quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

~A Academia de Platão ~
«Ainda que somente alguns sejam capazes de criar uma política, todos nós somos capazes de a julgá-la.» Péricles de Atenas.

A SOCIEDADE ABERTA. QUEM DEVE GOVERNAR OU COMO GOVERNAR?

Ordem, justiça e bem-estar social. São os fundamentos primeiros da sociedade e que, naturalmente, demandam gestão da coisa pública, da «Res» (coisa) «Publica» (comum). E em democracia, atalhando verbo, para evitar-se constrangimentos da praxis criou-se essa realidade denominada «democracia representativa». Ou seja, o povo (demo) a exercer o poder (kracia) através de representantes eleitos, supostamente mais capazes. Isto é, uma espécie de diáconos políticos que devem agir de acordo com as necessidades e interesses do todo social e prestando contas ao povo soberano.

Assim, é tautológico que se estivermos de acordo quanto aos fins, o que é necessário é encontrar quem melhor o pode alcançar. Não é? Alegoricamente: a princesa do mar, querendo construir uma casa, o que faz ou deve fazer? Certamente que procurará o melhor arquitecto para fazer o projecto (fim) e o melhor engenheiro (e operários…) para executar a obra. Um Estado, uma autarquia ou uma empresa têm a mesma natureza no que à sua gestão interessa – procura-se o melhor gestor ou o melhor homem, no sentido de espécie ou pessoa.

Em democracia o que se tenta escolher é o «melhor homem» – o mais capaz, nunca o contrário. Não existe nada de fascista ou fascizante nessa escolha nem constitui nenhum perigo para a sociedade. O mesmo não se poderá dizer se se entender que se deve escolher as pessoas porque pertencem ou não ao grupo x, y ou z… Mas é evidente que as más interpretações do fim social pode levar a que se procure soluções providenciais que, não raras vezes, pode prejudicar o corpo social. É a velha questão do jesuitismo – da relação dos meios e dos fins e, também, os medos das consequências de um passado não muito distante.

A alegoria apresentada – não gosto de usar exemplos como argumento, pois não o são, mas esta serve muitas vezes para ilustrar o juízo – ao caso serve para desfazer alguns equívocos sobre a política enquanto meio e fim e o seu exercício. Responde, em parte e racionalmente, à vexata quaestio da ciência política sobre «quem» deve governar. Mas é claro que à questão do «quem deve governar» sempre teve respostas hedonistas e egolátricas: os ditadores e os autoritários deste mundo (de Stalin a Adolfo Hitler, passando por Mussolini e quejandos) sempre tiveram e deram a mesma resposta: Eu. Mas essa mesma resposta também é dada pelos partidos políticos, de acordo com o seu projecto de sociedade. É isso que o povo deve escolher – o melhor homem com o melhor projecto, aliás, uma coisa não é cindível da outra.

Mas esta ideia, aliado à sua natureza, não tem nada de substancialmente novo. Ela nasce de um pensamento preocupado com o bem-estar da humanidade – o de Sócrates que entendia que quem deveria governar era o «melhor homem», o sábio ou rei-filósofo.

Teremos de voltar à uma era remota para encontrar exemplos de políticos-filosofos ou sábios – serão os casos de Marco Aurélio e Alexandre Severus (com o seu «Conselho de Sábios»; onde se encontravam figuras como, v.g., Ulpiano, Paulus e Modestinus) e de Chandragupta. Alexandre Severus, inclusive, tinha Platão no seu Lalarium e admirava-o tanto que chamava-o de «o poeta dos filósofos» e tentou, durante o seu consulado imperial, criar um governo de sábios, encabeçado pelo célebre jurista Ulpiano, seu conselheiro. Entendia o pensamento da «A República» de Platão numa dimensão nobre e prescindiu de grande parte do seu poder imperial a favor do seu Conselho de Sábios – uma proto imagem dos modernos Conselhos de Ministros. Somente na modernidade, alimentado pelo hedonismo predador do exercício do poder, é que nos aparece a lógica desvitualizadora do pensamento platónico.

