2. (DES)IGUALDADE E JUSTIÇA PARA TODOS. JUSTIÇA AMORDAÇADA?
A sociedade é de todos! A Justiça é para todos! A responsabilidade é de todos! Os direitos e os deveres são de todos e para todos! Verdades lapalissianas que – não fosse a perniciosa ideia de «classes sociais» alicerçada na asserção de GEORGE ORWELL (ORWELL, G., Animal Farm and 1984, Harcourt, 2003) de que «todos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros» e não precisaríamos de demonstrá-las e afirmá-las todos os dias; como agora.
A sociedade estruturada e/ou organizada – o chamado Estado – tem o dever de tratar todos de forma igual; de acordo com a natural desigualdade entre os homens. Quando assim não faz, deverá ser censurado – pois não estará a prosseguir o seu fim. Para tanto existem mecanismos adequados a prosseguir e executar essa censura; o voto, em democracia, é a «sentença» ou censura definitiva.
Mas – para não haver mal entendidos – precisemos o que é isso de «igualdade», nomeadamente de (des)igualdade entre os homens. Tem um sentido iuscientífico substancialmente diferente daquilo que entende ou pensa o cidadão comum – ainda que, afinal, seja, substancialmente, a mesma coisa o que dizem ou propugnam.
O homem, enquanto ser bio-psico-social, não é, natural e individualmente considerado, «igual» aos demais – isso é tão tautológico como dizermos que ao dia segue-se a noite, que o céu é azul e a erva é verde... Esse é, a meu ver, o maior erro lógico do Marxismo-Leninismo na senda da «sociedade sem classes» – que promoveria, se fosse alcançada, a mais injusta das sociedades. Até mesmo o «céu» cristão, o «paraíso» ismaelita e as formas mais arcanas de espiritualismo e de reflexão do ser – como o budismo, o jainismo e as ideias de transmigração da alma e de reencarnação – admitem essa «desigualdade» que advêm do mérito pessoal (adquirido social) ou das qualidades inatas (herança genética e/ou espiritual – consoante se veja esta razão em sede da ciência ou do exoterismo).
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Isto é, todas as sociedades que nos precederam entenderam que existe uma «natural desigualdade» entre os homens e que tratar todos de modo «igual» resultaria, afinal, desadequado; ou seja, tratar de forma igual o desigual resultaria em desigualdade de facto – injustiça. Por exemplo, Claude Levy-Strauss – numa leitura antropológica – dizia que devíamos «tratar o brâmane como brâmane e o pária como pária».
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Ora, a continuação desse tratamento formalmente «igual» levaria à uma sociedade desigual – isso é: desigualdade perpetuada através do tratamento igualitário, resulta em desigualdade. Mas existe uma outra forma, mais adequada de ver a igualdade – a chamada «igualdade material» ou substancial; a desigualdade justa.
Encontramos a sua formulação no longínquo Sec. IV – na sequência da revolução epistemológica do «Século de Péricles” –, na pena parturiante de Aristóteles. Ensina-nos o sábio grego que «devemos tratar situações iguais de forma igual e situações desiguais de forma desigual» (ARISTOTLE, The Nicomachean Ethics, Oxford, University Press, Oxford, 1998). Definição de igualdade que, ainda hoje, é aceite a nível universal entre as nações desenvolvidas e de matriz democrática.
A Constituição de Cabo Verde encontra-se nesta senda e diz-nos que (Artº.13º. CRCV - Princípio da igualdade): «Todos os cidadãos têm igual dignidade social e são iguais perante a lei, ninguém podendo ser privilegiado, beneficiado ou prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de raça, sexo, ascendência, língua, origem, religião, condições sociais e económicas ou convicções políticas ou ideológicas.»
