Portugal, ou Porto Rico?
(29 de Julho de 1977)
Aos que por tudo e por nada deitam as mãos à cabeça e se lastimam do mal que as coisas correm, aconselharia eu a leitura da Constituição: quer-se tônico melhor do que aquele primeiro artigo que, solenemente, entre palmas e abraços, proclama que «Portugal é uma nação soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes»? Mas àqueles que, por verdura dos anos ou exuberante florescência da saúde, tendem a ver tudo cor-de-rosa, o mesmo conselho daria. Então veríamos a que alturas subiriam as esperanças dos primeiros, veríamos como trambulhariam ao rés da terra os exageros dos segundos. A panacéia, a cura universal é, afinal, barata, custa na minha edição umas pouquíssimas dezenas de escudos, e bem tolo é afinal este povo português que não percebe a que extremos chega a sua felicidade, abençoada por uma Constituição assim.
Simplesmente, também em abundância não falta quem à custa do mesmo povo se vá divertindo, ou se diversão não é, então pior, porque é propósito, plano e sua fria realização. Olhe-se para este governo que socialista se diz e tem no rótulo, obrigado a respeitar escrupulosamente a Constituição e tratando-a como mero «farrapo de papel». Olhe-se para a idéia e a prática que o dito governo tem do que seja sociedade sem classes e transição para o socialismo: repare-se nas leis que os ministros produzem e que adequadas maiorias parlamentares têm vindo a aprovar, à esquerda e à direita, segundo a antiquíssima táctica de jogar com os temores mútuos e obedecendo à habilidade elementar de fazer política à vista. Olhe-se, enfim, para não continuar uma enumeração que seria longa, e abandonando por hoje essas ninharias que para os senhores governantes são socialismo e classes, transição para ele e abolição delas, olhe-se no já citado primeiro artigo as palavrinhas que afirmam ser a República Portuguesa soberana e baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular: sorria pois quem tiver vontade de chorar, carregue o sobrolho quem tenha o sestro de andar de caninha na água.
Sem dúvida que foi a vontade popular, tomada em termos aritméticos, voto por voto, que fez do Partido Socialista (continuemos, para sua vergonha, a escrever a palavra por extenso) partido de governo e governo: mas é contra o povo e, portanto, contra a vontade dele (a não ser que os portugueses sejam irremediavelmente masoquistas) que o governo do Sr. Mário Soares tem vindo a governar, praticamente desde que este celebrado socialista se sentou na principal cadeira do conselho de ministros. Já foi mil vezes escrito, já foi mil vezes denunciado que o Partido Socialista está a governar contra especificações essenciais da Constituição, e portanto contra o povo que elegeu os que a redigiram: evitemos, portanto, as repetições. Quando na semana passada falei de oportunismo e traição, não estava com certeza a pensar no PPD e no CDS, coerentíssimos partidos que sabem tão bem o que querem, que até sabem levar o Partido Socialista a fazer o que a eles convém, cada um na sua altura e segundo o seu interesse. Nisso, o Partido Socialista tem ótima boca.
Mas onde as coisas atingem o delírio, onde as palavras, coitadas delas, são magnificamente conspurcadas, é quando se fala de dignidade da pessoa humana e de soberania. As palavras, meu caríssimo e único leitor, são infelizes, não podem defender-se de quem lhes troca o sentido, de quem não se sente obrigado a respeitá-las, precisamente porque é mínimo ou nulo o seu respeito pela pessoa humana. Falar em dignidade em Portugal, quando todos os dias se aprovam leis contra o povo, quando a polícia espanca e vem depois esconder a mão, negar que tivesse espancado, quando a subserviência se instalou nos corredores do poder, começa por ser indignidade e acaba por ser perda de sentido moral. O nosso país atravessa uma crise econômica gravíssima, toda a gente o sabe. E também vive uma profunda crise moral, mas essa crise, ao contrário do que se quer fazer acreditar, não tem os seus mais elevados expoentes nem na droga, nem na criminalidade, nem na prostituição: paira mais alto e tem piores conseqüências.
E agora a soberania. Sim, realmente não somos Porto Rico. Tirando alguns lugares próprios onde naturalmente flutua, drapeja, paira e faz sombra a bandeira norte-americana - é esta a nossa bandeira portuguesa, verde, encarnada, armilada, acastelada e, se a tradição é verdadeira, chagada, que nos cobre a todos, mesmo quando em rigor nos não protege. Porém, a política nem sempre tem a cor das bandeiras. E toda a gente que não quer fechar os olhos ao que é evidente ou não aceita que lhos fechem, sabe que há em Portugal uma «eminência parda» que segura não poucos fios da vida portuguesa, aqueles fios com que se tem vindo a tecer, com mãos de Washington e Duque de Loulé, a rede principal que nos atou os movimentos libertados no 25 de Abril e no Primeiro de Maio. Essa «eminência parda» é o embaixador Carlucci, o homem mais livre que existe em Portugal, se poder é sinônimo de liberdade, se liberdade é isto de dar ordens em Portugal como quem as desse em Porto Rico. Mas a Constituição continua a dizer que somos uma República soberana.
------ in José Saramago, Folhas Políticas 1976-1998, p.19-21
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