| A NÃO MOÇÃO DE CENSURA, A NACIONALIDADE E OS PÔNCIOS PILATOS DE CABO VERDE
Estava a ler uma documentação sobre o Julgamento de Jesus Cristo pelo Prefeito Pôncio Pilatos, e parei um pouco para meditar. O homem revelou-se de uma inabilidade política confrangedora, um verdadeiro aselha político, e, estranhamente — em razão das suas funções jurisdicionais —, um jurista bastante falho em termos técnicos, ainda que, ao que me parece, fosse um homem justo.
E lá veio a minha tendência de extrapolar juízos, de fazer analogia de situações; de pensar na minha Pátria. Voltei a ver e a ouvir as declarações do Primeiro Ministro sobre o encontro com os thugs — promovidos a «parceiros sociais» num up grade social que os terá surpreendido —, e fiquei a pensar que o MPD perdeu a possibilidade de, justa e devidamente, apresentar uma Moção de Censura ao Governo de José Maria Neves. Ou será que o MPD não está, neste momento, interessado na possibilidade de haver uma queda do Governo? Matéria que merece reflexão cuidada e que não cabe aqui.
Nesta questão da violência urbana, ninguém pode ficar de fora, todos temos de assumir as nossas responsabilidades; ninguém pode lavar as mãos — eu, como cidadão, recuso-me a fazê-lo. Os políticos muito menos, pois têm o ónus de encontrar a solução adequada e nada menos do que isso. O Primeiro Ministro não pode deixar de ter tempo para debater com o líder da Oposição e dizer que vai dialogar com organizações criminosas — é disso que se trata e não de lideres comunitários que trabalham em prol das populações mais desfavorecidas e que, em muitos aspectos, substituem o Estado ou colmatam as falhas da acção social dos Governos. E não vale a pena andar-se a tentar limpar a realidade, pois esta e as palavras não se lavam nem se limpam.
Creio que o Primeiro Ministro José Maria Neves tem boas intenções nesta matéria, mas disse o que disse; e não corrigiu o que se poderia ter como um lapsus calalmi ou lapsus linguae. Pelo que só se pode interpretar de forma literal o que disse. Agora, não ter tempo para discutir com o líder da oposição mas ter tempo para dialogar com organizações criminosas é, no mínimo, estranho — e revela uma inversão de prioridades e uma desconexão com a realidade do que é plano das instituições da República. Quem foi que, há pouco mais de dois meses, falava de «perda de valores» e de «desrespeito pelas instituições da República»? A memória não prescreve.
Conexo com isto, está o adiamento da análise do diploma que incide sobre a Lei da nacionalidade cabo-verdiana. O MPD fez bem em ter forçado o adiamento do debate parlamentar e, assim, analisar a questão da atribuição da nacionalidade ex lege aos descendentes dos emigrantes cabo-verdianos com a calma e a serenidade que merece. Pode dar votos, mas pode (este é meramente retórico) trazer ainda maiores problemas do que aqueles que procura dar resposta.
A revisão da Constituição, nomeadamente no plano da extradição de nacionais, mostra-se, no plano da lógica política, incompatível com esta Lei ou esta Lei com ela (no plano lógico e dos fins prosseguidos e não no plano valorativo, note-se). Esta lei poderá vir a tornar Cabo Verde, de uma forma ainda mais grave do que já é, um importador necessário e massivo de uma geração renegada e expatriada na diáspora. Portugal, v.g., resolveu o problema da importação de delinquentes — só terá efeitos práticos daqui a alguns anos, mas foi uma solução engenhosa — na última revisão da Lei da nacionalidade portuguesa. Cabo Verde quer ir no sentido contrário, e não deveria! O índice de criminalidade que temos já é bastante grave, e não precisamos de nos colocar em situação de receptor — até pela estrutura geográfica, social e económica do país — de deportados dos países desenvolvidos. Não podemos querer fechar uma porta com a revisão da Constituição e alargar o portão das nossas ilhas por outra via.
Na verdade, sou defensor de uma nacionalidade desejada, não uma nacionalidade dada. E quem a deseja deverá ser quem se identifica com ela e é, como cidadão, desejada pela sociedade. O país tem de ser pensado de forma sistemática, não de uma forma casuística e de acordo com interesses conjunturais. E, alguém tem de dizê-lo!, existe um link entre a criminalidade existente em Cabo Verde e a chegada de descendentes de nacionais cabo-verdianos expulsos dos seus países de nascimento e que, desenraizados, chegam ao país e caem nas malhas das redes criminosas — muitas com ligações transnacionais — e que levaram e introduziram novas formas de criminalidade para o país.