O «mandado de optimização» constitucional demanda que o Estado – a todos os níveis da sua acção, nomeadamente no caso da Administração da Justiça – trate de forma igual e não discriminatória todos os cidadãos que se encontram em situações iguais a de outros concidadãos. A ter lugar qualquer tipo de discriminação, a mesma teria de ser uma «discriminação justa» para igualar pessoas e não para desigualar o que é igual. Isto é, admite o ajudar o pobre a ser rico como o rico; mas não ajudar o rico a ficar mais rico e o pobre cada vez mais pobre – a lógica da igualdade formal leva à esta situação de desigualdade social de facto. É o que nos ensina o Professor JOHN RAWLS na sua magistral Teoria da Justiça (RAWLS, J., A Theory of Justice, Harvard University Press, Harvard, Cambridge, MA, 1971, p.109 e segs). É neste sentido que o Concílio Vaticano II afirmou que «[...] embora haja desigualdades naturais entre os homens, a igual dignidade das pessoas exige que se atinja uma condição de vida mais humana e mais equitativa» (Concílio Vaticano II – Constituição Pastoral Gaudium et Spes [1965]).
A este propósito é particularmente importante referir a jurisprudência constante e incisiva do Tribunal Constitucional Português – que é análoga nos demais países europeus, v.g., Tribunal Constitucional de Espanha e da Alemanha – que avoca essa interpretação do princípio ou máxima da Igualdade [Artº.13º. da Constituição da República Portuguesa], em especial a veiculada no acórdão nº.186/90 de 06.06.1990 em que afirma:
«O princípio constitucional da igualdade do cidadão perante a lei é um princípio estruturante do Estado de Direito Democrático e do sistema constitucional global, que vincula directamente os poderes públicos e privados, segundo o critério da sua desigualdade». [...] O princípio da igualdade exige «[...] que aquilo que é igual seja tratado de forma igual [...]» e proíbe a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Em suma, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio».
Esta proibição do arbítrio é a proto-razão dos direitos fundamentais e postula o status negativus (ou «negative sense» of liberty, como diz ISAIAH BERLIN: «Two Concept of Liberty», in Four Essays on Liberty, Oxford University Press, Oxford, 1994, p.121; para uma definição ontológica e política de liberdade vide, por todos, GILLES LEBRETON, Libertés Publiques et Droits de L´Homme, Armand Colin, Paris, 1997, p.17 e segs.) de que fala JELLINEK (ZIPPELIUS, R., Teoria Geral do Estado, Gulbenkian, 2ª. Edição, Lisboa, 1984)
Nas palavras de CALSAMIGLIA (CALSAMIGLIA, A., Prólogo da edição espanhola de «Taking Rights Seriously», de Ronald Dworkin: RONALD DWORKIN, Los Derechos en Serio, Ariel, Barcelona, 1995, p.17.), «La garantia de los derechos individuales es la función más importante del sistema jurídico. El derecho no es más que un dispositivo que tiene como finalidade garantizar los derechos de los individuos frente a las agresiones de la maioria y del gobierno». O que quer dizer que devemos – sim, devemos; pois é de ordem axiológica – pedir e exigir mais a quem é «mais capaz», taxar mais quem tem mais, recompensar o mérito e apoiar as capacidades inatas dos cidadãos, independentemente da sua origem social ou «grupo» a que pertence; mas também quer dizer que, no plano das acções voluntárias, nomeadamente quando se comete um ilícito criminal – se deve tratar todos os cidadãos de forma igual.
O mérito e o demérito, o valor ou o desvalor da acção do cidadão – que em determinadas situações devem ser censurados de forma mais gravosa e noutras, como no caso, por exemplo, dos inimputáveis por anomalia psíquica, desconsiderado; neste último caso estamos perante uma situação que escapa à questão da igualdade formal. O que está em causa, em Direito, são situações em que ou não existirá «consciência da ilicitude» (em razão de uma qualidade que desiguala o cidadão dos demais) e tem um tratamento próprio no momento de determinação não da existência ou não do «crime» mas sim da censurabilidade.
Tirando essa excepção – existem outras excepções, essencialmente de ordem formal que são, na expressão de BERTRAND RUSSELL (RUSSELL, B., A Conquista da Felicidade, Guimarães editores, Lisboa, s/d), previligiae personae e que são próprios da estrutura do Estado de Direito (v.g., o Tribunal competente para julgar os mais altos magistrados da nação) – os cidadãos devem ser tratados de forma igual.
