sexta-feira, 2 de maio de 2008

  • O HUMANISMO DE S. AGOSTINHO – O AFRICANO MIGRANTE

Quid est homini? Há algum tempo atrás, a propósito de um texto «Descendentes Migrantes: Saudade de Terra nunca Vista» que publiquei no Liberal de 6.11.2006, recebi um escrito electrónico de uma amiga a alertar-me para o facto de que a juventude actual deveria atentar mais nas suas capacidades do que nas adversidades que enfrentam. Concordo com ela, e com Sartre digo que é verdade que o que importa, pelo menos essencialmente, «não é o que fizeram ao homem, mas o que ele faz com o que fizeram com ele» ou, como ouvia no Mindelo quando era menino: «a necessidade é inimiga da honra mas também mãe de todas as virtudes».

Então, depois de passar pela «Bela Ipanema» em Lisboa com uns amigos e com eles tertuliar, lembrei-me de Santo Agostinho, da sua vida, do paralelismo que tem com a juventude inquieta e deserdada de hoje e do exemplo de como os devaneios dessa idade podem servir como alicerces de uma vida com sentido maior.

É recorrente na sociedade portuguesa a veiculação da ideia de «ausência de referências» nas comunidades imigradas – nomeadamente da incorrectamente denominada segunda geração – de «modelos» de referência (o que é um discurso que se diria parolo e de quem não conhece ou quer ignorar a realidade social). Do mesmo modo que se escuta a voz baixa um clamor reclamante de só existirem escritores de referência do espaço negro lusófono que são «brancos» com origem berciária africana mas que o não são.

Parece-me que ambos os juízos estão errados pois partem de premissas falaciosas quanto ao que devemos considerar a «identidade» da pessoa e/ou aquilo com que se identifica; seja na ideia, seja no modelo societário segmentado ou universalmente considerado em dado momento.

Escrevo este texto à propósito de Santo Agostinho de Hipona que (depois de Jesus Cristo, S. Paulo, S. Pedro – pela sua dimensão mítica e não pela sua obra teológica –, S. Lucas [pelo carácter histórico e investigativo do seu Evangelho e do livro dos Actos dos Apóstolos], Origenes, os imperadores Constantino e Licínio – pelo seu contestável mas historicamente incontornável Édito de Milão de 313 d.C. –, Gelásio I e S. Tomás de Aquino) é a figura mais proeminente da história do pensamento cristão. Alguns dirão que esqueci os reformadores e figuras como Calvino – de quem, em parte, sinto-me uma espécie discípulo desviado – Lutero e outros; é verdade. Mas é propositado. Assim como «esqueci» S. Gregório de Nissa, S. Jerónimo e uma imensidade de sábios que uma breve consulta a uma Patrologia elucida(rá) (A Patrologia Latina de Migne e a breve Patrologia de Altaner/Stuiber são referências). O que só demonstra a dimensão intelectual de Agostinho de Hipona e da especial estirpe do seu pensamento e da sua importância na história não somente do mundo afro-ocidental mas da humanidade no seu todo.

A ideia primeira que temos de um «africano» ou de um «europeu», é a que nos é dada pela dimensão primitiva do nosso espaço cognitivo – a etnicidade revelada pela cor. O que é de todo erróneo; um homem não é tanto o que é herdado geneticamente (quem tem factores determinadores do seu devir existencial) mas, essencialmente, o que o adquirido social faz dele.

A etnicidade ou o aspectro bio-social imediato são contingência da personae e não o que ela é; pelo contrário, o seu espaço berciário e de desenvolvimento é nele mais relevante que o seu espaço étnico/racial/social herdado. Deste modo se entende que o movimento dos Claridosos cabo-verdianos, não sendo, na totalidade africanos, étnico-racialmente falando, se identificaram com a vivência e o sentir do povo das ilhas de Cabo Verde e emergiu nas suas almas um novo sentir que gerou um imaginário poético-vivencial que hoje é uma herança cultural dos cabo-verdianos e dos africanos em geral. O mesmo se poderá dizer – mutatis mutandis – de um Pepetela ou de um José Eduardo Aqualusa, pese embora a relativa juventude deste último.

