VERDE E A LIBERTAÇÃO DA CULTURA
A cultura é tão importante como o saneamento básico, a água ou o pão: pois a cultura ajuda a sanear a alma do mal e alimenta a alma (intelecto, vontade e emoções) como o pão e a água sustêm o corpo. Mas a cultura é um perigo para o poder, e o poder lida com ela de forma pragmática e consciência direccionada: comprando consciências, promovendo um dado sentido de cultura ou facilitando a emergência de formas ou manifestações de cultura que, como a Lei de Gresham, afastam a boa cultura: se preciso for destrói-se (haja poder ou sageza bastante para tanto) pontos nevralgicos da alma da sociedade; inclusive a memória.
Assim se empobrece um povo e uma nação. E uma nação pobre é mais fácil de ser controlada, de ser cordeiro sob a vara do líder e dos sequazes da República, inclusive de uma democracia formal e delegativa. E havendo um mínimo de desenvolvimento económico e social, a lógica autoritária reconstrói a história — pensa-a e reescreve-a segundo os seus interesses (o que é tão fácil de ser feito que espenta até as almas mais atentas). Assim fez Octávio Augusto ao destruir a República e sobre as suas cinzas fundar o império romano: Publio Virgilio Maron escreveu a Eneida, a história de um povo grandioso antes de o ser, usurpando a história e apropriando-se do mito.
Em Cabo Verde a tentativa de reescrever a história antes da Independência e da emergência da II República é patente, quer nos propósitos e princípios estruturantes do Estado quer nas realizações. Resultará, no mínimo, desonestidade intelectual comparar o que não é comparável. Concordarão todos comigo. Então, no que concerne ao combate a pobreza não é possível comparar os Governos constitucionais presididos por Carlos Veiga e os presididos por José Maria Neves. Porquê – perguntar-me-á. A razão é simples: as condições estruturais e conjunturais adversas do MPD, se comparados com as particularmente favoráveis do PAICV, não foi impedimento a que os Governos da II República criassem condições objectivas e estruturais para o desenvolvimento do país e tivesse uma performance relativa substancialmente superior na diminuição da pobreza. Do outro lado, as condições que o PAICV teve durante a sua governação — acesso aos mercados financeiros internacionais para financiamento do Estado e programas como o Millenium Challenge Account — não foi o bastante para lograr um resultado melhor ou mais consolidado.
São realidades distintas: o MPD liderado por Carlos Veiga herdou uma economia centralizada e fechada que vivia do peixe que lhe era doado e deixou ao país um legado de economia de mercado, aberto e com a «cana para pescar». Isto é, ainda que não pareça, um dado de cultura… com sentido transformador: algo a que demanda adesão de todo e cada um dos cidadãos.
Tenho como certo que a cultura de um povo é toda a sua memória; e não penso estar enganado, e muito menos sinceramente errado nesta asserção. E apagada a memória do povo, os escribas oficiais da história encarregar-se-ão de a reconstruir segundo o beneplácito do líder ou do sistema ético e social reconstruído. E por mais imaginação que se tenha, a realidade é muito mais rica do que a imaginação; e a realidade, como sempre, não se engana pois é o único que não precisa de Deus para existir aos nossos olhos.
Cabo Verde é materialmente pobre, por imposição da natureza; e isso é uma quase uma fatalidade que não tem, necessariamente, de condicionar a nossa existência imediata nem deve determinar o nosso destino colectivo: onde um chega como pessoa podemos nós chegar com povo. E assim é porque somos um povo rico de alma e em resiliência: um povo desenvolvido em consciência e na arcana arte de sobreviver (o que nos torna, segundo Darwin, um portentado humano); ainda que haja quem pense que não e nos deseje manter numa situação de guetizados do saber, alheios à libertação da consciência que é a cultura que nos poderá levar a ser o que podemos ser.
E resulta um paradoxo de situação: é quando se fala da ausência de "modelos" de referência para a juventude é que se destrói a memória de algumas das maiores referências humanas do país (por juízo ou não da História, no mesmo fim-de-semana da destruição a Casa Adriana Aristides Pereira, o Presidente do Estado do Cabo Verde autoritário era homenageado em Portugal). É dificil não pensar que é por aqueles serem contrários a determinado modelo e ideia de cultura. Dizem-me que que tenho demasiada gente em demasiada conta; e se calhar até que gostaria de que assim fosse; é que a imparcialiodade de juízo coloca-me perante dois diabos: a ignorância e a monocultura transvestida de liberdade democrática.
«Nem só de pão vive o homem» — diz o meu mestre. Eu digo: a cultura liberta o homem do instinto de pão, e dá-lhe consciência do que é a liberdade de ser independente para seguir o caminho do que pode ser. E falta ao homem cabo-verdiano a liberdade de saber ser independente: depois do país, é preciso libertar o homem ( e a mulher) cabo-verdiano para o saber e a cultura do saber, para a consciência de si mesmo e do seu valor intrínseco como pessoa humana e agente transformador da sociedade e repositório da sua memória. E sempre que se destrói parte da memória colectiva de um povo, como é, insofismavelmente, o caso da Casa Adriana, perece uma parte do futuro. Pena é que a intelligentsia cultural nacional — a oficial e a aparente, pois «há mais tudo sobre o céu e a terra…» — não perceba ou não queria perceber isso… e se remeta ao silêncio dos cúmplices. O que não me surpreende, de todo; é que existem demasiadas formas de pobreza.
Imagem: Jovem — Bouguereau
4 comentários:
Belo artigo Virgilio.
Lembro-me da maxima de Gobels: Quando oiço falar de cultura, saco da pistola. De forma manhosa os politicos nestas ilhas sacaram da pistola dês de sempre.
Abraço
Tchalê
Abraço fraterno Tchalé!
Virgílio
PS: Os silêncios também são acção...
O quê? Explica de uma vez por todas o que achas de Aristides Pereira, pode ser? Pare de rodeios e diz logo o pensas do nosso primeiro presidente da república.
Na minha opinião, o Pereira ainda não foi homenageado como deve ser.
Como é que elogias o Nino, este sim um autoritário que fez muitas maldades na Guiné-Bissau, e tratas com desdém o Pereira?
Não me estranharia se um dia desses fizesses o mesmo com o Amilcar Cabral.
João Semana.
O snhor Tchalé fala de Jean Baptiste Gobel, um ecclesiastico, ou de Joseph Goebbels,um dos teoriciano do nazismo. Tais referências sao mais do que duvidosas!! Nao é a primeira vez que este s'nhor ousa tal comparaçao com Goebbels quando fala de cultura. Sera a visao nazie, a sua da cultura cv?!! Figa canhota!! Nao somente os politicos "sacam da pistola" mas os ditos artistas fazem também bem pior quando matam no ninho o que pretendem defender, quando tentam impor as suas verdades unilaterais e descabidas aos mais jovens...
Enviar um comentário