sexta-feira, 14 de agosto de 2009

  • REVISÃO CONSTITUCIONAL: ERAM DOIS, MAS SÓ UM COMETEU ADULTÉRIO…
Sobre a discussão que grassa em Cabo Verde sobre a Revisão Constitucional, e pelo mais que esperado e previsível falhanço do processo (daí, como disse a muitos amigos, ter deixado de escrever sobre a matéria no Liberal on line) lembrei-me da arcana expressão latina, de autor desconhecido mas que terá sido usado a propósito da violação da Lucrécia (pelo menos por Santo Agostinho na Cidade de Deus) e da queda de Tarquínio o Soberbo que determinou a emergência da República Romana: «Mirable dictu; duo fuerunt, et adulterium unus admisit» (Ó maravilha: foram dois e só um cometeu adultério). Pois é, mesmo como diz uma música da terra profunda: «Nossa S´nhora d´Riola rogâ por nós». O povo bem que precisa.

E parece que eu não estava enganado quando previa que só depois da Convenção do MPD é que haveria revisão constitucional. E ao ouvir as explicações, erráticas e obscuras, compreendo as razões políticas e partidárias do falhanço desse processo. E por onde andam as actas da Comissão Eventual da Revisão da Constituição? – pergunto. É documento a ser tornado público, com a maior brevidade possível, pois só assim o povo saberá o que os deputados da Nação andaram a fazer todos meses para nada, e porque não se chegou a um consenso (os consensos são sempre soluções frágeis, e vivemos numa terra de consensos forçados).

Note-se que as matérias não são, ao que parece – as que vêm a público… – problemas de maior, como são os casos da Presidência do Conselho Superior da Magistratura Judicial ou da alteração da maioria para a aprovação de leis fiscais. São questões técnicas, de sistema jurídico-constitucional que, do ponto de vista dos técnicos é simples de serem resolvidos: (i) ou Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) continua a ser presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal (STJ) de Justiça (que deverá ser eleito pelos seus pares, e não ter nomeação política!), por inerência, ou, em alternativa, (ii) ser o CSMJ constituído por magistrados e cidadãos na mesma proporção (tendo o presidente do STJ lugar no mesmo), sendo o seu Presidente eleito, também e sempre, pelos respectivos Conselheiros e não pelo poder político. Não aceitar nenhuma destas soluções, que serão as que melhor se adequam a matriz política e jurídico-constituional pátrio, é ir contra o interesse nacional e dos direitos do povo cabo-verdiano.

No que concerne às normas fiscais… bem, como digo e escrevo há anos: tal é uma aberração política, pois não faz sentido que a maioria exigida para a sua aprovação de normas fiscais seja a qualificada. Pois tal, na verdade, faz com que o Governo fique constantemente refém da oposição, e consubstancia uma forma sub-reptícia de afrontar a separação de poderes que deve(ria) existir, em tese matriz, entre a Assembleia Nacional e o Governo. São problemas menores, ao nível da solução, pois outros existem mais complexos, mas nem por isso não passíveis de soluções igualmente simples, se se pensar no interesse nacional e não no(s) partido(s) e na(s) agenda(s) politica(s) determinada(s) por este(s). Tenho, eu e o povo cabo-verdiano, de concordar com Carlos Veiga: as pessoas e o Estado estão acima dos partidos; mas parece que, nesta questão da revisão da Constituição não é o que se passa na mente dos deputados da nação que agem, na verdade, como deputados dos partidos.

E como, ao contrário do que dizia Tucídides, não «desfrutámos de um regime político que não imita as leis dos nossos vizinhos; mais que imitadores de outros, nós, de facto, servimos de modelo para os outros» (Tucídides, El Discurso Fúnebre de Pericles, III), temos de ver a nossa matriz de ciência e conformar as nossas decisões fundamentais de acordo com ela e o interesse nacional. E se somos copiadores, devemos agir de acordo com a matriz copiada; inventar, e mal, não vale! É, será, duplamente penalizador não agir de acordo com ciência certa.
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Nota-se, an passant, que Tucídides fazia alusão ao decênviro (dez Tribunos do povo, magistrados encarregues de defender os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos – os primeiros da história, a nível institucional republicana) que, aquando da instauração da República, foram encarregues de fazer leis escritas para Roma num período de conturbação social que o desaparecimento do poder real causou. Alguns destes homens foram até a Grécia estudar o sistema político grego e as leis de Sólon que, a final, deram origem (depois de dois anos de estudo, nota-se) àquela que seria a norma fundamental da República Romana: a Lei das Dozes Tábuas. Esta é, certamente, a primeira Constituição republicana em sentido material (Benjamin Constant que me perdoe, mas esta realidade precede a Magna Charta de João sem Terra) e formal da história ocidental. Segundo Marco Aurélio, Demócrito dizia que «O mundo é apenas mudança; a vida apenas opinião» (Marco Aurélio, Pensamentos Para Mim Mesmo, IV.4). É caso para dizer: Nihil novi sub soli.

Não proceder-se à revisão da Constituição é uma traição à nação! Como Lucrécia que foi violada pelo príncipe de Roma, assim a nação cabo-verdiana e as suas esperanças legítimas são afrontadas pelos seus representantes na Assembleia Nacional. E é bom lembrar aos senhores deputados que foi a violação de Lucrécia que causou a queda do Rei de Roma, e deu lugar à República (para os distraídos e esquecidos da História, fica ao conselho de (re)visitarem, v.g., Tito Lívio e/ou Mommsen); assim como foram os abusos do poder, o autoritarismo e a arrogância política que levarem à queda do PAICV em 1991 a instauração da II República cabo-verdiana e, depois, à derrota do MPD, depois de este ter a história ao seu lado e os instrumentos jurídicos adequados para perpetuar-se no poder se tivesse tido ciência para tanto. A história é memória, e a memória ensina mais do que se pensa. Mas só aprende quem quer, e pode (há quem não tenha estrutura para tanto).

Em Outubro, depois da Convenção do MPD e o PAICV saber com o que contará para os próximos embates políticos, iremos ter, outra vez, a questão da Revisão Constitucional na agenda política. Os interesses do país dobram-se, mais uma vez mais, aos interesses dos partidos. Mas será um vira o disco e toca o mesmo, embaralhar e tornar a dar – muitas vezes mal, como diria o meu mestre Carlos. Mas, por vezes pergunto a mim mesmo: porque rever uma Constituição que não se respeita, nem se introduz normas para obrigar quem a desrespeita a respeitá-la?
------ Publicação originária: Liberal on line
  • Imagem: Esperança, Gustav Klimt

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