segunda-feira, 5 de maio de 2008

  • FOME GLOBAL, ENERGIA E GENOCÍDIO

Até há pouco tempo parecia que a questão da vida na terra estava sujeita à uma equação de equilíbrio relativamente simples: população, energia, água e sustentabilidade.

Nos últimos anos, no entanto, a população mundial não parou de crescer – paradoxalmente, ou talvez não, são os países mais desenvolvidos que enfrentam depressões demográficas – chegando a cerca de 100.000.000/ano (cem milhões).

É aqui que a questão da sustentabilidade ganha importância acrescida, pois além de uma maior demanda por alimentos, a produção destes tem sofrido um decréscimo com a crescente escassez de água em certas zonas do globo. Até países europeus, tradicionalmente fartos de água, padecem disso – como é o caso da Espanha que equaciona recorrer à dessalinização e está a reformar o seu sistema de distribuição de água pelo país. Exemplo a seguir, pois o futuro está cheio de nuvens negras (em termos de água, energia e alimentos) e é melhor prevenir para depois não se ter que remediar.

Espanha procura a sustentabilidade do futuro ainda que, como dizia Séneca, «o homem não pode prever, por mais avisado que seja, o perigo que o ameaça a cada instante» (Séneca, Odes, II.13.13). Zapatero e um PSOE visionários? Talvez Plínio, O velho, tivesse razão quando dizia que «os homens de nações diferentes, não são comparáveis uns com os outros» (Plínio, História Natural, VII.1).

Mas como se já não bastassem os problemas que o aumento da população, a falta de água, de energia (que o digam os praienses e as gentes do interior), o aquecimento global e os perigos que representam à sustentabilidade da humanidade, eis que emerge um outro problema: o desvio da produção mundial de alimentos, nomeadamente de cereais, para a produção do chamado biocombustível.

Isso para fazer face ao aumento escandaloso e de todo injustificável do preço do petróleo nos mercados mundiais – sendo certo que os custos de produção não justificam o aumento dos preços actuais. Excepto em países como a Nigéria que – por não terem refinarias próprias – compram produto refinado, diesel, para ter a sua indústria petrolífera a funcionar; nestes o preço acaba por ser fixado pelos custos da compra do diesel. É um paradoxo económico.

A procura massiva de alimentos para a indústria e não para pessoas, naturalmente, afectou o preço dos mesmos. O preço dos cereais está a chegar a valores incomportáveis e em muitos países começa a haver rupturas de stocks e limitações ou proibições de exportação (cerca de 40 países exportadores estão a seguir esta política). A culpa, em grande parte, é da União Europeia – que espera vir a ter 10% do combustível usado na União em biocombustível – e dos Estados Unidos da América que, no ano passado, usou grande parte da sua produção cerealífera nessa indústria. A especulação – sustentada pelas grandes companhias agro-alimentares –, é, também, uma das grandes responsáveis pelos aumentos.

Os países mais pobres e importadores de alimentos, como é o caso de Cabo Verde, são aqueles que mais sofrem com o aumento da energia e dos alimentos. Este impacto poderá ter repercussões negativas no que aos Objectivos do Millennium dizem respeito, nomeadamente em sectores como a nutrição das populações, saúde e educação das pessoas mais pobres ou socialmente fragilizadas.

O Programa Alimentar Mundial da ONU avisa: está em curso uma ruptura dos seus stocks de alimentos e da sua capacidade de satisfazer os seus compromissos humanitários, pois não consegue acompanhar os preços do mercado com o seu orçamento.

Nos últimos meses, segundo a ONU, a sua capacidade de aquisição diminuiu drasticamente: com a mesma contribuição a sua capacidade aquisitiva de alimentos caiu 40% desde Junho do ano passado (início da especulação agressiva nos mercados mundiais de alimentos). O preço do arroz na Ásia, por exemplo, praticamente que duplicou de preço no passado mês de Março de 2008.