O que faz um africano? Haverá que perguntar: (a) o que nasceu em África ou (b) aquele que se identifica com o seu destino? Se a resposta é a primeira, no âmbito do critério territorial do ius soli, a verdade é que existem muitos africanos que não têm identificação étnico/racial com o continente; mas sentem-se de todo africanos e são-no na realidade! Notemos que uma das questões mais fracturantes da sociedade portuguesa contemporânea tem a ver com expurgação da nacionalidade portuguesa aos nascidos nas províncias ultramarinas antes de 1975 e que foi reforçada com a Lei da nacionalidade portuguesa que prescindiu em parte do critério do ius soli para favorecer o do ius sanguinis – critério étnico.

Reclamam as comunidades imigrantes o critério do ius soli, por razões que nada têm a ver com o que agora nos ocupa mas que é sintomático do que se almeja. Isto é, directa ou indirectamente, existe uma identificação com alguns valores da sociedade de acolhimento ou com o destino que com ela compartilham. O que não quer dizer que exista uma alienação do espaço berciário mas sim que se procura no espaço de acolhimento um novo ideário ou modelo social ou espaço identitário – o que, na verdade, é per si o questionamento das teses integracionistas plenas.

Aceita-se, prima facies e como regra que é africano quem nasce em África e se identifica com o seu destino – o que, com alguns desvios conjunturais, é também aceite quase universalmente. Deste modo, podemos afirmar que é africano quem se afirma como tal ou quem, nascendo no continente, identifica-se com o destino do mesmo. Mas o que tem isso a ver com Santo Agostinho?, perguntar-se-á.

África, como é consabido, é um espaço geográfico e identitário particular cujas origens não se encontram na hoje chamada «África profunda» mas sim no norte do continente – nomeadamente nas antigas Cartago, Líbia, Mauritánia e Numídia. É aqui, em particular na antiga Cartago, que jaz o berço da ideia de África. E é neste mesmo espaço – na cidade de Tagasta, a actual Sukh Ahras, na Argélia (então chamada Numídia), próximo da fronteira com a Tunísia e a escassos oitenta quilómetros da costa mediterrânea – que nasceu, a 13 de Novembro de 354 a.D, Santo Agostinho de Hipona.

Deste modo, Santo Agostinho, um dos mais insignes pensadores da cristandade – que, a meu ver, só tem como par figuras como Origenes, S. Paulo, S. Anselmo, Tertuliano e S. Tomás de Aquino – era, por ius soli e pela universalidade do seu pensamento unificador da humanidade, africano, tão africano como eu sou ou, analogicamente, tão português como era D. Sancho I. Mas era, também, à imagem dos jovens portugueses negros de hoje, «imigrante de segunda geração» que sentia-se em Cartago, na sua África natal, em casa mas que ansiava por conhecer Roma só para vir a descobrir que o seu lugar era Cartago, a sua amada África.

Depois de viver uma juventude dedicada à devassidão com prostitutas, muita bebida e toda a espécie de vícios – tendo mesmo um filho ilegítimo (Adeodato=dado por Deus, de seu nome) com uma amante prolongada – encontraria o seu caminho, o seu lugar na existência. Nessa senda de perder-se e reencontrar-se, tornar-se-ia um teólogo de alma imensa, filósofo, moralista e apologista da graça divina como veículo de recuperação do lugar do homem na ordem das coisas. Aprendeu retórica em Cartago, onde ensinou gramática até os 29 anos de idade, partindo então para Roma e Milão onde foi professor de retórica junto da casa imperial – provavelmente no Imperium de Valentiniano

Ali se converteu ao cristianismo pelas orações e lágrimas de sua mãe, mais tarde S. Mónica, e pelas pregações de S. Ambrósio, Bispo de Milão, por quem seria baptizado em 387 a.D (o Imperium estava então dividido e Valentiniano II era Dominus de África, Ilíria e Itália enquanto Teodósio tinha o Imperium no Oriente).

