- HILLARY CLINTON E 35 RAZÕES DA BOA (NÃO) GOVERNAÇÃO DE JOSÉ MARIA NEVES
Facto: os elogios da Secretária de Estado norte-americana à «boa governação» cabo-verdiana tiveram o condão de elevar o Governo de José Maria Neves em exemplo para África, e de «calar» uma oposição quase acéfala. Foi, no plano político, uma verba eucalyptus panglossiana de uma inesperada fada madrinha. Três coisas que me espantaram, espantam!, e que provam que ainda – mau grado termos lutado contra o imperialismo e o colonialismo – temos mentalidade de colonizados, humildade cristã espremida (na perspectiva de Nietzsche) e ambição pequena, demasiado pequena para as ambições e necessidades reais do povo cabo-verdiano.
Mas em que contexto é que se dá esse «elogio da boa governação» (lembra-me Erasmo de Roterdão e a sua obra dedicada a Thomas Morus, Ministro de Henrique VIII), e em que se baseia Hillary Clinton para dizer o que disse? Ela mesma o diz: pelo que ouviu! Não foi pelo que viu (ou ouviu do povo), mas sim pelo que ouviu: dos relatórios e do que foi dito e contado pelos políticos numa lógica de comparação com o pior que África revela. Quem fica contente com esta perspectiva, não me parece merecedor de governar Cabo Verde – seja este Governo, seja a oposição! A nossa terra e o nosso povo merecem – já o disse antes e reitero-o agora – outro padrão comparativo: o dos países desenvolvidos!
Boa governação em Cabo Verde? Sim, se comparado com o Zimbabué e a República Democrática do Congo! Transparência na governação e não corrupção? Sim, se comparados com o Quénia, o Zaire, o Gabão ou a Guiné Equatorial! Não violação dos Direitos humanos? Sim, se compararmos a nossa realidade com a do Continente africano cleptocrata e corrupta no global – mas o mal dos outros não justifica os nossos males! O termos mais mulheres que homens num Governo é razão para elogio? Não! A não ser na lógica feminista (e Hillary Clinton não escapa à esta armadilha ideológica), pois o que o partido que formou Governo fez foi chamar para o Executivo as pessoas – não o género – que pensou e pensa serem as mais competentes.
O Irão de Khameney e Amenidejade irá ter, dentro de dias, mais mulheres no Governo que muitos países ditos democratas (na Europa, v.g., foi preciso haver leis de quotas para haver mais mulheres na política). Isso torna(rá) o Irão um país democrata ou respeitador dos direitos humanos e das mulheres em particular? É claro que não – a não ser com vício silogístico; pelo que devemos ter cuidado com as inferências que retiramos do discurso político, venha de onde vier – ser do país mais poderoso do Mundo não quer dizer que se seja do «mundo das ideias» ou da razão plenipotenciária. As mulheres continuam a ser as maiores vítimas da discriminação social e da violência em Cabo Verde: dos empregos precários e escandalosamente mal pagos, passando pela violência doméstica e moral, o assédio moral, a discriminação de género na escola por engravidarem… (que o governo não faz nada, a não ser dizer que vai «estudar a questão») and so on!
É tempo, mais do que tempo, de deixarmos de confundir a nuvem com Juno! E, é bom que seja dito: a América não é uma democracia, como bem diz Noan Chomsky (e não fala propriamente da fraude eleitoral que determinou a derrota de Al Gore, nem da ilegitimidade da pena de morte – que é incompatível com a ideia de democracia – ou da venda de lugares políticos, não; fala de algo bem mais profundo, do que é denominado por Robert Dahl como Poliarquia), mas sim uma mera ilusão de democracia. Os políticos fazem com o povo algo análogo ao que Baudelaire diz sobre o Diabo: «a maior arma do Diabo é convencer as pessoas de que não existe»; assim, a maior arma dos políticos é convencer as pessoas que vivem numa democracia. A percepção de Alexis de Tocqueville (A Democracia na América) é, ainda hoje, um instrumento importante para percebermos a dimensão da «democracia» americana.
Temos uma Constituição de matriz ocidental – e a assunção dos respectivos valores – mas continuamos a comparar o projecto social da mesma com os padrões políticos do subdesenvolvimento de África! Como não posso pensar que os políticos não entendem a Constituição e os seus valores, tenho de chegar à outra conclusão para este facto: é uma lógica de desculpabilização da inépcia política que nós, os cidadãos-povo, não podemos nem devemos aceitar! Eu, como cidadão, exijo do Governo do meu país que cumpra com tudo o que a Constituição consagra, que realize o mandado do projecto social constitucional; não aceito, recuso-me a aceitar desculpas políticas com base em comparações espúrias e contra a matriz social (e cultural, pois a Constituição e a Democracia são, essencialmente valor e cultura) que preconizamos como Povo, Nação e Estado.