A falta de alimentos começa, lentamente, a criar focos de revolta em alguns países. O Mundo, se não atentar nesta realidade, poderá estar perante um novo conflito à esfera planetária; tudo porque os dirigentes falharam e continuam a falhar na gestão da energia disponível.

E basta uma intervenção da Industria da energia – inicialmente aplaudida como uma “boa ideia” – no sensível sector dos alimentos para se provocar uma crise alimentar mundial; uma crise humanitária que poderá transformar-se em catástrofe planetária.

Os efeitos psicológicos do mesmo já começam a manifestar-se: no outro dia, ao chegar à casa, deparei-me com uma catrefa de gigantescos sacos de arroz. Sorri e pensei: «isso aí é arroz para muitos anos…». Ainda quis perguntar à minha mãe, em jeito de brincadeira, se ela ia abrir uma mercearia; mas não disse nada, pois ela é de uma geração que viu as fomes de 1941 e 1947, ainda que, para sua felicidade, não a tenha sofrido na pele. Mas é coisa que, certamente, quem viu nunca esquece; muito menos quem a sofreu.

Há qualquer coisa de profundamente imoral e fétido no mercado mundial da energia e da produção de alimentos no Mundo que urge tratar. Na verdade, o uso de cereais para produzir energia, quando existem milhões a morrer de fome – além de que pode lançar outros tantos nos braços da fome, como está a fazer –, é uma actividade criminosa. Pode não ser tipificada como tal – em muitos países, como nos europeus –, mas tem essa natureza. É, em minha opinião, o que é denominado na Ordem jurídica norte-americana de “conspiracy to commit genocide”, uma conspiração para cometer genocídio; um genocídio dos mais pobres. Se não é assim, parece; pelas suas consequências. Poderá até ser por negligência – no que aos Estados diz respeito –, mas tal só poderá ser consciente.

No outro dia, em Portugal, o preço do leite disparou: a produção do leite tinha baixado e tinha-se de aumentar os preços – diziam os fornecedores. Lembrei-me, então, de que ainda há pouco tempo via milhares e milhares litros de leite a serem destruídos porque se tinha “ultrapassado a quota de produção” de leite nos Açores e que se assim não fosse feito o país seria penalizado pela União Europeia. Entretanto, milhões de crianças sofriam de mal nutrição e morriam algures no planeta a sonhar com uma côdea de pão e um pouco de leite.

O mesmo se diga de muitos outros produtos, como, v.g., os lácteos que de vez em quando são incinerados nalguns países – como na Holanda – por razões de equilíbrio de «mercado». É tempo da comunidade internacional atentar num facto: ou controla e humaniza os mercados de energia e de alimentos ou então não haverá barreiras capazes de conter a fome em forma de ira.

Mas deve fazer isso não por medo, mas sim porque é um imperativo moral, de humanidade. O Mundo e o bem-estar não é somente de e para alguns; é de todos. É preciso, sim, globalizar o bem-estar. Mas, também, é preciso aprender alguma com esta crise – todos devem aprender.

A contínua desvalorização do dólar (“preço do dinheiro”) pela Reserva Federal norte-americana não augura nada de bom; é que se é uma necessidade do país, o mesmo provoca uma disfunção nos mercados internacionais, que usam o dólar como referência, continuará a provocar o aumento dos preços dos combustíveis e obrigará à uma maior produção interna de energias alternativas, como o biocombustível.

Os números são assustadores. O futuro tem nuvens cinzentas no horizonte para os países mais pobres e importadores de alimentos, cujos cidadãos não poderão comportar os custos dos aumentos dos produtos alimentares.

Países como Cabo Verde (que não pode ter “independência alimentar” mas pode e deve ter a energética), por exemplo, deveriam fazer um esforço de concertação social e – e não é só por essa razão, não – aumentar para valores condignos a remuneração dos seus cidadãos; em muitos casos verdadeiramente indigna e degradadora dos cidadãos trabalhadores. Um salário mínimo condigno é preciso, já!