| A LINGUA EM PERIGO E A FOME
Ontem, na sala Agostinho da Silva da Universidade Lusófona de Lisboa, assisti a uma Conferência de Aristides Lima, Presidente da Assembleia Nacional, que se debruçou sobre alguns aspectos da situação política nacional e sobre a revisão da Constituição. Anotei a omissão sobre a língua cabo-verdiana, quer por parte do conferencista quer por parte dos participantes (anotei outras coisas, mas que não vêm ao caso de momento).
Ao pensar nisso, lembrei-me de A Língua em Perigo de Knut Hamsun (que escreveu um dos livros mais extraordinários que já li, Fome; e que me lembra, sempre que o revisito, a minha pátria — faço sempre a analogia entre tempos idos da minha terra de poetas e Cristiania… «Era o tempo em que eu vagueava, com o estômago vazio por Cristiania, essa cidade singular que ninguém consegue abandonar sem levar impressa a sua marca...» — assim inicia Knut Hamsun a narrativa de Fome, uma espécie de Lazarilho de Tormes dos tempos modernos e substancialmente melhorada e conseguida. E diz-nos Knut Hamsun em A Língua em Perigo: «La lengua debe poseer todas las escalas musicales. El poeta debe siempre, en todos los casos, contar con la palabra temblorosa, la que me cuenta la cosa, la que con su acierto puede vulnerar mi alma hasta hacerle gemir. La palabra puede convertirse en color, en sonido, en olor; es tarea del poeta usarla de manera que funcione, que nunca falle y nunca rebote. [...] Debemos poder gozar y burlarnos con la masa de palabras; se debe saber y conocer la fuerza de la palabra, no sólo la fuerza directa, sino también la secreta. Las palabras tienen otras tonalidades, que se encuentran por encima, por debajo y al lado de ellas.»
O esquecimento é compreensível neste momento político do candidato presidencial — há que evitar situações que transportam os genes da ruptura em si mesmas e que, se possível, haverá que evitar o pronunciamento e a consequente e desnecessária exposição de flanco antes do tempo — mas estranho na plateia que se mostrou preocupada com outras questões, mas não com a cultura, em particular com a língua cabo-verdiana. Mas as palavras têm tonalidades, como diz Knut Hamsun, e, por vezes, o que não se diz grita na alma das pessoas, por vezes dos povos que não vivem somente de pão… e o povo de Cabo Verde tem fome de ver a sua língua mais e melhor dignificada. Mas, dignificada quer dizer que deve ser tratada como um bem e um valor do povo cabo-verdiano e não como coutada de alguns. Como o pão, que não deve ser somente de e para alguns mas sim de todos — o que demanda uma maior e melhor distribuição da riqueza do país.
A fome é bem distribuída; pois uns têm fome de pão, outros de cultura, outros da palavra de Deus, outros do poder e outros ainda — e esses são o cancro da humanidade, a quem roem como ratos famintos e imundos — de fazer mal ao outro, ao seu próximo. E estes últimos, sim, são os verdadeiros pobres pois a sua fome nunca é saciada e a sua pobreza insusceptível de ser debelada.
2 comentários:
Bom dia VB
Poderás até ter razão sobre a questão da lingua caboverdiana, mas na verdade o tema da conferência era sobre os aspectos que foram consensualizados na recente revisão constitucional, e a situção político-social de CVerde, e como sabes,a oficialização da ingua materna, não recebeu consenso, nomeadamente, da parte do MpD.
Aliás, e estiveres atento, o líder do MpD reafirmou no sábado na Praia, que o Governo do PAICV queria dividir os caboverdianos através da oficialização do crioulo, com a adopção de um alfabeto.
Pelo que, salvo devido e merecido respeito, o Presidente da AN Dr Aristides Lima não fugiu ao tema devido ao contexto pré-eleitoral. Asseguro-te, pelo que conheço do AL (e á lá vão mais de 20 anos), que ele é daqueles políticos caboverdianos que fazem política como deve, ie, com ética e honestidade, e nunca se furtou a discutir, descomplexadamente, qualquer questão da vida politica caboverdiana.
Sabes VB, por vezes, sem que a gente queira, podemos passar ideias erradas sobre o carácter das pessoas, e em política isso pode ser perigoso e mesmo manipulador.
Dia bom
;)
Helena Fontes
Helena, não sei onde foste buscar o tema nos termos em que o dizes, mas o documento entregue, e que apresenta o Presidente da Assembleia Nacional, diz: «Encontro sobre a situação político-social de Cabo Verde e os aspectos mais relevantes da recenté revisão constitucional». Não era nem teve como temática os “aspectos consensulizados”, aliás, nem poderia ter. E se tivesse, Helena, a questão da língua não era coisa a deixar-se passar pelos presentes, não achas?
O meu comentário, como deverás perceber, não tem nada, mas mesmo nada! a ver com Aristides Lima, Presidente da Assembleia Nacional, mas com outros aspectos. Enfim… Aliás, se te safisfaz, de alguma maneira, o conferencista esteve muito bem – salvo um momento acidental que não vem ao caso (aliás, gostei em particular de alguns aspectos do discurso de Aristides Lima).
O que referes sobre o Carlos Veiga, líder do MPD, só cimenta a minha estranheza e o sentido do comentário en passant sobre a língua (eu, como saberás, sou um desatento sobre o que se passa na minha pátria). E é legítimo, politicamente legítimo e não belisca a ética e a dimensão moral e politica de ninguém — «isso é que era belo»! —, nomeadamente do Presidente da Assembleia Nacional, que se seja prudente no discurso político e que se evite, nos momentos adequados, falar de questões fracturantes, como é, neste momento, a questão da língua cabo-verdiana.
Se não fugiu ao tema, parece. Provavelmente a estrutura do discurso — em que o conferencista improvisou, bem, seja dito — poderá ter influído nisso; mas não me cabe teorizar sobre isso, só verificar um facto. E o facto é que se omitiu a questão da língua, ponto final. Poderá dizer, como dizes, que a Conferencia estava balizada sobre «os aspectos mais relevantes da recenté revisão constitucional» sejam no sentido sentido positivo, e é legítimo pensares sobre isso, mas a verdade é que conferencista falou sobre aspectos negativos, nomeadamente a questão das «bases estrangeiras». Pelo que, como vês, o teu juízo não procede. Tudo que um político diz e não diz, devendo dizer, tem relevância, e não podemos, a bem de todos, fazer tabula raza das situações.
Eu, como digo, tenho opinião política, mas não faço política. A César o que é de César… E se fizesse, o que tinha a dizer não era, de todo, o que escrevi neste blog. Ah! A política, Helena, é uma actividade eticamente perigosa! E eu, o que tenho a dizer sobre as pessoas (que não sobre as coisas) digo de forma clara, sem sentidos subliminares… mas nunca com um fiat veritas pereat mundus.
Dia bom
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