O que, sendo normal para manter os «mesmos satisfeitos» – como diria Bertrand Russell –, pode ter uma dimensão iníqua quando cria desigualdades manifestamente injustas ou que possam levar à iniquidade ou à desigualdades sem suporte racional nesta sede discursiva; será o caso do Artº.198º. da CRCV que, a meu ver, cria uma «desigualdade injusta» que pode, em dadas circunstâncias, levar à impunidade. Nesta perspectiva podemos estar perante uma norma que, sendo formal e instrumentalmente constitucional, é materialmente inconstitucional (sobre normas constitucionais inconstitucionais vide, por todos, OTTO BACHOF, Normas Constitucionais Inconstitucionais? Atlântida, Coimbra, 1977).
É matéria para os Senhores deputados, quando estiverem a pensar na revisão da Constituição, reflectir «cum grano salis» pois esta norma cria disfunções consideráveis no exercício do poder jurisdicional, nomeadamente no exercício da acção penal – na verdade, a meu ver, viola ostensivamente o Princípio estruturante da separação dos poderes – e cria desigualdades infundadas entre os cidadãos e os membros do Governo.
É que os membros do Governo não deixam de ser cidadãos como os demais – os «privilégios» não podem ir ao ponto de se ter o sistema judicial «amarrado» e/ou «refém» do poder político, como acontece com o enunciado constitucional: Artº.198º. da CRCV que tem (deveria) ter uma interpretação sistemática de acordo com a Constituição. Daí ser absolutamente imperioso o Procurador da República se pronunciar sobre esta matéria – na Assembleia Nacional ou não – deve fazê-lo. Mas deixemos esta questão para outras núpcias…
ROBERT ALEXY diz-nos que só «Se llega a una vinculación concreta del legislador sólo si la formula “Hay que tratar igual a lo igual y desigual a lo desigual” no es interpretada como exigencia dirigida a la formula lógica de las normas mas sino como exigencia a su contenido, es decir, no en el sentido de un mandato de igualdad formal sino material». [..] «La igualdad material conduce, pues, necessariamente a la cuestión de la valoración correta y, con ello, a la cuestión de qué es una legislación correcta, razonable o justa» (ALEXY, R., Teoria de los Derechos Fundamentales, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1993, p.252 e seg).
Isto é, a Justiça – aqui no sentido de estrutura do Estado de aplicação do Direito e da Justiça – deve, tem de, tratar todos da mesma forma: ou há lugar a pratica de um ilícito criminal e deve-se ser perseguido por isso ou então não se praticou o mesmo e deve-se ser deixado em paz e tranquilidade. Não é, afinal, o que deseja qualquer cidadão? Ninguém, diz-nos o princípio da igualdade, está acima da Lei – todos, na República, são súbditos das suas normas e dos valores que a enformam. Mas a Constituição, «com o silêncio cúmplice da lua» (VIRGÍLIO, Eneida, II. 255) e demais mortais, parece dizer-nos no seu Artº.198º. que os membros do Governo «são mais iguais» que os demais cidadãos...
Vejamos o que diz a Constituição no seu Artigo 198º (Responsabilidade criminal dos membros do Governo):
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1. Pelos crimes cometidos no exercício das suas funções, os membros do Governo respondem perante o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos seguintes:
a) Tratando-se de crime punível com pena de prisão cujo limite máximo não seja superior a dois anos, cabe à Assembleia Nacional requerer ao Procurador-Geral da República o exercício da acção penal contra o membro do Governo e, indiciado este definitivamente por despacho de pronúncia ou equivalente, decidir se o membro do Governo deve ou não ser suspenso para efeitos de prosseguimento do processo;
b) Tratando-se de crime punível com pena de prisão cujo limite máximo seja superior a dois anos, cabe à Assembleia Nacional requerer ao Procurador-Geral da República o exercício da acção penal contra o membro do Governo e indiciado este por despacho de pronúncia ou equivalente transitado em julgado o Presidente da República suspenderá imediatamente o membro do Governo do exercício das suas funções para efeitos de prosseguimento do processo.
2. Pelos crimes cometidos fora do exercício das suas funções, o membro do Governo responde perante os tribunais comuns, observando-se o disposto nas alíneas a) e b) do número anterior.
A leitura é clara! In claris non fit interpretatio. Assim se consegue começar a perceber, como questionava um destes dias um cidadão cabo-verdiano, porque é que – na sociedade cabo-verdiana – nunca ninguém com responsabilidades políticas ou com peso social é julgado («condenado» na mente do cidadão…) pelos crimes de que se eventam indícios?
