sábado, 25 de dezembro de 2010

  • DIES NATALIS, O NASCIMENTO DO HOMEM-DEUS E A ESPERANÇA DA DIVINDADE
Quando o Octávio Augusto, do seu trono imperial em Roma, quis saber o número das pessoas que governava e ordenou o grande censo, não sabia as consequências de tal decisão na história da humanidade e da perplexidade que as circunstâncias do nascimento de um menino em Belém causariam – e ainda causam – no Mundo. Desde que o homem se conhece que sabe, em sentido naturalístico, a sua origem: como nasce, e de quem nasce. Ainda que a concepção seja um mistério – por mais explicações que a ciência alarde –, o milagre da vida intra-uterina e do nascimento resulta dos factos mais espantosos da existência humana.

Dizer, como afirma o cristianismo, que Jesus Cristo nasceu de Maria, e que esta era virgem aquando da sua concepção e nascimento resulta, para o homem, o conhecimento natural e a percepção da natureza das coisas, um paradoxo, um facto contrário à racionalidade e feridor da experiência empírica das pessoas. A anatomia feminina, a natureza das coisas, assim como o estádio de desenvolvimento do século I, desmentem, categoricamente, essa possibilidade. O que, prima facies, seria bastante para afastar-se a possibilidade de concepção sem conubium e de parto que permitisse à uma mulher continuar virgem.

No entanto, a questão da virgindade de Maria coloca-se numa outra esfera de conhecimento, e num outro plano de existência: a nível exotérico e no plano da fé (um dos três sentidos essenciais à existência, no dizer de Aristóteles). Se bem que hoje, em virtude do desenvolvimento das ciências, é possível uma virgem conceber sem que tenha, forçosamente, de ter uma relação sexual invasiva, a verdade é que não é possível ter um parto natural e continuar virgem; no tempo histórico de Jesus e hoje. Sendo certo que, em boa verdade – no nosso tempo, e com os meios tecnológicos existentes –, é possível uma virgem conceber, ter um filho – recorrendo-se à cesariana – e continuar virgem.

Não é nenhum milagre, é simplistamente o uso da ciência em benefício da humanidade. Do mesmo modo que, mesmo em caso de parto natural – em que, naturalmente, a mulher deixa de ser virgem, mesmo no caso de mulheres com hímen complacente –, é possível, através da reconstrução do hímen, a mulher voltar a ser virgem. Anatomicamente virgem – note-se; pois pode-se ser anatomicamente virgem e não ser-se virgem em sentido próprio: a virgindade – almah, parzenos – não é ter ou não hímen, é não ter tido relações sexuais, seja qual for a sua natureza, nomeadamente com outra pessoa; é ser-se pura, intocada. Este é um dos sentidos históricos de santidade.

O facto de se estar perante um facto que, a data, contrariava a normalidade e a natureza levou a que houvesse lugar a várias leituras e interpretações sobre Maria e a sua virgindade; chegando Tiago, v.g., no Proto-Evangelho de Tiago, a afirmar – contra a natureza das coisas e dos factos narrados nos Evangelhos que testemunham e indiciam o contrário – a “virgindade perpétua” de Maria. Outros, como o rabino Simeón Ben Azzai, afirmaram que Jesus Cristo era filho ilegítimo de uma mulher casada. O mesmo se encontra em outros escritos, nomeadamente na Tosefa, ao afirmar-se que Jesus era filho de um soldado estrangeiro de nome Ben Pandera (ou Pantera), que tinha tido relações sexuais com Maria, denominada de Stada em muitos escritos, daí Jesus ser chamado, em escritos de origem judaicos, de Ben Stada.

Jesus Cristo, segundo o magno Origenes, introduziu a virgindade no Mundo. Não no sentido sexual estrito mas sim no sentido da pureza, da verdadeira santidade teleológica prescrita à humanidade antes da fundação dos mundos. O local de nascimento – assim como as circunstâncias do mesmo e os presentes (ouro, incenso e mirra) que o menino recebeu dos reis de terra longínquas – testemunham os sentidos os simbólicos que anunciavam a natureza e o sentido teleológico da entrada de Jesus de Nazaré no Mundo:

(i) Não é o local onde se nasce que determina o que somos e podemos ser; pois Jesus nasceu numa manjedoura, num lugar naturalmente pouco higiénico e digno, mas era (a) o Rei dos judeus, (b) Deus encarnado (c) que tinha como missão tirar (d) expurgar ex lege a imundície da humanidade e, assim, tirar o pecado do Mundo e (c) elevar o homem a um estádio existencial maior ao assenta-lo ao lado direita de Deus e ex lege, torná-lo divino, participante da natureza divina de Deus.

E Jesus não é de onde nasceu, mas de onde cresceu. Não era de Belém mas de Nazaré; era não da terra que o viu nascer mas da que o formou e o fez homem; não é no sentido do que hoje chamámos nacionalidade mas no sentido ético de construção da pessoa pela sua vivência social. Um carpinteiro pode ser Rei, e um Rei pode nunca chegar ser o que um carpinteiro é e pode ser.

(ii) A afronta moral da mãe e do pai putativo, a perseguição de Herodes e a fuga para o Egipto – com todo o simbolismo de outras cosmogonias, nomeadamente da egípcia e da sua identificação com Hórus – representam uma grandeza de fé, esperança e amor que ultrapassam o sentido moral de qualquer história no sentido literal. Jesus Cristo, desde o momento da sua divina concepção ao seu nascimento (a sua morte e a sua ressurreição representam, nomeadamente esta, o renascimento de um outro sentido de humanidade, de uma humanidade restaurada) sempre esteve sob o espectro do seu destino e que os reis magos anunciaram com as suas ofertas: sofrimentos, gloria e divindade (e com ele, de jure, a humanidade) nos lugares celestiais com Deus.

Estes são os sentidos simbólicos da mirra, do ouro e do incenso.

Jesus Cristo era um presente cósmico ao ser anunciado a sua concepção e ao nascer; era um desafio ao homem: acreditar na dimensão exotérica de tal concepção e nascimento, e um desafio à fé do homem em Deus e ao Amor e da confiança de José em Maria. Mas era, também, um desafio ao próprio Deus: viver como homem entre os homens para, sofrendo como eles, os resgatar para a eternidade vindoura. O dies natalis, que agora se celebra e que coincide, aproximadamente, com o do nascimento glorioso do Sol ou solstício de inverno – assim como o de Mitra e de Hórus (nascidos a 25 de Dezembro) – celebra o sacrifício e não o fausto.

O Natal, no plano simbólico, é o auto-sacrifício de Deus pela humanidade; o que se consuma com a Crucificação e o dies natalis do novo homem com a ressurreição de Jesus Cristo, depois de ter pregado aos espíritos em prisão e tê-los libertado. No dies natalis de Jesus Cristo não era o menino filho de Maria que nascia; quem nascia era o projecto de homem-Deus. Na verdade todo o universo ganhou uma prenda: Deus encontrou remédio para a solidão e, desde então, esperamos, todos os que vivemos em fé e na esperança, o cumprimento da apocatastasis.

O Natal é, na verdade, a celebração de uma realidade ex lege e do futuro, da divindade vindoura.

Felix dies natalis.

Imagem: Compaixão - William Adolph Bouguereau

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