«A República» de Platão é, em parte, precursora da ideia de homem providência na medida em que é interpretada e desenvolvida por Carl Schmitt e o nacional-socialismo e outras formas maléficas do exercício do poder autoritário dos últimos séculos. Dificilmente teríamos a lógica do nacional-socialismo sem Platão? Isso é pensar que Platão, com «A República», cristalizou a ideia de político e criou um sentido teleológico no pensamento político e isso não verdadeiro. «Quem deve governar?» Karl Popper critica a resposta de Platão de forma assertiva e deliciosa para quem conhece ambos os pensadores. Mas, ao contrário do que muitos pensam, não é da ordem do universo filosófico, político e argumentativo de Karl Popper – como faz na «A Sociedade Aberta e Seus Inimigos» a resposta do «como» governar.

Pelo contrário – o que Karl Popper nos lega, em especial em «A Sociedade Aberta e Seus Inimigos» – não é uma superação da lógica platónica do «quem» deve governar com um «como» governar como paradigma, não.

O que nos legou foi uma outra coisa, substancialmente diferente. Pois se, em democracia, estamos de acordo que o «como» governar é e dever ser em nome do povo e para o povo – o que restará é, claramente, saber «quem» deve executar o «como». É algo de tautológico que não precisa de nenhum desenvolvimento – é um deontos social que determina todo o devir social e toda a acção política.

Assim sendo, logicamente, deve ser o mais capaz ou o melhor homem quem deve governar e, em razão do seu desempenho na gestão da coisa pública, ser julgado pelo povo – em regra nas urnas. Mas como, segundo um juízo de normalidade, é difícil saber quem é o melhor ou o mais capaz, o juízo sobre isso só pode(rá) ter de ser feito a posteriori. Dir-se-á, mas é somente prima facies – como veremos. E é por esta razão que Karl Popper nos coloca perante um outro problema decisório e que é um «como» diferente – o de julgar a acção política. «Como» afastar, por via pacífica, os governantes que divergem do fim da sua acção; «como» a sociedade pode e deve livrar-se de governantes incapazes ou corruptos.

Na verdade, não questiona a essência da questão do «quem deve governar» mas sim – perante a dimensão perniciosa que o «quem» pode assumir e assumiu em dados momentos da história – os aspectos subjectivos do eleito. Transcrevo as suas palavras:

«[…] First of all, such a reply is liable to persuade us that some fundamental problem of political theory has been solved. But if we approach political theory from a different angle, then we find that far from solving any fundamental problems, we have merely skipped over them, by assuming that the question ‘Who should rule?’ is fundamental.

For even those who share this assumption of Plato’s admit that political rulers are not always sufficiently ‘good’ or ‘wise’ (we need not worry about the precise meaning of these terms), and that it is not at all easy to get a government on whose goodness and wisdom one can implicitly rely.

If that is granted, then we must ask whether political thought should not face from the beginning the possibility of bad government; whether we should not prepare for the worst leaders, and hope for the best. But this leads to a new approach to the problem of politics, for it forces us to replace the question: “Who should rule?” by the new question: “How can we so organize political institutions that bad or incompetent rulers can be prevented from doing too much damage?”
(Karl Popper, The Open Society And Its Enemies, VII). É que, segundo nos diz aqui Popper – numa crítica recorrente ao sistema tripartido de separação de poderes – devemos, em política, «preparar-nos para os piores lideres e esperar pelo melhor possível».

E é neste ponto que resulta uma evidência, pelo menos para mim, de que em democracia representativa, a questão do «quem deve governar» e a do «como nos precavermos dos maus governantes e dos incompetentes» não são excludentes – como, prima facies, parece entender Karl Popper. Isto é, a) devemos escolher os melhores para governarem e b) devemos nos precaver dos maus governantes. O «como governar» não faz parte desta equação pois é condição condutora, é um limite imanente à acção governativa – daí, em Democracia do Estado de Direito Democrático, existir a dimensão reguladora da acção política conformada pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

É a praxis que mata as ideias. Penso que é possível o escrutínio social prévio sobre a qualidade dos governados – não é uma questão estritamente ex post mas também ex ante e de todo sindicável pela soberania popular – soberania que Karl Popper coloca em dúvida. O problema é que o sistema de partidos não permite o escrutínio prévio da «qualidade» dos candidatos – a(s) candidatura(s) independente(s), sim. Até porque, nestes casos, vota-se em pessoas, não em partidos. As candidaturas independentes são a expressão de uma sociedade aberta – quem as condena são, claramente, inimigos de um sociedade de cidadãos livres.

