quarta-feira, 11 de junho de 2008

  • DISCRIMINAÇÃO DE PARTO

Por ponderosas razões profissionais não tenho atentado nalgumas questões que me incomodam em particular. Uma dessas questões é o da jovem Ana Rodrigues que, por «razões de parto» (diz-se) foi suspensa de frequentar a Escola Secundária Januário Leite.

Ficamos, agora, todos indignados. Mas a verdade é que a situação não é inédita, é prática recorrente em Cabo Verde há muito tempo. Agora, o que se deve perguntar é se é possível fazer-se isso – limitar o direito fundamental ao ensino e a apreender por essa razão ou qualquer outro bacoquismo moral?

Possível é, tanto que aconteceu. Agora que não deve ser assim, é uma evidência; que não deve continuar a acontecer, é outra. Note-se que a jovem foi suspensa e intimada (convidada, em eufemismo) a pedir a anulação da matrícula. Este facto, a ser assim – como resulta do texto que me chegou – consistiu um crime de coacção contra a jovem, pois foi forçada à uma acção que, certamente, não deseja e é indesejável.

Gerar uma criança é das coisas mais belas (senão a mais bela de todas) que um ser humano pode realizar e é, para mim, o que aproxima o homem de Deus; daí haver, do meu ponto de vista, uma dimensão de humanidade maior nas mulheres em relação aos homens.

Mas existem casos raros – como o da Directora do Estabelecimento de Ensino que determinou a suspensão da discente e, procurando sustentar o injustificável, a coage a sair da Escola – que se afastam deste paradigma.

O extraordinário é que as Instituições que deveriam proteger a infância, a juventude e os direitos humanos em geral não fazem (não fizeram, que eu tenha conhecimento) nada de prático para evitar este e outros males. Quantas Anas existem e já existiram em Cabo Verde? O que aconteceu com elas, depois de decisões como esta? A estatística não deve servir somente a política e a economia, não...

Estivesse aí em Cabo Verde e patrocinaria pro bono essa jovem, com interposição de uma providência cautelar (processo urgente de defesa de direitos) junto do Tribunal da comarca competente para evitar (de imediato) que saísse da Escola e aconselharia a mesma a intentar uma acção crime contra a Direcção da Escola, por crime de coacção e discriminação em razão de situação de género.

Isso é que era bom: colocar cintos de castidade no útero das mulheres!

O facto de a jovem Ana Rodrigues ser uma «boa aluna» não significa nada para o caso; se fosse uma péssima aluna a situação era a mesma, os direitos seriam os mesmos e a acção contra si realizada um crime em sentido técnico jurídico e um “crime” em sentido social – pela danosidade social de tal acção – e merece censura de todos.

E o que diz a tutela dessa governamental dessa instituição da acção da Direcção da Escola? Cauciona-a ou, pelo contrário, censura a mesma? É que ficar em silêncio sobre isto não é alternativa possível; assim como não agir. O Governo apoia estas formas de agir ou não? O Governo – que é também da jovem Ana Rodrigues – tem directivas emitidas nesse sentido ou tal emerge do voluntarismo da Direcção da Escola Secundária Januário Leite?

Se for este último caso, o que fazer? A resposta é certa: obviamente, demitam-na! É uma questão de responsabilidade perante os cidadãos e de, claramente, de abuso de poder e de restrição de direitos fundamentais por via vedada pela Constituição da República. E, nesse caso, se for uma decisão emergente de directivas da tutela política a decisão é clara para o Primeiro Ministro: demita quem tomou essa decisão que, se tiver conteúdo normativo é inconstitucional e se for de natureza administrativa sofre da invalidade superior da nulidade radical e é juridicamente inexistente.

Esta acção tem (já teve) efeitos práticos e morais na vida da Ana Rodrigues e devem ser tomadas, de imediato, as medidas necessárias. A gravidez não é um crime ou qualquer ilícito ou falha; pelo contrário. Nem podem os regulamentos escolares ou decisões governamentais, em qualquer Estado de Direito, limitar o exercício e o gozo de direitos, liberdade e garantias.

Nestas alturas é que um Provedor de Justiça deixa falta. Nestas alturas é que uma instituição de defesa dos direitos humanos com meios e desgovernamentalizada é necessária, nestas alturas é que a solidariedade é necessária. Nestas alturas é que as pessoas percebem que assobiar para o ar é, sempre, perigoso...

A jovem Ana Rodrigues, vai um conselho expresso e a minha mais profunda solidariedade: vá até a Delegação da Ordem dos Advogados cabo-verdianos mais próxima de si e peça a nomeação urgente de um Advogado e lute pelo seu direito a estar na escola como todas as demais cidadãs de Cabo-Verde. Pode ter a certeza que, se necessitar, não faltará quem patrocine essa sua luta; por isso, não desista, jamais. Até porque tem razão, não de parto, mas direito, de justiça e de racionalidade pelo seu lado.

Abisma-me a alma é ser uma mulher a tomar uma decisão tão hedionda. Parafraseando e metamorfoseando a ideia de Agatha Christie, digo «crime, disse ela». Sim, ao coagir a jovem a deixar a Escola e ao não ver a diferença natural existente entre uma jovem mulher e os homens. Nem entro no âmbito do direito à procriação que, ao que parece, é, indirectamente, censurada nessa acção...

Agora, uma coisa poderá resultar positiva nesta triste situação: se levar a sociedade cabo-verdiana – desde as instituições cívicas às instituições do Estado, nomeadamente a Procuradoria Geral da República (que tem a competência legal e funcional de defender os menores) e a Assembleia nacional (que deve legislar, com respeito pela Constituição, sobre esta matéria e tendo em consideração o século em que estamos) discutir esta matéria e assuntos conexos.

Evoco o poeta Januário Leite (Poemas da Juventude) que, se soubesse – lá pelos lados do Eliseu dos poetas – do que aconteceu em lugar com o seu egrégio nome mandaria de lá retirar o seu nome:

«AOS RESPONSÁVEIS PELO MEU DESTINO PERDOEI

Dependendo dos lances empregados,

é nossa vida exactamente um jogo;

se bem jogados se prospera logo,

se mal, a culpa cabe sempre aos fados!

.

Do meu destino são meus pais culpados,

do maternal afecto o santo fogo,

a minha mãe cegou... por isso rogo

a Deus que lhe perdoe os seus pecados!

.
Do meu pai não direi, porém, o mesmo;

porque em vez de lançar-me assim a esmo,

na senda duma vida sem futuro,

.

Pudera dar-me escola, uma carreira,

não ser, pelo contrário, uma barreira,

e justamente, aqui, eu o censuro!...»

Ninguém deve poder dispor do destino de ninguém; pelo menos assim, de forma arbitrária. Mais do que o direito à indignação, as pessoas têm o dever de agir; a omissão da acção necessária não é opção. E, Ana, atenta no que dizia Francis Bacon: «Quem não luta por si, não luta por ninguém».


  • Imagem: Victory, H.R. Giger