A nacionalidade não é um refúgio; não pode ser. Essa é a lógica da última revisão constitucional que feriu a nacionalidade cabo-verdiana, e concordo com ela; ainda que discorde das soluções, que tenho como desadequadas e inconstitucionais. Mas a nacionalidade não pode ser, também, um instituto que desobrigue os países de nascimento dos filhos dos cabo-verdianos e coloque sobre o Estado de Cabo Verde o ónus de receber aqueles que expulsam dos seus territórios. O Estado tem o dever de defender os seus cidadãos — todos! E todos são os nas ilhas, de Brava a Santo Antão, passando pelo Maio, Boavista, S. Nicolau… até os da Diáspora. E os filhos dos cabo-verdianos não precisam de ser, ex lege, cabo-verdianos; o que precisam é da nacionalidade do país de nascimento, para se integrarem e terem melhores condições de singrarem na vida social dessas comunidades. Serão cabo-verdianos por relação afectiva, que é o que liga, de facto, o cidadão à uma pátria e não o documento que constitui uma relação jurídica.
A nacionalidade afectiva é que conta, para esses cidadãos (basta vermos que muitos cabo-verdianos na diáspora, a maioria que detém outras nacionalidades, não usam documentos de Cabo Verde mas nem por isso deixam de se considerar cabo-verdianos). Na verdade, se a questão for vista de todos os primas do direito comparado da nacionalidade, a atribuição da nacionalidade cabo-verdiana aos descendentes dos cabo-verdianos acaba(rá) por prejudicá-los em dadas situações — desde a questão da nacionalidade de origem que deterão ao nascer à questão da expulsão ou deportação do país de nascimento — em vez de beneficiá-los. É o que os sociólogos chamam de «efeito boomerang». Cabo Verde deve, em razão das necessidades objectivas da sua diáspora e da comunidade residente, pensar de forma profunda a sua Lei da nacionalidade.
Ouvindo o Ministro dos Negócios Estrangeiros, José Brito, a falar na Assembleia Nacional fiquei a saber, eu os demais cidadãos nacionais que ouviram o debate na RCV, que se atribui passaportes nacionais a empresários e nacionalidade económica aos mesmos desde de 1993 em determinados consulados, nomeadamente em Macau. A nacionalidade não dá, adquire-se por efeito de Lei ou da vontade. Esta forma de reconhecimento da nacionalidade — efectiva ou por reconhecimento formal, através da por identificação por documento nacional cabo-verdiano detido por estrangeiros — é uma degradação da nacionalidade cabo-verdiana. Quem quiser deter documentos nacionais, que a adquira a nacionalidade cabo-verdiana nos termos prescritos pela Lei da nacionalidade, sem excepções! E, já agora, que fale uma das nossas línguas nacionais — o cabo-verdiano e o português — e conheça a nossa história; como exigem aos nossos cidadãos, de Portugal aos Estados Unidos da América, passando pela Holanda. Cabo Verde não é um Estado menor no concerto das nações, e deve agir como agem os demais; nada menos e nada mais; isso é o sentido mais nobre da soberania, da independência nacional.
O país não pode ser uma espécie de Pôncio Pilatos no colectivo. Sei que é difícil para o MPD — enquanto partido político — se posicionar nestas matérias, mas, como bem tem vindo Carlos Veiga a dizer, o interesse das pessoas está acima dos Partidos e os seus interesses; a que acrescento que os valores fundamentais da nação, aquilo que sustenta a alma pátria, não devem ceder à lógica dos interesses, sejam eles quais forem. (Já basta a última revisão constitucional, que foi, um dia se perceberá isso, um dos momentos mais tristes e vergonhosos da história do parlamentarismo cabo-verdiano.) Esta questão da nacionalidade, neste momento, é uma questão armadilhada, com custos consideráveis, quer para o país quer para o MPD (a conjunção pode ser alternativa…). O MPD percebeu isso — é a minha percepção. É uma questão a ser pensada com tamanha seriedade que demanda uma atitude de estadista de todos os deputados da nação; pois está em causa muito mais do que parece. Há coisas que a pátria agradece, outra que não! O povo é julgador, mas a história é o maior julgador; depois de Deus, é claro. E ela não deixa de censurar o censurável.
Imagem: Luis Royo (1984)
2 comentários:
Achar que Imigração = Criminalidade é um erro.
É Amílcar... infelizmenten muita gente pensa assim; inclusive em Cabo Verde.
Abraço fraterno
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