Mas o(s) sistema(s) de partido(s) têm algumas virtualidades, desde que sujeita ao escrutínio democrático do povo, enquanto verdadeiro soberano. É evidente que o actual sistema político precisa de alguns aperfeiçoamentos de modo a que o povo possa fazer uma escolha mais consciente e que represente a sua vontade esclarecida.

É claro que se apresentam alguns problemas e dificuldades – como a do «Paradoxo da Liberdade» – mas o que restará como fundamental é o bem objectivo plasmado em normas fundamentais que limitem a própria liberdade para defender a liberdade (v.g., evitar-se o que aconteceu em 1933 na Alemanha ou a reversão da independência). Mas este é um outro problema…

Posto isto, vejamos mais de perto esta ideia de sociedade aberta e esses inimigos – não raras vezes mascarados de democratas e que convém identificar, como Karl Popper faz. Antes de explanar o seu pensamento, o que faz de forma magistral, começa por enunciar «os bons e os maus da fita» das sociedades humanas, diz no início primeiro volume da sua obra «The Open Society And Its Enemies»:

«Pela Sociedade Aberta (cerca de 430 a.C): «Ainda que somente alguns sejam capazes de criar uma política, todos nós somos capazes de a julgá-la – Péricles de Atenas.

Contra a Sociedade Aberta (80 anos depois): O maior dos princípios é o de que ninguém, homem ou mulher, deverá estar sem um líder. Nem deverá a mente de seja quem for habituar-se a fazer seja o que for por sua própria iniciativa. […] Seja na guerra ou na paz deverá dirigir o seu olhar para o líder e segui-lo fielmente. Mesmo nas questões mais pequenas deverá estar sujeito à liderança. […] Numa palavra, deverá ensinar a sua alma, através de uma prática reiterada e pelo hábito, a nunca sonhar em agir de forma independente até se tornar incapaz de o fazer – Platão.»


Isto é, o individuo e a sua capacidade de julgar a coisa pública e os tiranos da alma e os grupos organizados que controlam a sociedade – o que chamo de aristodemocracia do actual Estado de partidos que se contrapõe ao desejado Estado de cidadãos. Vivem do poder e para o poder, deixando aos cidadãos somente o “poder de escolher” entre um grupo e outro que se perpetuam no poder por via de sistemas políticos que amordaçam a cidadania. Independentes dos partidos instituídos ou da sua direcção? Não, isso não! Dizem esses inimigos da sociedade aberta, da sociedade de cidadãos.

Esta sociedade aberta, fundada na liberdade de acção política, económica e cívica dos cidadãos, convoca os cidadãos ao exercício de uma cidadania activa, à responsabilidade de existir, segundo Karl Popper e a ética de Schopenhauer, realizando a sua individualidade e o bem da sociedade em geral.

O que estranho é que, na sociedade cabo-verdiana, são muitos dos defensores do liberalismo os primeiros a atacar o exercício da cidadania participativa fora do canones da estrutura partidária. Paradoxalmente, ou talvez não, a candidatura de Gualberto do Rosário plasma-se, numa leitura ideológica, na raíz do seu partido (MpD) e na lógica profunda da participação política popular do ideário berciário do PAICV [PAIGC]. Mas o poder, e tudo o que a ele se encontra ligado, é doce e ninguém gosta de o perder.

Os exemplos de homens que deixaram o poder, em regimes não «democráticos» em termos formais, são pouquíssimos. Avultarão os nomes de Chandragupta (na Índia imperial do Séc. IV a.C) que, perante a sua incapacidade de ajudar o seu povo deixou o poder e se dedicou a viver como um Shadu, despojado de todos os bens materiais. Outro exemplo foi o de Péricles na Atenas do Sec. V a.C.

Mesmo em democracia são raros os casos em que o detentor do poder sai do mesmo voluntariamente (daí a limitação de mandatos…). O caso de ex-Primeiro Ministro de Portugal, António Guterres, é e deve ser um case study por ter inaugurado uma nova forma de ética democrática e que, estranhamente, passou despercebido. António Guterres, não se sentindo em condições de governar o país e consciente de que o povo tinha deixado – substancialmente – de confiar no seu consulado, decidiu devolver o poder ao povo: chamou-o a pronunciar-se nas urnas. Deveria ter sido aplaudido, mas quase que foi crucificado.

