Ao assinalar-se os 120 anos do nascimento de Fernando Pessoa o poeta José Luiz Tavares escreveu esta Madrugada no Chiado. Enviou-mo num gesto amigo e esperava a oportunidade de alma para o publicar em acção de partilha. Cá está, com devida e merecida vénia.
Ah, quem não conhece o poeta (sem favor, uma das vozes maiores da nova poesia de lingua portuguesa), deveria descobrir a sua invulgar poesia. «Paraíso Apagado por um Trovão» e «Agreste Matéria Mundo» são mais do que bastante para se dizer que – «como ravina que cresce com o dia» – temos poeta para a memória.
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- MADRUGADA DO CHIADO
(Desconversando com F. Pessoa)
Múltiplo solitário poeta
com o universo inteiro na cabeça,
eis-te agora sentado em extática glória
aqui onde te assopram ao ouvido
os lodosos detritos dos dias
e as líquidas profecias
gizadas ao refluir das luzes.
Triste despessoado fernandinho,
aqui posto em estado de estátua,
a rara chuva destes dias
já não aleita as raízes donde crescem
as visões – roubam-te o desassossego
com o escárnio da madrugada e os tráficos
que a noite desfecha contra o sono,
mas ainda te ouço sonhador ao griso
que descampa este largo (pois sem sonho
não há glória), embora o enxame turístico
empalideça o manso rufar das náufragas estrelas,
as madrugadas de fêveros ecos
quando o universo cisma nas razões que cunham
a solidão e seu luminoso rasto debruando a alba.
Dos desastres da pátria, nem te falo:
tu que navegaste soçobrados sonhos
de império, hoje és segura escada para cátedra;
não te cotaram ainda em bolsa, mas é coisa
para ser pensada, agora que no fundo da arca
nenhum enigma se dissimula, nem o arroto
que prateia algum verso descartável.
Sei que rumoreja mal o altivo rogo por entre
o tinir dos copos nas mesas da esplanada
onde se empoleira a viçosa vacuidade do mundo
e não há porfia que acenda o coração amortalhado,
drenando ainda, como intérmina rebentação,
fulgores de vinho sorvidos com a mansidão de um
touro, mas manda sempre a este que não é teu devoto,
porém, como tu, peregrina sob o essencial desamparo,
à acrílica mansidão com que a treva nos acolhe.
José Luiz Tavares
com o universo inteiro na cabeça,
eis-te agora sentado em extática glória
aqui onde te assopram ao ouvido
os lodosos detritos dos dias
e as líquidas profecias
gizadas ao refluir das luzes.
Triste despessoado fernandinho,
aqui posto em estado de estátua,
a rara chuva destes dias
já não aleita as raízes donde crescem
as visões – roubam-te o desassossego
com o escárnio da madrugada e os tráficos
que a noite desfecha contra o sono,
mas ainda te ouço sonhador ao griso
que descampa este largo (pois sem sonho
não há glória), embora o enxame turístico
empalideça o manso rufar das náufragas estrelas,
as madrugadas de fêveros ecos
quando o universo cisma nas razões que cunham
a solidão e seu luminoso rasto debruando a alba.
Dos desastres da pátria, nem te falo:
tu que navegaste soçobrados sonhos
de império, hoje és segura escada para cátedra;
não te cotaram ainda em bolsa, mas é coisa
para ser pensada, agora que no fundo da arca
nenhum enigma se dissimula, nem o arroto
que prateia algum verso descartável.
Sei que rumoreja mal o altivo rogo por entre
o tinir dos copos nas mesas da esplanada
onde se empoleira a viçosa vacuidade do mundo
e não há porfia que acenda o coração amortalhado,
drenando ainda, como intérmina rebentação,
fulgores de vinho sorvidos com a mansidão de um
touro, mas manda sempre a este que não é teu devoto,
porém, como tu, peregrina sob o essencial desamparo,
à acrílica mansidão com que a treva nos acolhe.
José Luiz Tavares
- Imagem: Fernando Pessoa na baixa lisboeta
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