Para percebermos esse fenómeno, resulta necessário atentarmos – de forma breve – na estrutura da Justiça penal cabo-verdiana. O sistema de administração da Justiça tem os seguintes elementos estruturantes:
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(a) Os Juízes – ao nível das várias instâncias e individualmente independentes;
(b) O Ministério Público – representado em todas as instâncias, tendo como o Procurador Geral da República como representante máximo da instituição com uma estrutura hierarquizada;
(c) Os Advogados;
(d) As Autoridades judiciárias policiais – que fazem, em regra, a investigação sob tutela do Ministério Público e
(e) Os Funcionários Judiciais. Todos têm papéis específicos no sistema de administração de justiça.
O crime, em regra, começa pela «notícia» do mesmo – seja por auto de notícia, denúncia, queixa, auto de transcrição de facto (v.g., o feito pelo Juiz ou pelo Ministério público quando, no exercício das suas funções se depara com factos que podem, «indiciariamente», consubstanciar crime) ou por facto conhecido, público e/ou notório para além do flagrante delito.
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No caso dos membros do Governo, por via do enunciado no Artº.198º. da CRCV, tem de haver uma iniciativa parlamentar para os mesmos serem sujeitos ao procedimento criminal… Tenho o facto chegado ao conhecimento do Ministério Público ou das autoridades judiciárias, é aberto (deve ser aberto) um Inquérito. Este inquérito segue trâmites próprios: constituição de arguido, interrogatório de arguido, inquirição de testemunhas e produção de outras provas e, a final, se propalará um Despacho de (a) uma acusação ou (b) o arquivamento; nalguns casos particulares o processo pode ser suspenso, mas para acabar por terminar numa ou noutra situação.
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O Artº.198º. da Constituição de 1992 criou um regime «especial» para os políticos membros do Governo – sujeitando a «escrutínio ou autorização prévia» da Assembleia Nacional o exercício da Acção penal contra os mesmos…
O Inquérito é sempre dirigido e coordenado pelo Ministério Público que, enquanto defensor do interesse público e detentor da Acção penal, marca o passo ou o ritmo da investigação. Pode, inclusive, «esquecer» o processo até este prescrever – note-se que falamos em tese – por culpa própria ou do «staff» judicial que assessora o Ministério Público; pode até não ser por «culpa» (dolo [porque assim o deseja] ou negligência) mas por mera contingência administrativa. Note-se, no entanto, que as vítimas e/ou os seus representantes têm posições processuais consideráveis que podem utilizar para evitar situações desta natureza. E não podemos esquecer a Lei de Murphy…
Mas porque é que, além da possibilidade aventada, é que um processo «não anda», parece estar «esquecido» e, não raras vezes, prescreve? Perguntar-me-ão. Além da «especialidade» para os membros do Governo – que gozam de privilégios exorbitantes da racionalidade – há que atentar noutros aspectos.
O Juiz, em regra, tem um papel passivo – somente quando o processo lhe chega às mãos, remetido pelo Ministério Público, é que pode se pronunciar sobre ele, seja para aplicar uma medida de coação seja para se pronunciar sobre uma acusação, aceitando-a para proceder ao julgamento ou não. Serão raros os casos em que um processo prescreve por causa (negligência ou inércia) imputável ao Juiz – ainda que, em regra, os processos prescrevam já nos tribunais e não sede de Inquérito dirigido pelo Ministério Público.
No que concerne ao Ministério Público, as coisas passam-se de modo diferente – tem, ao contrário dos juízes, uma estrutura hierarquizada com Procurador Geral da República (de nomeação política) no topo da hierarquia. Enquanto a magistratura judicial tem a função de exercer o poder do Estado a fim de sancionar e reeducar os cidadãos que violam bens jurídicos protegidos (cometem crimes), a do Ministério Público é de zelar pelos interesses colectivos executando aquilo que é a «política criminal» definida pelo Estado – Assembleia Nacional; o que, nalguns casos – quando existem maiorias que permitam alterar as leis penais –, quer(erá) dizer as políticas do Governo. Será o caso – é assim desde sempre em Cabo Verde – do nosso país em razão das maiorias parlamentares que temos vivido. Note-se que não digo que o Ministério Público age objectivamente assim, mas que, em tese e em termos de sistema e da sua realidade política, a situação é esta.