O «como» de Karl Popper é um «como» evitar o conflito desagregador e não um «como» da ordem da razão de um dado bem-fazer da gestão da coisa pública com vista a possibilitar a realização do indivíduo ou o fim social. É um juízo que se realiza ex post factum – quando já nada há a fazer perante os danos da má gestão social e politica da coisa comum.

Popper, com a sua ideia de sociedade aberta, pretende afirmar a dimensão de liberdade do indivíduo (de escolhas, nomeadamente políticas) e a sua dignidade como o valor fundamental da sociedade sustentada nas suas escolhas. Pode, numa dada perspectiva, ser vista como uma sociedade hedonista – sim; mas é somente aparente pois o que está em causa é a liberdade da pessoa perante e contra o Estado e os particulares (partidos políticos, inclusive) que podem limitar a realização da sua individualidade.

Nesta perspectiva, os partidos políticos, as grandes corporações e o projecto «universal» da globalização representam um perigo à individualidade, um inimigo da sociedade aberta aos cidadãos.

Fico, assim, preocupado ao ouvir vozes carpirem dores de alma básica e praticamente considerarem «inimigo» um cidadão que se assume como indivíduo e candidato independente e à margem do partido – que alguns militantes parecem querer apertar sobre a margem da margem. Mas, afinal, o que é mais importante: o partido ou a(s) pessoa(s) e a(s) sua(s) ideia(s)?

É a manifestação de uma ideia e projecto de sociedade que oprime o homem de tal modo que a individualidade – vontade, ideias, projectos, sonhos – não têm lugar. E não se acanham, esses projectos de rabiscos de juízo, de chamar «fascista» a quem defende a individualidade contra a lógica opressora de grupo a que Karl Popper chama, numa crítica ao historicismo de «tribalismo» (Karl Popper, The Open Society And His Enemies, I) – seja ela com base na lógica dos «escolhidos» ou do grupo ou colectividade, dir-se-á partidos políticos ao que nos importa. Pois o que é a lógica partidária – quando destituída de uma noção de serviço público e com o bem-estar da nação – senão uma «tribo» com a lógica de protecção dos «nossos»?

Aqui jazem alguns dos inimigos da sociedade aberta à pessoa e aos cidadãos. Aqui jazem os defensores de uma sociedade fechada, filtrada pelos interesses partidários e em que os interesses destes se sobrepõem aos da pessoa.

George Soros, há alguns anos deu uma conferência, mais tarde publicada no «The Critical Racionalist» em que dizia que «[…] My philosophy can be summed up in one phrase: a belief in our own fallibility. This phrase has the same significance for me as the dictum, cogito ergo sum, does for Descartes. Indeed, its significance is even greater: Descartes' dictum referred only to the person who thinks, whereas mine relates also to the world in which we live. The misconceptions and misunderstandings that go into our decisions help shape the events in which we participate. Fallibility plays the same role in human afairs as mutation does in biology» (George Soros, «A Failed Philosopher Tries Again», in The Critical Rationalist, I.1, 1996).

Tenho de concordar com este juízo sobre a natural falibilidade das acções e/ou escolhas humanas, mas como em biologia – invocando um darwinismo social na perspectiva da evolução e adaptação às nossas escolhas – a natureza produz a consequente correcção.

Por essa razão, depois de uma ou várias escolhas mal sucedidas (assim como uma mulher que escolhe o homem desadequado às suas necessidades espirituais, sexuais e materiais), importa(rá) não lavrar no mesmo erro. O cidadão deve avaliar antes de comprar seja o que for – a isso chama-se consciência. Depois de falhar-se, corre-se o risco de esperar uma outra oportunidade e esta pode não chegar, como o tempo que não volta para trás.

PS: «A República» de Platão e a «A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos» de Karl Popper deveriam ser livros obrigatórios para todas as pessoas que ingressam no ensino superior
Virgílio Rodrigues Brandão

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1. Às vezes, nota-se à distância, há pessoas que ficam-se grávidas de ideias – de ideias alheias. Depois, depois não sabem o que fazer com elas. Esta forma de plágio de ideias/projectos é a mãe da maioria dos fracassos.

2. A língua cabo-verdiana continua maltratada, subalternizada e vista como uma «coisa», um corpo estranho no concerto linguístico da humanidade – mas não é.

Até quando dobrará a coluna? Até quebrar? Ah, não!... E hoje é dia da língua materna...

~Broken Column, Frida Khalo ~

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