terça-feira, 28 de setembro de 2010

  • A POBREZA DE CABO VERDE E A LIBERTAÇÃO DA CULTURA
A cultura é tão importante como o saneamento básico, a água ou o pão: pois a cultura ajuda a sanear a alma do mal e alimenta a alma (intelecto, vontade e emoções) como o pão e a água sustêm o corpo. Mas a cultura é um perigo para o poder, e o poder lida com ela de forma pragmática e consciência direccionada: comprando consciências, promovendo um dado sentido de cultura ou facilitando a emergência de formas ou manifestações de cultura que, como a Lei de Gresham, afastam a boa cultura: se preciso for destrói-se (haja poder ou sageza bastante para tanto) pontos nevralgicos da alma da sociedade; inclusive a memória.

Assim se empobrece um povo e uma nação. E uma nação pobre é mais fácil de ser controlada, de ser cordeiro sob a vara do líder e dos sequazes da República, inclusive de uma democracia formal e delegativa. E havendo um mínimo de desenvolvimento económico e social, a lógica autoritária reconstrói a história — pensa-a e reescreve-a segundo os seus interesses (o que é tão fácil de ser feito que espenta até as almas mais atentas). Assim fez Octávio Augusto ao destruir a República e sobre as suas cinzas fundar o império romano: Publio Virgilio Maron escreveu a Eneida, a história de um povo grandioso antes de o ser, usurpando a história e apropriando-se do mito.

Em Cabo Verde a tentativa de reescrever a história antes da Independência e da emergência da II República é patente, quer nos propósitos e princípios estruturantes do Estado quer nas realizações. Resultará, no mínimo, desonestidade intelectual comparar o que não é comparável. Concordarão todos comigo. Então, no que concerne ao combate a pobreza não é possível comparar os Governos constitucionais presididos por Carlos Veiga e os presididos por José Maria Neves. Porquê – perguntar-me-á. A razão é simples: as condições estruturais e conjunturais adversas do MPD, se comparados com as particularmente favoráveis do PAICV, não foi impedimento a que os Governos da II República criassem condições objectivas e estruturais para o desenvolvimento do país e tivesse uma performance relativa substancialmente superior na diminuição da pobreza. Do outro lado, as condições que o PAICV teve durante a sua governação — acesso aos mercados financeiros internacionais para financiamento do Estado e programas como o Millenium Challenge Account — não foi o bastante para lograr um resultado melhor ou mais consolidado.

São realidades distintas: o MPD liderado por Carlos Veiga herdou uma economia centralizada e fechada que vivia do peixe que lhe era doado e deixou ao país um legado de economia de mercado, aberto e com a «cana para pescar». Isto é, ainda que não pareça, um dado de cultura… com sentido transformador: algo a que demanda adesão de todo e cada um dos cidadãos.

Tenho como certo que a cultura de um povo é toda a sua memória; e não penso estar enganado, e muito menos sinceramente errado nesta asserção. E apagada a memória do povo, os escribas oficiais da história encarregar-se-ão de a reconstruir segundo o beneplácito do líder ou do sistema ético e social reconstruído. E por mais imaginação que se tenha, a realidade é muito mais rica do que a imaginação; e a realidade, como sempre, não se engana pois é o único que não precisa de Deus para existir aos nossos olhos.

Cabo Verde é materialmente pobre, por imposição da natureza; e isso é uma quase uma fatalidade que não tem, necessariamente, de condicionar a nossa existência imediata nem deve determinar o nosso destino colectivo: onde um chega como pessoa podemos nós chegar com povo. E assim é porque somos um povo rico de alma e em resiliência: um povo desenvolvido em consciência e na arcana arte de sobreviver (o que nos torna, segundo Darwin, um portentado humano); ainda que haja quem pense que não e nos deseje manter numa situação de guetizados do saber, alheios à libertação da consciência que é a cultura que nos poderá levar a ser o que podemos ser.

E resulta um paradoxo de situação: é quando se fala da ausência de "modelos" de referência para a juventude é que se destrói a memória de algumas das maiores referências humanas do país (por juízo ou não da História, no mesmo fim-de-semana da destruição a Casa Adriana Aristides Pereira, o Presidente do Estado do Cabo Verde autoritário era homenageado em Portugal). É dificil não pensar que é por aqueles serem contrários a determinado modelo e ideia de cultura.  Dizem-me que que tenho demasiada gente em demasiada conta; e se calhar até que gostaria de que assim fosse; é que a imparcialiodade de juízo coloca-me perante dois diabos: a ignorância e a monocultura transvestida de liberdade democrática.

«Nem só de pão vive o homem» — diz o meu mestre. Eu digo: a cultura liberta o homem do instinto de pão, e dá-lhe consciência do que é a liberdade de ser independente para seguir o caminho do que pode ser. E falta ao homem cabo-verdiano a liberdade de saber ser independente: depois do país, é preciso libertar o homem ( e a mulher) cabo-verdiano para o saber e a cultura do saber, para a consciência de si mesmo e do seu valor intrínseco como pessoa humana e agente transformador da sociedade e repositório da sua memória. E sempre que se destrói parte da memória colectiva de um povo, como é, insofismavelmente, o caso da Casa Adriana, perece uma parte do futuro. Pena é que a intelligentsia cultural nacional — a oficial e a aparente, pois «há mais tudo sobre o céu e a terra…» — não perceba ou não queria perceber isso… e se remeta ao silêncio dos cúmplices. O que não me surpreende, de todo; é que existem demasiadas formas de pobreza.

Imagem: Jovem — Bouguereau

4 comentários:

Tchale Figueira disse...

Belo artigo Virgilio.

Lembro-me da maxima de Gobels: Quando oiço falar de cultura, saco da pistola. De forma manhosa os politicos nestas ilhas sacaram da pistola dês de sempre.

Abraço

Tchalê

Virgilio Brandao disse...

Abraço fraterno Tchalé!
Virgílio

PS: Os silêncios também são acção...

Anónimo disse...

O quê? Explica de uma vez por todas o que achas de Aristides Pereira, pode ser? Pare de rodeios e diz logo o pensas do nosso primeiro presidente da república.
Na minha opinião, o Pereira ainda não foi homenageado como deve ser.
Como é que elogias o Nino, este sim um autoritário que fez muitas maldades na Guiné-Bissau, e tratas com desdém o Pereira?
Não me estranharia se um dia desses fizesses o mesmo com o Amilcar Cabral.
João Semana.

Ariane Morais-abreu disse...

O snhor Tchalé fala de Jean Baptiste Gobel, um ecclesiastico, ou de Joseph Goebbels,um dos teoriciano do nazismo. Tais referências sao mais do que duvidosas!! Nao é a primeira vez que este s'nhor ousa tal comparaçao com Goebbels quando fala de cultura. Sera a visao nazie, a sua da cultura cv?!! Figa canhota!! Nao somente os politicos "sacam da pistola" mas os ditos artistas fazem também bem pior quando matam no ninho o que pretendem defender, quando tentam impor as suas verdades unilaterais e descabidas aos mais jovens...