Isto, o Ministério Público pode – na senda de cumprir com as directivas de execução da «política criminal» do país – privilegiar e/ou dar prioridade a investigação de determinados crimes em detrimento de outros. É uma questão complexa e controversa, discutida em todos os países com a mesma matriz de Justiça penal e que encontra(rá) solução adequada, na minha opinião, numa maior autonomia do Ministério Público em relação ao poder político.
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É matéria para a sociedade civil e os senhores Deputados reflectirem; até porque foi pensada numa matriz penal com vista a determino sistema político que, como já se viu, nunca, até agora, se cumpriu em Cabo Verde em razão da vontade popular nas urnas: tem-se privilegiado maiorias consideráveis, não dando espaço a leis discutidas num parlamento multicolor que obrigue a coligações…
Mas, se calhar – ao ver-se as controvérsias e dificuldades de se encontrar consensos para se alterarem normas de carácter reforçado, como no caso do Código Eleitoral – o povo é que tem razão e dá (tem dado) um pontapé na ciência política…
O Ministério Público, enquanto executor da política criminal do Estado, faz ou fará as suas escolhas legítimas elegendo esta ou aquela linha de investigação, dando prioridade à investigação deste ou daquele tipo de crime. O que entende(rá) sempre que, em razão da escassez de meios ou o uso racional destes, se faça esta ou aquela escolha; por exemplo, dando prioridade à investigação de crimes contra:
(a) as pessoas (homicídios, ofensas corporais graves, tráfico de pessoas, violência doméstica…),
(b) o património (roubos, furtos…),
(c) crimes de perigo (tráfico de estupefacientes, fogo posto, dano contra a natureza [morticínio das tartarugas, v.g.], poluição, propagação de doença [do HIV, por exemplo]…),
(d) autodeterminação ou liberdade sexual (abuso sexual de menores, violação…)
(e) identidade cultural (genocídio, discriminação racial, sexual…),
(f) contra a paz pública (terrorismo, associação criminosa, apologia à prática de crime…),
(g) contra a soberania (espionagem, traição…),
(h) contra a realização do Estado de direito (Incitamento à guerra civil ou à alteração violenta do Estado de direito, Ultraje de símbolos nacionais…)
(i) cometidos no exercício de funções públicas (corrupção, abuso de autoridade…) entre outros, em especial todas as formas de crime organizado, que têm um carácter especialmente danoso na sociedade.
Nomeei estes tipos de crimes – como exemplo de um vasto universo – somente para se ter uma noção da complexidade e extensão de crimes que o Ministério Público tem de atentar e entendermos que, naturalmente, tenha de fazer opções – dentro daquilo que é a «política criminal» definida pelo Estado. Mas tais opções não podem, nem devem, ter como consequência sistemática a prescrição de crimes em processos de outra ordem – que tutelem outros valores ou bens jurídicos protegidos.
Assim é por duas ordens de razões.
(1) A primeira é que cria um espaço penal de impunidade que acaba gerando descontentamento social generalizado ou «alarme social»; revelando o Estado um desinteresse ilegítimo e ilícito na tutela de determinados bens jurídicos.
(2) A segunda razão é de ordem da dignidade dos cidadãos que ao verem um processo contra si prescrito ficam com o anátema ou o odioso de não ver as suas razões serem escrutinadas pela administração da Justiça; que não é, necessariamente, a Justiça – ainda que o deva ser.
Em Cabo verde, o povo – ou parte dele, segundo tem vindo a público nos media há algum tempo –, pensa que os processos contra os políticos ou pessoas com «peso social» estão condenados à prescrição ou a não ter tratamento adequado pelo sistema judicial. Esta situação é, por si mesma, insustentável – ofende, describiliza as magistraturas (sendo certo que a questão se coloca(rá) mais na esfera do Ministério Público e das demais autoridades de policia criminal – mas o povo não distingue uma coisa de outra…) de uma forma intolerável e afrontosa.
O que fazer? - perguntar-me-ão.
