segunda-feira, 29 de março de 2010


  • O DIÁLOGO, A NUVEM E O AMANHÃ QUE NÃO CANTA
A pobreza ou a origem social das pessoas não é, nunca foi, causa directa da criminalidade; ainda que, de certo modo, uma coisa acabe por potenciar outra em dadas circunstâncias — estas extraordinárias. Em circunstâncias de normalidade, a pobreza não serve de desculpa para as acções socialmente censuráveis. De forma alguma. As pessoas mais dignas que conheço e conheci ao longo da vida são ou eram pobres, mas pobres de coisas, nunca de alma. A verdade é que, do ponto de vista empírico, parece haver uma relação entre o bem-estar social e a alma das pessoas; e os pobres ganham nessa aferição entre o ter e o ser, pois parecem ser mais boas, puras e solidárias que os ditos «ricos» e «letrados».

Todos, de tempos em tempos, deveríamos nos despir de todos os bens materiais, como de pele material — como fazem alguns répteis ou fizeram Francisco de Assis e Tomás de Aquino —, para nos tornarmos mais humildes, menos ambiciosos de coisas e mais conscientes do que somos, do que nos rodeia e do outro. Um jejum de bens materiais ajudaria, certamente, muita da humanidade carnívora que nos rodeia a ser melhor do que é. No entanto, há que distinguir a pessoa em si e a sua situação — entender «o homem e a sua circunstância», como diria José Ortega y Gasset. E isso é uma tragédia que por vezes transborda para a sociedade, a mesma sociedade que por cegueira ou inabilidade não se constrói tendo em conta o seu fim último: bem-estar colectivo, para todos — pelo menos para a maioria, dentro da reserva do possível.

A culpa dos males sociais é, em larga medida, do todo e não do indivíduo que segue caminhos desviantes por imperativos de sobrevivência própria ou da sua família. Ao contrário do que muitos dizem por aí, não é o desenvolvimento que potencia o crescimento da criminalidade mas sim o contrário — a falta de desenvolvimento e a inerente falta de bem-estar, as necessidades fracturantes e desesperadoras emergentes da pobreza.

«A necessidade é inimigo da honra», ouvia em menino. Um santo pode, no limite, tornar-se um monstro a luz dos padrões morais dominantes. E da mesma forma como o mentir é — por vezes, e como bem ensina Kant — um dever, a verdade é que tenho dificuldade em censurar um pai ou uma mãe que se indignifica socialmente para suprir as necessidades da sua família. Mas será que se indignifica mesmo? O estado de necessidade diz-nos o que é o homem ou revela-nos o que deve ser o homem? Penso que, em dadas circunstâncias, é mais este do que aquele. É somente uma questão de perspectiva moral, análogo ao que Bertrand Russell demonstra sobre a nossa percepção das coisas em Os Problemas da Filosofia.

E é Bertrand Russell que nos diz que «Aquilo que passa por conhecimento, na vida comum, padece de três defeitos: é convencido, incerto e, em si mesmo, contraditório.» E, na verdade, conhecemos, assim, em parte — tomando emprestado uma expressão de S. Paulo — porque queremos saber o que nos é útil e não (i) o que as coisas são e (ii) muito menos movidos pelo amor ao saber ou ao outro. Esquecemos que, como diria Russell, que «toda aquisição de conhecimento é um alargamento do Eu […]». Perguntar às coisas e às situações, sejam elas quais forem, o que são e entendê-las na sua essência é o princípio do conhecimento. Isso quer dizer que devemos amar o objecto do nosso conhecimento, o que não quer dizer que ele — em si mesmo e por natureza — seja capaz de responder a todas as perguntas e de retribuir a afeição e dedicação inerentes ao processo de conhecer, mas que é um devir que nos levará ou contribuirá para o encontro da solução adequada, da escolha certa (em linguagem política).

Neste plano é que o diálogo é fundamental — não como meio ou fim mas como ponto de partida de um caminhar para um bem maior que é a compreensão do outro, das coisas e da realidade. O diálogo instrumental, deste modo, é, em si mesmo, uma contradição e, fatalmente — porque representa uma falácia —, leva a maiores males do que qualquer bem previsto por quem o utiliza. É que isso de ser-se ou querer ser-se cartesiano em política tem muito que se lhe diga. Assim como forçar a realidade para que se tome a nuvem por Juno pode até resultar, hoje. Mas o amanhã, se é verdade que não cantou até hoje, nunca se enganou.

Imagem: Sydnei (Júlio Santos)

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