Mas o que é isso da «boa governação»? Será, certamente, a «escolha certa» consabida pelos cientistas políticos, mas tenho as minhas dúvidas de que seja aquilo que é vendido ao povo cabo-verdiano como facto consumado – com base em números e ouvir dizer – em dadas circunstâncias, como a visita da Secretaria de Estado Hillary Clinton. A realidade de uma boa governação não se casa com os números, mas com a satisfação das necessidades dos governados; os números só são relevantes quando expressam a verdade da realidade.
É por isso que o Primeiro Ministro José Maria Neves não se deve deixar «emprenhar pelos ouvidos» – como diz o povo, mas atentar na realidade (e esta não se engana) real e perguntar a si mesmo se é bem governado um país onde:
(1) não se consegue ter água para todos; (2) luz para suprir necessidades básicas (com a kapital da Nação cronicamente às escuras – e um Governo que já se revelou manifestamente incapaz de resolver o problema da ELECTRA); (3) em que a Ministra das Finanças vem a público reconhecer um erro notório na política fiscal – e que não é nada mais do que a ponta do iceberg fiscal; (4) em que a segurança dos cidadãos não é efectivamente garantida pelas forças de segurança; (5) em que o Supremo Tribunal de Justiça leva mais de dois anos a julgar um recurso de apelação no âmbito do poder paternal (ignorando, de forma ostensiva os direitos fundamentais de uma menor); (6) em que o Governo está há dez anos para instalar os serviços do Defensor do Povo (Provedor de Justiça) e o Tribunal Constitucional; (7) em que as leis – como foi o caso do Código Eleitoral – e a Constituição são reformadas numa espécie de cúpula e na surdina; (8) em que Governo é refém de um sistema de aprovação de leis fiscais absurdo; em que (9) que não existe um ordenado mínimo nacional – deixando os cidadãos mais desfavorecidos à mercê de empresários inescrupulosos;
(10) em que o ensino superior se torna elitista por se estar a tornar um sistema de formação privada em que os discentes pagam propinas mensais superiores a remuneração auferida pela maioria dos cidadãos trabalhadores (daí ser um negócio em que muitos se aventuram): (11) em que os deputados acumulam funções electivas e remuneradas e outras no Estado e/ou empresas públicas; (12) em que funcionários públicos acumulam funções e remunerações enquanto o (13) país tem uma taxa de desemprego a rondar os 20%; (14) em que a juventude se vê obrigada a emigrar, desertificando assim o solo pátrio; (15) em que alguns querem empurrar os «pobres» para a formação profissional (que é, em verdade, quase inexistente no país e é uma das falhas estruturais de Cabo Verde) para depois serem consumidos por terra-longe – daí os acordos com países europeus para «trabalhadores qualificados»; (16) em que a desigualdade social cresce a olhos vistos – com o consequente crescimento da criminalidade e de outras formas de comportamentos desviantes (ao contrário do que diz a Ministra da Justiça, não é o desenvolvimento que provoca o aumento da criminalidade: é o subdesenvolvimento, a pobreza, a guetização e a discriminação social que o faz!); (17) em que não existe um politica de retorno dos quadros formados no exterior (será por se pensar, mesmo, que cabo Verde tem «doutores a mais»?) e que promove algumas fragilidades; (18) em que o sistema de Saúde precisa de urgente requalificação, com custos insustentáveis para o Estado (ter cuidados de saúde é, para muitos, um luxo: quem tem dinheiro tem Lisboa, Boston ou Bruxelas); (19) em que a TACV se encontra em quase falência técnica, quando deveria dar lucro;
(20) em que não existe um plano de emergência em caso de alguma catástrofe natural; (21) com algumas ilhas, em termos de acessos ao resto do país e ao Mundo a mesma distância de Marte; (22) em que o Orçamento do Estado é, em grande parte, financiado por empréstimos bancários externos – como as consequências futuras que tal endividamento público terá no futuro da frágil economia nacional; (23) em que a Administração fiscal não controla as constas dos partidos políticos e dos detentores dos cargos públicos; (24) em que o Governo não consegue conter o tráfico de estupefacientes e de pessoas no arquipélago – chegando a Ministra da Justiça ao cúmulo de ter um discurso de quase capitulação perante o aumento do crime; (25) em que o tribunais reclamam independência do poder politico e os políticos reconhecem a necessidade (26) de haver um poder judicial independente e com um Governo incapaz de encontrar soluções adequadas para essa realidade; (27) com os pobres a reclamar trabalho, pão e justiça – recebendo migalhas e musicais de verão, como se fossem lídios e não cabo-verdianos; (28) em que o lixo ameaça afogar a pouca terra que temos; (29) em que o ambiente, enquanto direito fundamental dos cidadãos, é desconsiderado por ausência de politicas sustentáveis;
(30) com um Ministério da Cultura que não cura das raízes da nação, e um Governo que não consegue instituir a língua materna como língua nacional por manifesta falta de coragem política (censura que é, também extensível à oposição; (31) em que se admite a possibilidade – que os americanos rejeitaram liminarmente – de poder-se extraditar cidadãos nacionais para serem julgados no estrangeiros ou entrega-los ao Tribunal Penal Internacional, porque o Governo apresenta uma proposta de Lei no sentido de resolver-se estas questões sem ser por via da revisão da Constituição; (32) em que o Governo assume responsabilidades internacionais, nomeadamente o Tratado da Extradição da CPLP, que o obriga a rever Constituição e brigar com esta e os direitos, liberdades e garantias dos cabo-verdianos; (33) em que a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania é uma instituição materialmente tutelada pelo Estado; (34) em que a exteriorização de riqueza dos titulares de cargos públicos e de cidadãos com modo de vida não conhecido não é devidamente escrutinado; (35) em que a Imprensa é tudo menos livre e isenta, pois nada mais são do que caixas de ressonância dos interesses do poder instituído e/ou da oposição, e não dos interesses do povo e da nação.
