sábado, 12 de junho de 2010

  • OS CAMINHOS DE DEUS E PEQUENAS DISSIDÊNCIAS
Decorria o ano de 1989/90 quando conheci um dos seres humanos mais belos e extraordinários que já se cruzaram na minha vida. Terá alcançado, certamente, toda e mais felicidade que uma pessoa humana merece. Ensinou-me uma coisa que então não apreendi de todo: as pessoas podem, por vezes sem querer, ser empecilhos para o desenvolvimento de outras. Foi um pensamento que demorei muito tempo a perceber o alcance, e ainda mais a compreender a essência. Demorou pouco mais de uma década, mas percebi e apreendi o sentido das suas palavras; não tinha a ver com processos de razão, de raciocínio, mas sim com a dimensão prática da vida.

Agora, ao escrever estas linhas, lembro-me de, em meados dos anos oitenta, ter lido um livro de Merlin Carothers chamado Louvor que Liberta, que me levou a ler um outro livro do mesmo autor – O Poder do Louvor. Neste o reverendo Carothers narra um facto que então me pareceu muito interessante: teve um acidente e partiu uma perna, ficando limitado na sua acção, uma vez que esteve acamado e não podia desenvolver com normalidade a sua acção. Mas, mesmo nessa situação, louvava a Deus por isso – o que, da perspectiva do pensamento do cristianismo prático que então abraçava (começava a seguir de perto o ensinamento de John Osteen, Kenneth Hagin, Oral Roberts, Benny Hinn, Kenneth Copeland…), me parecia um equívoco da percepção de Deus. Lia os seus livros com um sentido crítico, crivava os seus ensinamentos: «louvar a Deus, sim; mas não pelo mal que nos acontece» – pensava e dizia a mim mesmo.

Mas, dizia Merlin Carothers, que louvava a Deus – mesmo parecendo estranho a sua acção – em todas as circunstâncias. A realidade é que a sua limitação permitiu-lhe lançar mão de um projecto que adiava há muito, e acabou por fazê-lo durante o período de convalescença, com grandes benefícios pessoais e para a sua comunidade. O que pensava então – e continuo a pensar hoje – é que não deveria louvar Deus pelo mal que lhe aconteceu, mas sim pela misericórdia de o ter salvo de algo mais grave. Nisso residia, essencialmente e então, a minha discordância da sua doutrina de “louvar em todas as circunstâncias”.

Na verdade Deus tem sempre estranhas opções – diz-me o meu poeta. Eu digo que Deus tem caminhos rectos, e justos. Por vezes tem de conduzir-nos pelos atalhos das nossas opções, do exercício da nossa liberdade ou livre necessidade (perdoai-me Agostinho e Aquino, mas é mais esta conclusão de Espinosa que a outra), e colocar-nos na estrada certa. Daí a vox populi – nem sempre compreendida – de que “Deus escreve direito por linhas tortas”. Sim, Deus faz com que tudo, mesmo o mal, acabe por contribuir para o bem dos que o amam – mesmo daqueles como eu que, por vezes, critica as suas opções, e que penso que deve(ria), tem de haver, uma media via – a essência do tomismo – nos seus planos para a criação.

É assim que hoje compreendo (de uma forma mais profunda do que quando ensinava o Evangelho) o sentido da parábola do filho pródigo, assim como entendo o que me diziam 1989/90: que as pessoas, por vezes, podem ser um empecilho ao nosso crescimento. Por vezes há que perder essas pessoas, deixá-las para trás – a vida, por vezes e naturalmente, encarrega-se disso – para se alcançar um novo horizonte, sem amarras. E isso digo eu que sou um calvinista mitigado (na verdade mais próximo da ortodoxia de Origenes e da heresia necessária de Valentino), no que concerne ao destino é claro; eu que penso que Deus tem o chicote do tempo nas mãos e, cedo ou tarde, leva-nos para onde quer e quando quer. Como dizia Aníbal Barack, «Vê-de como nada pode ser feito contra a vontade de Deus» . O africano teria lido a história de Jonas e atentado no destino de Ninive? Não creio, é muito improvável.

O que sei é que, por vezes – demasiadas vezes –, sinto-me como Jonas. É que não será o homem, por si mesmo, uma media via da essência ou o Φ, a divina proporção, de toda as coisas e seres existentes? Protágoras, se conhecesse David e Salomão, certamente que concordaria comigo… É nestas alturas, quando penso nisso e no mal que alimenta o Mundo, que atrevo-me a discordar de algumas premissas do pensamento do meu Mestre, mas sem nunca deixar de o Amar; afinal o amor é a essência de tudo, e é o vínculo do meu pensamento à humanidade e a Adonai. Mas a espada de talião me parece, por vezes, tão necessária, tão natural, tão de acordo com a natureza…

E sinto-me impelido a seguir o conselho de Helvius Pertinax e a usurpar o derradeiro grito de Cipião Nasica. Afinal, a vida é um vapor, uma dissidência da eternidade.

Imagem: Desenho do Coração, Lonardo da Vinci

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