«LA AMISTAD» E A NOVA ESCRAVATURA
Há alguns anos, durante uma conversa com o de cujus Manuel Delgado, o mesmo contou-me um episódio que se passou ao visitar a casa dos escravos na Ilha de Gorée, Senegal.
Na altura, estava com uma delegação governamental de visita oficial ao país e um representante da nação – cujo nome fica perdido nas palavras da sua confidência, mas que sabe o que disse –, pasmado com a qualidade do local, não se conteve e exclamou:
– Não sabia que pretos eram capazes de fazer coisas assim!
Manuel Delgado falava-me dessa palavra preto usado pelo governante (e do modo de dizer, soou-lhe a nigger) e relembrava-lhe de que, quando era menino no Mindelo, existia essa diferença entre pretos e brancos e que somente a capacidade económica ou algum protagonismo social daqueles conseguia prescrever.
Hoje, os africanos e afro-descendentes de todo o mundo continuam com uma herança psicológica de menoridade em função da raça e, não raras vezes – como a expressão do governante referido e a forma como se tratam os ditos «mandjakus» em Cabo Verde é prova bastante –, esquece-se a pessoa e os seus valores.
A euforia com que se vê a candidatura de Barack Obama a candidato a Presidente dos Estados Unidos é, também, uma demonstração de que a comunidade negra mundial ainda não se libertou do estigma racial e que vêem no Senador do Illinois não como uma pessoa com um projecto mas sim como um redentor da alma da escravidão. Mas este recôndito dream jaze numa falácia pois tal resgate é somente aparente – a escravidão é, ainda, uma realidade em muitos países do mundo, quer na forma tradicional quer na moderna.
A passagem do La Amistad por Cabo Verde terá servido, espero, para as pessoas pensarem que o tempo da escravidão não terminou – mudou de forma, mas em substância é a mesma e persiste. Os locais naturais de passagem são e continuam as mesmas – Cabo Verde tem esse destino histórico ditado pela sua estrutura geomorfológica e não pode escapar a isso. O passado é importante, mas o presente e o futuro são-no ainda mais.
Em Outubro de 2007, o historiador Daniel Pereira defendia numa conferência «Cidade Velha: O Futuro do Passado» que a "A primeira globalização do mundo dá-se aqui. Recebemos de todos os sítios e demos a todos os sítios". E se assim foi (será assim no Séc. XV se considerarmos o novo mundo e declaração de conhecimento da África subsaariana, mas não verdadeiro se se olharmos para o passado mais remoto), não existe razão para que ainda se continue a tratar as vítimas do novo tráfico negreiro – transporte ilícito de (e)imigrantes – como criminosos e sujeitos à prisão como se fosse autores de delitos comuns.
Há alguns anos, durante uma conversa com o de cujus Manuel Delgado, o mesmo contou-me um episódio que se passou ao visitar a casa dos escravos na Ilha de Gorée, Senegal.
Na altura, estava com uma delegação governamental de visita oficial ao país e um representante da nação – cujo nome fica perdido nas palavras da sua confidência, mas que sabe o que disse –, pasmado com a qualidade do local, não se conteve e exclamou:
– Não sabia que pretos eram capazes de fazer coisas assim!
Manuel Delgado falava-me dessa palavra preto usado pelo governante (e do modo de dizer, soou-lhe a nigger) e relembrava-lhe de que, quando era menino no Mindelo, existia essa diferença entre pretos e brancos e que somente a capacidade económica ou algum protagonismo social daqueles conseguia prescrever.
Hoje, os africanos e afro-descendentes de todo o mundo continuam com uma herança psicológica de menoridade em função da raça e, não raras vezes – como a expressão do governante referido e a forma como se tratam os ditos «mandjakus» em Cabo Verde é prova bastante –, esquece-se a pessoa e os seus valores.
A euforia com que se vê a candidatura de Barack Obama a candidato a Presidente dos Estados Unidos é, também, uma demonstração de que a comunidade negra mundial ainda não se libertou do estigma racial e que vêem no Senador do Illinois não como uma pessoa com um projecto mas sim como um redentor da alma da escravidão. Mas este recôndito dream jaze numa falácia pois tal resgate é somente aparente – a escravidão é, ainda, uma realidade em muitos países do mundo, quer na forma tradicional quer na moderna.