Volta para África em veste de penitência onde é ordenado sacerdote e depois, então com 42 anos de idade, Bispo de Hipona. Inicia o seu livro «Confissões» – um verdadeiro testamento intelectual – dizendo: «Senhor, criaste-nos para Vós, e nosso coração não tem paz enquanto não repousar em Vós». Tolstoi e Blaise Pascal viriam a parafrasear esta oração dizendo que «no homem existe um vazio na forma de Deus» (Pascal, Pensées, 67) e que consubstancia uma forma de existencialismo cristão que, paradoxalmente, encontra assento nas teses de Pelágio e da sua ideia de liberdade e de inexistência de culpa «herdada» de Adão. Mas esta ideia de Santo Agostinho tinha, até pelo carácter da obra (Confissões), uma dimensão pessoal: encontrou-se em Deus depois dos devaneios da sua juventude.

Agostinho – em razão da sua formação eclética, uma vontade indómita e uma mente esclarecida e iluminada – assumiu-se como um dos homens mais importantes do seu tempo. Combateu com grande capacidade e esclarecimento as heresias do seu tempo, principalmente o donatismo e o pelagianismo de Pelágio (o teólogo da «heresia do Ocidente») que desconsiderava a graça de Deus. Na verdade, os dois protagonizaram uma das maiores controvérsias da história do pensamento cristão e que diríamos ser quaestio entre a dimensão da liberdade humana e a da graça divina defendida por Santo Agostinho na senda de São Paulo – «Pela graça sóis salvos…», dizia este aos Efésios (Efésios, II.8).

Note-se que esta questão está intimamente ligada à da predestinação – defendida pelos valentinianos e tacitamente admitida por Origenes – e que migraria para o seio da Igreja protestante na forma do semipelagianismo e que ainda hoje divide «Calvinistas» e «Armenianistas», correntes doutrinárias evangélicas ou protestantes.

O novo cristianismo ou “cristianismo novo” das «novas» Igrejas protestantes/evangélicas não têm – hoje e em regra – escola doutrinária e dogmática para se posicionarem sobre estas matérias; mas as mais antigas ou com escola teológica encontram-se ainda enformadas e afrontadas pela questão teológica e prática de saber (v..g., nazarenos, baptistas, assembleianos…) se «uma vez salvos, salvos para sempre?» que remete para a discussão entre graça e liberdade e/ou livre arbítrio – a que Espinosa chamava, com propriedade, de “livre necessidade”.

A adesão de Agostinho, durante uma década, às doutrinas dos gnósticos maniqueístas –- outra «heresia» do seu tempo –- é aparentemente intrigante se desligada da sua busca de sentido de vida. A verdade é que esta ligação ao maniqueísmo deu-lhe forças para superar as suas fraquezas morais e, como dizia o profeta Isaías (Isaías, XLIII), renovar as suas asas como as águia e começar uma vida de «separado» –- Santo perante Deus e a humanidade.

Na sua monumental obra A Cidade de Deus, que demorou 13 longos anos a escrever, afirma, a modo de síntese dessa obra que «dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo de Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial». Ainda aqui se encontram influências do seu tempo manequeista mas já liberto das presas dos sentidos e entregue à graça divina. Era, já então, o «Doutor da Graça».

É verdade que S. Agostinho tinha uma cultura formal greco-latina – como tinham todos os pensadores da época –, mas isso não retira ao homem e à pessoa a dimensão berciária e espiritual da africanidade que viria, certamente, a influenciar as suas escolhas futuras (O que uma leitura, ainda que não muita atenta, das Confesiones [Confissões] e da De civitate Dei [A Cidade de Deus] nos revela de uma forma bastante clara). Do mesmo modo que os escritores contemporâneos de língua portuguesa e “não negros” não deixem de ser africanos... Dizer ou afirmar-se o contrário é sujeitar-se ao juízo de Othelo – o primeiro grande herói literário negro no imaginário europeu/ocidental – sobre Emília quando esta, debalde, tentava defender Desdémona: «O céu sabe verdadeiramente que és falsa como o Inferno» (Shakespeare, Othelo).