Todos podem fazer alguma coisa; uns mais do que outros, é verdade – mas todos podem; alguns até devem alguma coisa para mudar esta situação. Em primeiro lugar, o Procurador Geral da República deve(ria) ser chamado à Assembleia Nacional para explicar as eventuais faltas e/ou omissões do Ministério Público que tanto se propala e que bule como a honra externa da entidade. Com uma grande dose de injustiça no que diz respeito aos ilícitos cometidos por políticos; mas, por isso mesmo, deveria esclarecer os cidadãos!
Se os Deputados da nação não o fizerem (chamar o Procurador Geral da República para explicar estas situações), os cidadãos podem recorrer ao Direito de Petição nos termos do Artº.58º., nº.1 e 2 da Constituição de Cabo Verde e do Artº.2º. da Lei 33/V/97 de 30 de Junho (Lei da Petição) para efeitos do e Artº.19º., nº.1, alínea h) e i) da Lei de Petição. Esta é a parte em que o cidadão pode intervir e dizer «presente» – estou aqui; pois é universal, livre e gratuito (Artº.4º., 5º. e 6º. da Lei da Petição) …
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Claro está que, em razão da dimensão do parlamento cabo-verdiano e da responsabilidade dos Deputados perante matéria tão importante, nunca será preciso recorrer-se a este mecanismo. Seja como for, o povo merece uma explicação ou justificação dessas razões ou sem razões que se propalam publicamente – a Assembleia Nacional é o local indicado para, sem pruridos, se esclarecer estas matérias.
A democracia, funcionando assim, tem uma dimensão bela – e um povo que age assim mostra, também, como é belo, como é atento e merecedor de bons governantes e de bons curadores da coisa pública, nomeadamente da legalidade. Cada um deve saber guardar a sua virgem… é nestes momentos, como disse já neste fórum, que o povo substitui os deputados na iniciativa da discussão pública – migra do centro da cidadania popular para o interior do parlamento – e realiza o ideário democrático. É esse o espírito do Artº.58º., nº.1 e 2 da CRCV.
É um momento diáfano em que os cidadãos têm a «iniciativa parlamentar» mediata e se tornam «iguais» aos Deputados. Mas, mais do que isso, o que faz é escrutinar – em sede de discussão parlamentar dos seus representantes e de audição de quem de dever – a «razão das coisas» sem ninguém a alijar responsabilidades.
A verdade, então, ganha forma.
O país precisa de saber, de uma vez por todas, se tem uma justiça para os pobres e os «remediados» e outra para os políticos, ricos e poderosos. O que, em verdade, deve ser esclarecido pelo Procurador Geral da República e quem os parlamentares entenderem auscultar ou inquirir na Assembleia Nacional – seja em sessão plenária seja em Comissão de Inquérito. Mas, naturalmente, que esta matéria tem dignidade bastante e exige transparência (lembram-se da mulher de César?...) par ser tratada em plenário.
Seja como for, o povo e a transparência democrática agradecem… Mas, atenção: a Justiça não pode ser «sacrificada» quando os Magistrados têm, em regra:
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(a) condições de trabalho sofríveis;
(b) falta de meios adequados ao combate a uma criminalidade cada vez mais organizada e violenta;
(c) remunerações indignas para a função desempenhada;
(d) têm um sistema judicial «coxo» com a falta do Tribunal Constitucional e de
(e) um Supremo Tribunal de Justiça provido de todos os Juízes que a Constituição enuncia;
(f) que o Estado prescinda de Magistrados para outros órgãos do Estado quando são precisos nos Tribunais e
(g) Magistrados que migram ad aeternum para o sector privado ou que
(h) não tenha mecanismos de garantia para o retorno dos formandos no Centro de Estudos Judiciários em Lisboa (com a afronta de ser o poder político a seleccionar os mesmos) em face de uma Lei de imigração portuguesa (nova) que facilita a sua permanência legal em Portugal;
(i) e, em verdade, estar de «mãos amarradas» pela Constituição no que concerne à determinada categoria de cidadãos – os membros do Governo (cfr. Artº.198º. CRCV).
Note-se que a «desigualdade de situação» do governante em relação ao cidadão não é, de todo, sobreposta à (des)igualdade material entre todos os cidadãos – ademais a mesma cria, objectivamente, situações de injustiça ou poderá dar abertura ou lugar à impunidade.