A passagem do La Amistad por Cabo Verde terá servido, espero, para as pessoas pensarem que o tempo da escravidão não terminou – mudou de forma, mas em substância é a mesma e persiste. Os locais naturais de passagem são e continuam as mesmas – Cabo Verde tem esse destino histórico ditado pela sua estrutura geomorfológica e não pode escapar a isso. O passado é importante, mas o presente e o futuro são-no ainda mais.
Em Outubro de 2007, o historiador Daniel Pereira defendia numa conferência «Cidade Velha: O Futuro do Passado» que a "A primeira globalização do mundo dá-se aqui. Recebemos de todos os sítios e demos a todos os sítios". E se assim foi (será assim no Séc. XV se considerarmos o novo mundo e declaração de conhecimento da África subsaariana, mas não verdadeiro se se olharmos para o passado mais remoto), não existe razão para que ainda se continue a tratar as vítimas do novo tráfico negreiro – transporte ilícito de (e)imigrantes – como criminosos e sujeitos à prisão como se fosse autores de delitos comuns.
A globalização não é, de forma alguma, um mal em si mesmo. A globalização do conhecimento, da cidadania e da riqueza são mais valias para uma humanidade sustentada e uma ética do outro.
A forma como se tratam os imigrantes ilegais em Cabo Verde não é, em substância, diferente daquela a que Sengbe Pieh (conhecido como Joseph Cinquez) e os seus 52 companheiros do La Amistad foram tratados pelos norte-americanos, ao darem à costa em Long Island, Nova Iorque, no dia 24.01.1839.
Será que o povo migrante de Cabo Verde teve tempo e vontade de reflectir sobre isso? Ou o povo das ilhas terá revisitado um outro passado e ficado entretido na festa e, siderado p´vzita d´mercône, pensou que vapor d´Sul tinha chegado, uma vez mais, ao Porto Grande?
Temos de parar um pouco, como povo e nação, e pensar no essencial, isto é, nas pessoas, na sua dignidade e nos (nossos) valores que devem nortear as politicas migratórias.
Não temos, certamente, de pensar (como o referido representante [?] da nação cabo-verdiana) de forma eurocêntrica, como se fôssemos europeus, e nem temos, necessariamente, de ser guardiões dos portões da Europa.
6 comentários:
Desta vez te dou nota 20, brilhante! Tocaste num assunto importantíssimo, e a relação que estabeleceste entre a forma como são tratados os nossos manos africanos intitulados de "imigrantes ilegais" e a reacção da população à chegada do La Amistad, que acabei de ver na RTP África no programa “Nha Terra nha Cretcheu” é simplesmente fantástica! Assisti um repatriamento no último verão em Cabo Verde e foi-me uma experiência angustiante ver a forma como a malta trata os nossos manos, desde do apertado aparato de segurança como se fossem criminosos e que podiam armar alguma cilada para fugirem ou atentarem contra a integridade física de alguém. Como defendi num comments no blog Café Margoso do João Branco, tu, Virgílio, se estivesses em Cabo Verde serias uma grande valia para o país, pois discutes as coisas com seriedade, moderação, com uma sagacidade estonteante, e um espírito crítico apurado. (Outras pessoas também nesse referido post te elogiaram a propósito do teu post A MENTIRA E MOMENTOS INFELIZES). De qualquer forma estás "antenado" (como dizem os brasileiros) com o que se passa em Cabo Verde e tens dado uma valiosa contribuição li de Terra Longe. Este post merece no mínimo ser publicado no liberal ou asemana, passei por liberal e não vi nada ainda...
Esta é uma matéria que dá azo para discutirmos o nosso passado e todo complexo de muitos cabo-verdianos em relação à África. Quanto ao termo "mandjaco", que é usada de uma forma pejorativa la na terra, é triste porque as pessoas esquecem-se (?) que, muitos de nós, temos sangue mandjaco a correr nas nossas veias por ser em um dos grupos que deu origem aos cabo-verdianos, assim como os papel, mandinga entre outros da Costa da Guiné.
O post do João Branco que refiro acima refere-se a uma das Perguntas Cafeanas, e é de terça-feira, 11 de Março de 2008 cujo o título é:
O episódio do líder da oposição chamar publicamente “mentiroso” ao Primeiro-Ministro pode ser considerado a versão crioula do tristemente célebre “porque non te callas”.
Mais uma vez muitos parabéns pela boa crítica, que é profunda e muito bem reflectida, para além de ser um belo texto!