Santo Agostinho, inicialmente jovem universal pelo pouco apego à escola, devasso e mundano – como é muita da juventude do nosso tempo, mutatatis mutandis – viria a tornar-se referência exactamente pelo eclectismo da sua formação fora do canon da “normalidade” formativa do seu tempo.

É com ele que se dá a passagem da lógica medieva para a renascentista (ainda que estivesse, temporalmente, muito longe do Renascimento); essencialmente ao tentar conciliar a racionalidade do platonismo com a fé. Em Santo Agostinho razão e fé não são espaços antagónicos do conhecer mas sim complementos do que é o homem ou a pessoa. Mas a maior referência em Santo Agostinho dá-se no âmbito da sua humanidade.

O seu compatriota continental, Aníbal Barca – que conquistou a Europa antes dos momentos pháticos dos descobrimentos e da migração conquistadora europeia – já não era assim. Aníbal, o Africano, tão africano como Santo Agostinho de Hipona; e este tão europeu como cidadão do mundo; ele que, na realidade, era estrangeiro na Terra e Embaixador de um reino diferente – o reinado do seu Mestre: o reino de um Mundo onde os homens não têm nacionalidade. Este é o africano, cidadão universal e proto-referência do que é ser-se africano em essência, a crer-se na paleontologia: a referência primeira da humanidade e migrante à nascença.

Não têm os africanos migrantes referências? Têm-nas! O que não têm é consciência da sua história e memória colectivas. Lembrar Agostinho de Hipona, é relembrar um homem cuja dimensão universal é um modelo de interculturalidade e multiculturalidade; é afirmar que o homem vale por si, como pessoa – como «papel que representa» no mundo que o rodeia em dado momento – e não pela sua origem nacional e/ou étnica.

A dimensão universal ou consciência do destino comum da humanidade é o que importa na realidade. Tiveram consciência disso homens como Leopold Shengor, um esquecido de si mesmo como Nelson Mandela ou Patrice Lumumba – exemplo de “homem comum” que compartilhou com eles e Kunta Kinte, Joseph Cinquez e um exército de heróis anónimos, um ideário de liberdade, uma lógica de liberdade que engrandece a humanidade como espécie.

Eventualmente o que nos falta, hoje, é cultura; mas uma cultura de humanidade para além do que nos é aparente aos sentidos – isso sim, é uma referência que transcende a efemeridade dos espaços-nação e das poucas primaveras dos homens. Algo que podemos aprender com Santo Agostinho de Hipona – o Africano do passado e de Nelson Mandela, o bom (tomando emprestado um sentido de Rousseau) africano no presente.

Ao ler e ouvir nos media épicas verberações sobre nada ou de conteúdo alienativo em temáticas como a imigração, o comportamento desviante dos jovens afro-europeus e o modelo de formação via institucional da sociedade, consigo compreender porque, actualmente, alguns dos espíritos mais profundos e atentos do nosso tempo eventam um pessimismo ardente sobre o presente estádio da cultura ou do pré-caos cultural em que se nos encontramos.

E não posso deixar de pensar que, em parte, têm razão; basta(rá) pensar em duas coisas: a) o abismo crescente entre a cultura da pessoa e a cultura das e para as coisas; e b) na intolerância revelada pela inteligência de pessoas que se pensam extraordinárias e utilizam a palavra dos media ou da autoridade a esmo e como instrumentos de instauração de uma guerrilha verbal que em nada contribui para o bem estar da comunidade em geral, nomeadamente de uma sociedade multicultural.