A isso, às limitações estruturais do sistema, o povo não atenta – nem deve (as eleições são o momento adequado para julgar essas faltas e omissões do Governo e da oposição); o que deve é exigir que a Administração (Governo) e a Assembleia Nacional (isto é, os partidos políticos com assento parlamentar) cumpram com a Constituição e os seus princípios fundamentais e dêem às magistraturas todas as condições de trabalho – em termos qualitativos e quantitativos – para que os processos não prescrevam de forma sistemática, como se eventa, e se tenhamos uma justiça mais célere.
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É a consciência cívica ou de Justiça a funcionar; mas deve funcionar bem, de forma esclarecida e objectiva, sem personalizar em qualquer pessoa ou entidade(s) as responsabilidades – para não perderemos o norte das coisas e reclamarmos o céu quando o que podemos ter, na realidade real, é tão somente momentos felizes.
Por mim – e só por mim, entendo, que a norma do Artº.198º. da CRCV deveria ser alterada numa próxima revisão da Constituição de forma a «igualar» os cidadãos e os membros do Governo perante o sistema judicial. Assim, creio, teríamos – neste aspecto particular, certamente – uma Justiça mais justa e igualitária. E isso – ao contrário de outros direitos fundamentais – não está sujeito à reserva do possível, é um mandato injuntivo que cabe cumprir.
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Mas uma pergunta me afronta a alma: porque é que os Senhores Deputados, perante uma norma que tão ostensivamente discrimina os cidadãos em razão de «situação» ou «posição» social nunca pediram a sua fiscalização abstracta sucessiva ao Tribunal Constitucional? O se mesmo se diga do(s) Presidente(s) da República e do Procurador Geral da República – deste e de quem o antecedeu neste quadro constitucional.
João Paulo II diz-nos que «Não é difícil verificar que no mundo actual despertou em grande escala o sentido de justiça...» Em nome de uma pretensa Justiça ou Bem, asserta, se limita a liberdade e impõe-se uma dependência total que contrasta com a essência de Justiça. «Este uso abusivo da ideia de justiça e da sua adulteração na prática demonstram que a acção humana pode afastar-se da justiça, até mesmo quando empreendida em seu nome» (Encíclica «Dives in Misericordia» de João Paulo II [1980]). É que devemos, como nos diz POSSENTI, atentar no Bonum honestum (POSSENTI, V., «La Ripresa del Programma Liberale (Considerazioni su «Una Teoria della Giustizia» di J. Rawls)», in O Direito, Ano 122º., Lisboa, 1990 III-IV [Julho-Dezembro], p.226); isto é, procurar sempre um «bem objectivo» que realize a Justiça justa, não somente para alguns privilegiados ou bafejados pela sorte mas para todos.
Não corramos o risco de ver cumprido – na voz do povo cabo-verdiano, da realidade ou de seja quem for – a «profecia» de Lermontov (Lermontov, «Prophet», 1815)
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«Since that time when the highest court
Had given me the prophet's vision,
In eyes of men I always caught
The images of sin and treason.»
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Creiam-me, nos olhos dos homens, das pessoas, existe isso tudo (Ah, a ingratidão…), mas também há mais e melhor – tente acreditar no «mais» e no «melhor» que podem dar… Afinal, em dignidade e valor como pessoa humana somos todos iguais; noutras, felizmente, a desigualdade natural impera. Por isso a humanidade já viu pessoas como Jesus de Nazaré, Ghandi, Mandela, Damien de Molokai, Madre Teresa, Picasso, Mozart, Bellini, Maria Callas, Enrico Caruso, Alexandre Magno, Aníbal Barca, Napoleão, Cícero, S. Thomas More, Homero, Shakesapeare, Dostoiésvki, Madre Teresa, Gelásio I, Origenes, Tenzin Gyatso, Da Vinci, Swami Prabhupada… Para falar de boas memórias que me ocorrem de momento; é que, muitas vezes – ou quase nunca – não olhamos para dentro de nós…
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Ouço e escuto a voz exortante do meu Mestre: «Ama o teu próximo como a ti mesmo.» Mas esta é a dimensão bela da igualdade. Invoco as palavras do poeta, clamando por um despertar da gente da minha terra amada («The Dream», Lermontov):
«And in a melancholy dream
Her young soul was immersed -- God knows by what.»