sexta-feira, 19 de março de 2010

| MEMÓRIAS FRUTUOSAS, MIGUEL DELIBES E A VIDA ETERNA

Lembro-me. Acabara de sair de um Seminário sobre Direito do Ambiente na União Europeia e, depois de beber um copo de rioja com os colegas na taberna em frente da velha Universidade e nos despedirmos para cada um se mover aos locais mais recônditos da velha Hispânia, fui almoçar. Não conseguia deixar de pensar na referência que uma colega — um encanto de mulher, e de uma inteligência estonteante! que só tinha o defeito de estar apaixonada por um sortudo qualquer — fizera a Miguel Delibes. Mas como era possível não ter atentado nisso? — pensava para comigo mesmo, ao ver a surpresa e ar de triunfo e gozo que ela tinha no rosto ao descobrir que eu não conhecia Delibes (tinha ouvido falar no homem, mas daí a conhecer a sua obra seguia a mesma distância que o "abismal" e o abissal), um ícone da cultura espanhola.

Mas por que raio ou carga de água é que eu tinha de conhecer o homem!? Afinal, não temos de conhecer e saber tudo… não somos nem temos de ser a kind of Deep Blue of culture ou coisa parecida; só temos de ser humanos e ser sapientes o bastante para sobreviver neste Mundo e ao mal que o abraça. Almocei, pensando que tinha de ir até Madrid para ver uma peça de teatro aconselhado por um amigo. Mas ainda tinha tempo para dar cabo da minha curiosidade. E fui à procura de Miguel Delibes. Encontrei-o numa livraria, na primeira que procurei — nem precisei de ir à nenhuma das minhas preferidas. Comprei El Hereje, e fui até a Plaza Maior aproveitar o sol e a estonteante beleza de um dia de Primavera serôdia para ler um pouco.

Na companhia de um puro, um Fonseca, e um café solo que demandou um Bacardi 8 años, comecei a ler El Hereje. O alarme do meu telemóvel avisou-me de que era hora de ir a Madrid. Apanhei o autocarro Salamanca/Madrid e, acompanhado de Miguel Delibes cheguei num segundo ao destino. Entrei no Metro, e fui até às proximidades do Teatro; ainda tinha tempo para terminar o livro — pensei. E sentei-me numa esplanada, de alma afecta ao texto. Entre um chá e uns cigarrillos negros cohiba fiquei a ler. Quando terminei o livro, olhei para as horas e já era tarde. Perdera a peça… mas não fiquei aborrecido, nem por sombras de oiro perdido! Madrid tem outros encantos a noite, ai se tem!

E percebo agora que — e já, num abrir e fechar de olhos, me encontro noutro milénio — nunca perdemos nada, ganhamos. Miguel Delibes era mais do que um escritor, era um homem que tinha uma visão do Mundo e da humanidade que, com arte e engenho inusuais, soube transmitir aos seus semelhantes. Ao escutar as vozes de circunstâncias e não sentidas a verberar brocardos populares como «o Mundo fica mais pobre» and so on porque o homem, por imperativo da natureza, deixou o seu corpo emprestado para a terra… só posso sorrir, e discordar.

O Mundo não fica mais pobre quando morrem pessoas que, pela sua acção, contribuem para inundar a nossa existência de arte, beleza e de bem. O Mundo ficou sim, mais rico com a sua passagem pela existência; Miguel Delibes deixou o Mundo mais rico e belo, deixou-o melhor do que o encontrou. Teremos — tu e eu — a mesma graça ao abandonarmos o corpo que nos transporta? Sim, teremos na alma o bastante para legarmos alguma riqueza que a traça, a ferrugem e o fogo não corrompam ou consumam ao deixarmos este Mundo que tanto nos dá? Ao contrário do que se pensa, a vida eterna não é uma impossibilidade; bem pelo contrário, é a mais bela das possibilidades.

Imagem: Miguel Delibes

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