Perante estas realidades (e mais há e haveria para dizer), parece que o que precisávamos era de um Emile Zola para um renovado J´Acuse social. Mas, verdade seja dita, há gente de boa vontade no Governo e na oposição que contribuem e contribuíram para que o país se tornasse um projecto político e social viável. A consolidação da independência nacional foi conseguida, em parte, nos últimos anos; mas nota-se, hoje por hoje, uma tentativa de retrocesso ao nível da independência económica, de projecto social democrático e do discurso político (paradoxalmente entre os parlamentares, os representantes do povo).
Existem aspectos positivos, sim; é verdade que os há. E felizmente que os há! Há que dizer, no entanto, que o facto do Governo (i) não ter o suporte parlamentar de uma maioria qualificada, como os dois primeiros governos depois de 1991 tiveram; (ii) de haver a convergência com o Euro (logo, uma limitação no plano da política monetária); (iii) e uma limitação da acção governativa no plano fiscal (que limita as políticas financeiras do Governo), além (iv) as limitações ex natura da estrutura económica e insular do país e a que acresce (v) a crise económica internacional e que tornam a acção governativa particularmente penosa sem, no entanto, serem situações ou razões desculpantes para a maioria dos males que o país sofre. É que o povo de Cabo Verde não quer uma política de sobrevivência, quer e ambiciona mais: uma política de desenvolvimento real, efectivo e sem ter de hipotecar os valores fundamentais que abraçou ao se tornar num Estado de democracia pluripartidária.
«O Presidente Obama e eu dizemos: sim, é possível, a boa governação em África. Olhem para Cabo Verde» – Hillary Clinton dixit. Isto é, no meio disso tudo que enumeramos, uma coisa resulta clara e espantosa para os americanos: não seremos, neste aspecto da boa governação, um exemplo somente para África mas para todo o Mundo: a nossa bolsa de valores não sente a crise internacional e, mais do que tudo, a nossa economia é blindada e anti-crise. Hillary Clinton levou a receita na bagagem, e o Luminoso Obama poderá, agora, fazer jus ao seu nome. Quem sabe, lá mais para a frente, não venhamos a ter um Nobel crioulo: o inventor da receita para vencer a recessão económica Mundial e a crise do capitalismo selvagem.
Mas, ironia a parte, o que foi dito é uma prova pleníssima de que a boa governação não é assim tão boa como se diz e se apregoa! Esta «boa governação», bem vendida e comprada por Hillary Clinton e o Luminoso Obama (o que exige ciência, diga-se an passant), faz-me lembrar o que Kant disse quando, em Konisberg, foi informado das atrocidades que se cometiam em França depois da revolução: «é o homem a aprender a viver em liberdade». O que não é, de todo, um elogio à percepção dos nossos parceiros e amigos americanos da realidade; não somente de Cabo Verde, mas de África em geral.
Agora, como disse em outra ocasião e aqui neste mesmo espaço, uma coisa resulta certa: governar um país com as fragilidades económicas e sociais de Cabo Verde é um exercício contínuo de milagre(s); e se queremos almejar a um Mundo Novo – admirável ou não – temos que o construir com transparência e verdade, pois esta liberta e aquela credibiliza. É com elas que se pode construir, como diz o Primeiro Ministro José Maria Neves, uma África nova, optimista e positiva. Por isso é que as instituições devem funcionar!
E, em Cabo Verde, as instituições funcionam? – perguntar-me-á. É, de todo, uma pergunta retórica, pois (i) A crise endémica na Justiça, (ii) a crise social: desemprego, criminalidade, pobreza, (iii) a falência da Assembleia Nacional (que delegou numa Comissão político-partidária a sua função mais nobre: rever a Constituição) em encontrar uma solução de revisão da Constituição, (iv) o não funcionamento do Provedor de Justiça e do Tribunal Constitucional, com funções estruturantes no Estado de Direito cabo-verdiano.
--- Publicado inicialmente em Liberal on line
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