IMIGRAR «SEM PAPÉIS» É CRIME NA UNIÃO EUROPEIA
Dizia Sancho Panza que “yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay”. E se muita gente não crê na existência de uma conspiração ocidental contra os mais pobres, a verdade é que a discussão de uma Directiva de Retorno dos imigrantes em situação irregular na União Europeia, assim como o reforço das fronteiras externas da EU no presente momento é prova bastante desse facto.
Todos os anos milhares de pessoas são expulsas da EU por se encontrarem em situação irregular. Durante o processo de expulsão ou de repatriamento os cidadãos ficam sujeitos à tutela policial ou jurisdicional, dependendo dos países e/ou do processo de expulsão.
As pessoas são colocadas em prisões ou em “centros de acolhimento” (um eufemismo para o que é objectiva e subjectivamente prisão, privação de liberdade). Os períodos variam, de país para país, indo dos 32 dias em França e Chipre, passando pelos 40 dias na Itália, 2 meses em Portugal, 18 meses na Alemanha a um período ilimitado no Reino Unido e na Holanda.
Agora, paradoxalmente – ou talvez não, os países com menores períodos de detenção (França e Itália) resolveram promover a discussão dessa matéria ao nível da EU. O pretexto, além de questões que tenho dificuldades em não considerar aporofóbicas e xenófobas, é a segurança (panaceia do apaziguamento xenófobo) e a harmonização da legislação europeia nesta matéria.
Assim, a ideia é harmonizar o período de detenção para imigrantes “ilegais” – isto é, em situação documental irregular –, passando, assim, a haver um período máximo de 6 meses, extensível até 18 meses (ano e meio). Isto é, a ideia é que um cidadão pode(rá) ser detido – na verdade preso – por um período tão longo que equivale a cumprir pena por um crime.
Esta ideia é desumana, representa um retorno civilizacional e uma violação ostensiva dos direitos fundamentais dos estrangeiros na EU. Se a situação em alguns países é insustentável (Reino Unido, Holanda, Finlândia, Suécia, Dinamarca, Estónia e Lituânia – duração ilimitada), tal deveria ser resolvido com uma solução humanista, não procurando um bissectriz entre o que se passa na França e Itália, na Letónia (20 meses) e Alemanha (18 meses) e na Holanda e Reino Unido (sem limites) para se encontra uma “solução” que satisfaça todos.
Todos, menos a humanidade. É que colocar sob prisão os estrangeiros é, claramente, uma desumanidade; é criminalizar indirectamente o acto de imigrar e puni-lo. Um crime é, segundo doutrina jurídico-penal universalmente aceite, (a) um facto (2) típico, (3) ilícito, (4) culposo e (4) punível. Assim, o que a EU pretende é transformar uma medida de coação – já de si criminosa – em direito substantivo. A dimensão de crime deste facto é tão clara que o encarceramento e a expulsão são acompanhados de uma pena acessória de proibição de entrada na União Europeia pelo período de 5 anos.
Uma forma engenhosa de contornar o princípio nullum crimen dine lege previa? Note-se que, em Portugal, um cidadão detido tem de ser apresentado a um Juiz de Instrução no prazo de 48 horas, para validação da detenção e aplicação de uma medida de coação que pode chega até a prisão preventiva. Acontece que, como a pena abstracta que admite a prisão preventiva tem de ser superior a 5 anos, o que acontece é que somente quem comete um crime cujos indícios apontam para a prática de um ilícito penal grave, com pena superior a 5 anos, é que é apresentado ao Juiz de Instrução.
Mas o estrangeiro, pelo simples facto de estar indocumentado, é detido e presente a um Juiz de Direito dos tribunais de pequena instância criminal que, não raras vezes, aplicam a prisão preventiva ao mesmo – actualmente, com os Centros de Acolhimento, são colocados nestes e não nas prisões. Não tem a dimensão de pena mas de medida de coação – dizem os magistrados, errada e convenientemente. Muitos, felizmente, têm percebido a hediondez deste sistema e, como justiça, não a têm aplicado.
Voltando à União Europeia e às ideias da Comissão Europeia e aos seus propósitos. Tenho dúvidas sérias e fundadas dúvidas sobre a estrita legalidade desta medida de criminalização de facto do direito de viajar dos cidadãos não comunitários. Sou da opinião que os Advogados da União Europeia deveriam aconselhar os seus clientes a recorrer, sempre, para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais com queixas sobre esta questão.
Mais, os Estados com cidadãos seus afectados por estas medidas têm o dever de demandar – perante o Tribunal Internacional de Justiça da ONU – a União Europeia e os Estados que apliquem (mesmo na actual formulação) esta legislação. Mas, haverá coragem para isso? Os interesses económicos prevalecerão sobre a razão e a defesas dos direitos dos cidadãos? A ver vamos…
Mais, ainda, a EU pretende colocar nessa situação menores, nomeadamente as crianças não acompanhadas. Estou curioso para saber o que o actual Governo socialista irá dizer sobre isso. É que me recordo – sim, a minha memória não é curta nestas coisas – do “caso Vuvu Grace” e da acusação que muitas eminências do PS fizeram ao então Governo do actual Presidente da República (Cavaco Silva): “prender criancinhas”.