Perante esse sentir, não é possível deixar de pensar no futuro da cultura numa sociedade que negligencia a formação do homem. O que é preocupante se tivermos em linha de conta que a qualificação humana das pessoas é o fim último da cultura. O que faz-me ter de concordar com um facto que perturba a mens libera dos nossos tempos: comparados com a gloriosa Atenas de Pericles (Sec.V, a.C.), com a Itália Renascentista, “idade das trevas” – Idade Média [Aquino, Origenes, Gregório de Nissa, Anselmo, os gnósticos e mileneristas...] ou com o helenismo de Alexandre Magno, uma coisa é certa: estamos falhos de cultura - e nada pode remediar essa deficiência. Mas não de cultura enquanto actividade sucedânea, pois tal mais não é que uma forma de conseguir mais um bem; e não é de ter e de conseguir coisas que precisamos [pois nunca tivemos tanto...], é de cultura enquanto valor espiritual e formadora da personalidade capaz de olhar o seu semelhante como seu igual em dignidade – ainda que o não possa ser e não seja noutras coisas.

Aqui voltamos à Santo Agostinho e ao seu exemplo de serenidade aprendida quer no respeito pelo valor do homem/pessoa quer pela contemplação do divino. A obra de Agostinho é mais contemporânea do que se possa imaginar, e influenciou mais pessoas e pensadores do que qualquer outro. Na filosofia de Santo Agostinho e de seus seguidores ou interpretes podemos desbravar e encontrar um manancial de bem que encontra-se escondido na alienação.

Boecio [De Consolatione Philosophiae; vide edição espanhola de Rodrigues Santidrián: «La Consolación de la Filosofia»], por exemplo, com uma interpretação mui sui generis do pensamento e da doutrina agostiniana, do racionalismo platónico e da lógica aristotélica legou-nos uma filosofia humanista incomensurável: «o homem pode matar o corpo mas não a alma»; é este legado e clamor de liberdade interior contra os que tentam ou pensam que podem eliminar a dignidade humana e que ainda hoje fala mais alto que o Orwelliano «Big Brother» (George Orwell, 1984). Mais do que isso, encontramos no exemplo e filosofia de Santo Agostinho e deste seu interprete algumas razões para viver – principalmente um exemplo de um caminho para a afirmação da dignidade do homem em paz e em serenidade; seja quais forem as razões externas que o limitam ou possam limitar.

No fundo aprendemos a ser responsáveis por nós mesmos, pelas nossas acções e pelo destino do Mundo que nos rodeia – é a assunção de que o homem vale mais do que aparenta e que tal deve ser preservado. Agostinho, além de ter feito um percurso de e/imigrante em termos sociais e económicos, soube migrar da devassidão dos sentidos para uma vida com sentido e a sua vida é venerável pelo exemplo. Este é um dos muitos legados de Santo Agostinho de Hipona – o migrante africano.

Hoje, perante o estado do Mundo ouço-o - do fundo dos tempos a gritar:

«Afastada a justiça, que são, na verdade, os reinos senão grandes quadrilhas de ladrões? Que é que são, na verdade, as quadrilhas de ladrões senão pequenos reinos?

Estes são bandos de gente que se submete ao comando de um chefe, que se vincula por um pacto social e reparte a presa segundo a lei por ela aceite. Se este mal for engrossado pela afluência de numerosos homens perdidos, a ponto de ocuparem territórios, constituírem sedes, ocuparem cidades e subjugarem povos arroga-se então abertamente o titulo de reino, titulo que lhe confere aos olhos de todos, não a renúncia à cupidez mas a garantia da impunidade.

Foi o que com finura e verdade respondeu a Alexandre Magno certo pirata que tinha sido aprisionado. De facto, quando o rei perguntou ao homem o que lhe parecia isso de andar a infestar os mares, respondeu ele com franca audácia: «O mesmo que a ti parece isso de infestar o mundo; mas a mim, porque o faço num pequeno navio, chamam-me ladrão; e a ti, porque o fazes com uma grande armada, chamam-te Imperador.

[…] Levar a guerra aos vizinhos, avançar depois para novas conquistas, esmagar e subverter por pura ambição de domínio povos pacíficos – que outro nome merece isto senão o de uma imensa quadrilha de ladrões?» (Santo Agostinho de Hipona, A Cidade de Deus, Gulbenkian, Lisboa, 1996, p.383).
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Diria, mutatis mutandis, o mesmo sobre as causas e os causadores da crise alimentar mundial.