sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O RELATIVISMO DEMOCRÁTICO DE CORSINO TOLENTINO

Começo esta manhã, com o peso de estar em silêncio a sufocar-me. Ouvi a conferência de Corsino Tolentino na RCV. Ficou-me no ouvido – de um discurso de justificação do regime de partido único bem conseguido no plano retórico – e a ainda zunzem as alusões à «democracia imperfeita», o «[…] ideal que não se atinge» e que «[…] é reversível» pois é «obra humana.»

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A ideia de democracia formal imperfeita – e que muitos, nomeadamente os defensores da revisão da Constituição, querem formal –, é perigosa pois tem subjacente uma ideia de relativismo ético e valorativo susceptível de fundamentar uma democracia mínima em contra curso das conquistas fundamentais do Estado de Direito Democrático, além de poder legitimar um ataque aos direitos, liberdades e garantias e o princípio da irreversibilidade dos direitos económicos, sociais, políticos e culturais conquistados pelos cidadãos.

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A democracia cabo-verdiana não é uma democracia de filhos de uma ética menor, é uma democracia baseada em valores da universalidade cultural a que aderimos com a Constituição de 1992 e esses valores devem primar sobre qualquer concepção política que as contrarie. Daí os limites materiais da Constituição. É uma questão de princípio, de primado dos valores sobre o pragmatismo e o utilitarismo político, seja no plano retórico seja no plano das acções.

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Nada do que é humano nos deve ser estranho, como diria Terêncio, pois a acção humana deve ser controlada. Tudo é transitório e tem limites, até o relativismo ético quando o confrontamos com os princípios fundadores de dada sociedade. Por isso existe o Estado – lembremo-nos de Hobbes e Rousseau – e os limites da acção deste e dos cidadãos pela Ordem Jurídica. Como Hobbes dizia, em epístola dedicatória a Sir William, Conde de Devonshire, homini lupus homini (o homem é lobo do próprio homem). E é por isso que existe o Estado, e o Estado limitado segundo o espírito das leis, como bem esquadrinhou Montesquieu.

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No topo da pirâmide normativa, como ensinava Kelsen – e que foi preciso a tragédia do nacional-socialismo para a Europa perceber o valor substancial da Constituição como limite e valor – está a Constituição. Relativizar os factos e actos, até mesmo a acção política – como a ditadura de Partido existente em Cabo Verde até 13 de Janeiro de 1991 – pode ser um bom exercício intelectual, mas há que dizer que não devemos proscrever a memória nem relativizar o mal. E é porque a obra humana não é irreversível, que devemos ter algo que transcenda a vontade do homem detentor do poder, algo que represente o espírito da comunidade: os valores materiais que encontramos nos limites matérias da Constituição. Estes valores são imutáveis, pois imutável é a dignidade da pessoa humana. Se uns valores mutam, esta não muta e, por maioria de razão, não deve mudar.

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Eu até percebo que se queira defender a dama, até pelo peso histórico de alguns factos com dimensão seminal na construção da nossa identidade cultural mais recente. E o Corsino Tolentino é um homem do primeiro tempo venturoso da nação, e não é possível alhear-se a isso, em particular no plano ideológico. E não é que o Nuias da Silva tem razão, que houve uma mutação de valores depois de 1992? Mutação, sim; mudança e/ou perda, não. Um lapsus calami linguae? Não me parece. Mas não foi somente no sentido que diz e com as causas que invoca, mas entendo-o, entendo porque diz o que diz. O seu discurso encaixa-se, de todo, no discurso do relativismo democrático de Corsino Tolentino no quadro da ideia de que temos uma democracia formal e imperfeita. Mais do que isso: encaixa-se na ideia de menos garantias, mais segurança.

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Estamos perante um discurso justificador, com actores diferentes no plano retórico? Movimentações políticas imperceptíveis a muitos confirmam isso mesmo.Dá que pensar. O que vem chegando não augura nada bom. Matizes de olhar precisam-se. Agora, depois de compartir-lhar este escrito, já me sinto mais liberto.

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