Não me surpreenderei se o Governo português aderir à esta ideia. É que, lembro a quem se tenha esquecido, foi o Partido Socialista quem – sendo até então o maior opositor da ideia de criação dos Centros de Acolhimento/Detenção no consulado de Cavaco Silva - paradoxalmente, inauguraria essa prisões envergonhadas no verão quente de 2000 (quando toda a gente estava “distraída” a pensar noutras coisas), sendo Fernando Gomes Ministro Administração Interna e Armando Vara o Secretário de Estado da Administração Interna do Governo liderado por António Guterres. Então, já não era “prender criancinhas”...
Além do mais, parece-me que a aprovação e a aplicação dessa Directiva estará ferida de nulidade (de inconstitucionalidade ao nível interno) por contrariar a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdade Fundamentais, nomeadamente, o Artº.4º. do Protocolo 4 que proíbe as expulsões colectivas. Expulsar oito milhões de imigrantes? Não me parece que tal seja possível. Durão Barroso, aquando do seu Governo em coligação com o Partido Popular de Paulo Portas equacionou a expulsão de todos os imigrantes ilegais de Portugal mas depois arredou pé dessa ideia – que passou, então, como uma ideia do Paulo Portas. Terá sido? E agora, a ideia virá de França, Itália e Reino Unido, é certo; mas terá ou não sustentáculo na Presidência da Comissão Europeia? Sarkozy já anunciou: a próxima presidência francesa da União Europeia irá ter a imigração como uma das suas prioridades e as suas ideias sobre esta matérias não são, de todo, as mais simpáticas para os imigrantes. Esta Directiva será, certamente, uma das questões centrais da presidência francesa do Conselho da União Europeia.
Podemos estar perante um pomo de discórdia que poderá gerar uma crise política no seio da Europa comunitária e um conflito da EU com os Estados terceiros – os países de imigração. Quem vive estas coisas ao nível prático sabe o que acontece com os cidadãos dos países Magrebinos – sofrem sempre a detenção máxima e depois são libertados, pois os seus países, em regra, não os aceitam. Além do mais, basta(rá) não colaborarem na sua identificação para não poderem ser expulsos.
É o Mundo em que vivemos: empurra-se as pessoas para a pobreza e depois fecham-se as portas e coloca-se em prisões quem consegue fugir da pobreza extrema e chega à uma terra prometida que não os quer nem deseja. E depois, aponta-se o dedo à China, à Myarmar e outros de violar os direitos humanos... É, somente, uma questão de grau ou dimensão – a EU também viola os direitos humanos, ainda que se escude nas normas.
Ouve-se um clamor ocidental, dos Fóruns aos media, passando pelas pessoas, a acompanhar o Dalai Lama: – “está ocorrer um genocídio cultural no Tibete”. Mas essas mesmas vozes “esquecem” o genocídio dos africanos que tentam entrar na Europa, para não falar no que acontece em África por causa das políticas ocidentais. Mas claro que a cultura tibetana é mais importante que a vida dos africanos; é claro.
Silvio Berlusconi já deixou claro: quer fechar as fronteiras e criar campos de identificação dos estrangeiros sem trabalho que se vêm obrigados a entrar na vida da delinquência. Da vergonha de Lampedusa (Itália) e de Mellila (Espanha) – que se tem tolerado com um ensurdecedor silêncio – aparece agora esta ideia, própria do nacional socialismo alemão e do III Reich, aliás, análoga ao que Hitler mandou fazer com os judeus: identificá-los.
Ainda mais horrível que esta ideia, é o facto dela ter passado despercebida, como se fosse algo natural, normal. Tempos sombrios percorrem a Europa, centímetro a centímetro e o silêncio do compromisso está a alimentá-lo; e cresce como um monstro na sombra, como um deserto de desumanidade.
Um destes dias acordamos e descobrimos que os imigrantes e os estrangeiros não comunitários em geral – além de já terem a sua vida toda controlada (os serviços de estrangeiros monitorizam tudo, mas tudo da vida dos mesmos) –, têm uma espécie de estrela amarela a identificá-los. E, nesse dia, acharemos normal; como porcos caídos na pocilga.
Existem, sim, outras medidas de travar e combater a imigração ilegal que não pode ser confundida com a circulação de criminosos no espaço Schengen nem os imigrantes serem considerados e tratados como criminosos. Uma coisa é certa, como dizia Simon Wiesenthal, "a liberdade não é um dom dos céus". Mas é, certamente, sagrado. Mas, pelos vistos, a liberdade de uns é "mais liberdade" que a de outros.
O fedor da hipocrisia ganha terreno e cresce, a cada ano europeu ou internacional disto e daquilo – da igualdade ao diálogo intercultural e quejandos – que a Europa promove. Não são precisos anos de nada, o que é preciso é acção e verdade. Entendo que a consciência dessa hipocrisia gere medos naturais e que se pense que a solução é imitar a avestruz.
PS: Depois de escrever este texto tive notícias, aqui em terra de Vera Cruz e através do El País e do Le Monde, que a Itália de Berlusconi resolver criminalizar – em letra expressa de lei – a imigração «ilegal». Fico à espera para saber até onde irão os silêncios…