É pa Virgílio o teu artigo está fantástico, sugeri ao João Branco para que ele "postasse" esse artigo no blog dele e assim o fez. Acho que o devias ter "postado" no Liberal como refere o comments anterior.
José Luis Santos.
José Luis,
obrigado pelo teu comentário. Nem cheguei a cogitar essa possibilidade pois foi um texto escrito directamente no Blog...
Depois de publicado, não me pareceu correcto enviá-lo... Sendo certo que é um texto livre e não sujeito a quaisquer direitos autorais ou coisa similar.
Bem,
ainda não fiz uma visita à voz blogueira - mas passarei pelo Café Margoso e agradecerei ao João a gentileza.
Abraço fraterno,
Virgílio
Ok, é que achei a temática tão premente e pensei que devias publicá-lo.
Aquele abraço!
Caro Virgílio Brandão, eis o comentário que fiz no blog Café Margoso a propósito deste teu post «LA AMISTAD» E A NOVA ESCRAVATURA:
"Caro João Branco,
Confesso ser um frequentador assíduo do blog Terra Longe do Virgílio Brandão, e considero o texto “ ‘La Amistad’ e a nova escravatura” um dos melhores textos do Brandão, não que os outros não estejam à altura desta, mas porque de uma forma tão arrojada e perspicaz ele abordou um tema muito delicado e que poucos têm ousado tocar publicamente. Todos nós sabemos, penso eu, de que a segurança apertada e toda a parafernália que os nossos polícias têm utilizado para escoltar os imigrantes ilegais têm sido excessivas. Essas pessoas, nada mais fazem do que fugir da miséria e da desgraça que, muitas vezes, grassam os seus países em busca de uma vida melhor. Essa atitude temerária por parte desses migrantes tem levado a morte de muitos deles em pleno alto mar. Saem à noite rumo a uma ignota rota e enganados por algumas pessoas que lhes prometem levá-los até as Canárias são abandonados nas nossas águas.
O que tem tornado lugar-comum é a retórica, de alguma comunicação social e não só, de que os imigrantes da costa da Guiné, da Nigéria ou Gana, os deportados dos E.U.A, e as nossas “crianças de rua” são os responsáveis pela insegurança e criminalidade em Cabo Verde. Essa análise mediática e apressada tem apontado as pessoas que atrás mencionei como os bodes expiatórios dos males sociais de Cabo Verde. Acho que em vez disso temos que ter em conta e focar os nossos problemas internos, os nossos desequilíbrios e fragilidades sócio-económicas, a falta de emprego etc. Há que investir mais na educação, saúde, cultura por exemplo, e outras formas de desenvolvimento que possa criar postos de emprego, que não sejam exclusivamente os de transformar algumas ilhas em campo de golfe.
Retomando o texto do Brandão sobre a passagem da réplica do “La Amistad” a Cabo Verde e a forma como se tratam os imigrantes ilegais em Cabo Verde, é de notar que a comitiva do La Amistad foi recebida na nossa capital e na Cidade Velha com toda a “pompa e circunstância” e em clima de “quase apoteose”, nada contra e achei louvável a iniciativa. Todavia, defendo que temos de tratar também os imigrantes do nosso continente – aqui não estou a referir somente aos imigrantes ilegais mas aos legais também - que vivem e trabalham no nosso torrão dignamente, pois acho que eles são, muitas vezes – para não dizer quase sempre, mal recebidos e acarinhados. Espero que nós os cabo-verdianos possamos fazer jus à palavra “morabeza” que tanto utilizamos, e que não a tornemos oca. Para além disso, infelizmente muitos cabo-verdianos chamam a esses imigrantes pejorativamente de “mandjaco”, um dos grupos que - juntamente com os balanta, papel, mandinga, fula, bijagó, jalofo, portugueses, judeus ou genoveses - deu ao cabo-verdiano o seu colorido genético e cultural. Temos de ter a consciência do que fomos, do que somos, e do que podemos fazer para alterar a situação vigente. Mas, como diria Goethe: “ O homem de acção não tem consciência, só tem consciência aquele que contempla”. Sim, temos que contemplar e não só, temos que reflectir e agir tenazmente para que os nossos irmãos africanos sejam tratados condignamente pelas nossas autoridades e pelo nosso povo."
Abraços!
Ruben.
Obrigado.
Volte sempre, Ruben.
Abraço fraterno,
Virgílio
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