- "RENASCIMENTO AFRICANO" NA EUROPA OU CONSCIÊNCIA POLÍTICA E IDENTITÁRIA?
As coisas, as pessoas e/ou as situações são o que parecem ser ou o que elas são na realidade? É uma pergunta recorrente que me assalta à alma quando penso na situação social, jurídica e existencial dos negros e seus descendentes na Europa.
A questão é, aparentemente, simples. As coisas acabam por se afirmar na manifestação das suas formas – de acordo com a sua natureza (racismo latente ou patente, xenofobia envergonhada, aporofobia ou até mesmo num novo fenómeno que a que chamarei de agorafobia global em face dos fenómenos migratórios que a fome poderá vir a dar uma visibilidade considerável).
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Já no que concerne às pessoas as coisas são mais complexas: são (a) o que parecem ser, (b) o que social establishment diz que são ou (c) o que são na realidade? Seja qual for a resposta, ela acaba por determinar a situação (subjectiva e objectiva) dos africanos na Europa. Este problema é um problema de identidade ou de afirmação de identidade: as pessoas têm o dever de saber o que e quem são e agir de acordo com isso.
Enquanto não os africanos e seus descendentes não entenderem a sua realidade, dificilmente alcançarão aquilo que lhes é socialmente devido – uma inserção e integração social plenas; sem terem de negar as suas raízes culturais. O que demanda uma cidadania interventora ou activa, quer por via da acção cívica e cultural quer política.
É necessário – é uma exigência patente da negritude europeia ou dos afro-europeus ou de quem se sente e é assim – a afirmação de um renascimento da consciência identitária, da condição de pessoas com uma cultura de matriz afro-europeia ou euro-africana. Note-se que falo aqui de um «renascimento africano» ou da consciência dessa necessidade como forma de identificação social e cultural, de assunção do papel efectivo da pessoa (personae, prosopon) na existência ou vida social.
Não falo do «renascimento negro» como o que se verificou nos Estados Unidos – ainda que de algo análogo e numa perspectiva eminentemente mais política – e que perpassou as dimensões culturais, cívicas e políticas e que vai de Paul Laurence Dunbar, Booker T. Washington, Frederick Douglass, Richard Wrigth, Counte Coullen, James Baldwin, Lanston Hughes… até a afirmação de uma dimensão política da mesma com Malcolm X e Martin Luther King Jr e que, depois de um período de phatos social, a negritude vê em Barack Obama a síntese dos seus sonhos e anseios.
Esta realidade constitui a sedimentação secular de ideias e esforços que não se pode confinar à herança do período histórico a que é normalmente referido, nomeadamente com o «Movimento da Renascença do Harlem» dos anos 23 e 30 do século XX. Do outro lado Mundo, de Aimé Césaire a Leopold Shengor, passando por Gotran-Damas e Kwame Nkrumah, percorria-se os caminhos de afirmação de uma identidade social e política da negritude – a palavra ouro, nesse mundo do negro negado como homem, era independência.
O que fazia toda a diferença na compreensão e apreensão da questão da negritude e da sua diferença nos Estados Unidos e nos territórios colonizados – daí que Langston Hughes se tenha sentido como um estrangeiro, um outro no seio dessa luta pela humanidade e pela identidade quando visitou África. A luta era mesma, pela dignidade mas em planos diferentes; ainda que a luta contra a segregação racial da negritude norte-americana deva mais aos pensadores e activistas africanos que o contrário.
Essa luta continua. Tem uma dimensão identitária globalizada e sem o fulgor de um discurso humanista e universal – rasa a realidade como ela se apresenta, não ganha voo; presa que está a esta nova forma de genocídio cultural global imposta pela americanização normalizada e pela maioridade moral ostentada como troféu pela Europa.
Há que ir mais longe, para além da cultura «underground» e de gueto contra guetto importada dos Estados Unidos da América e que se revela como uma subcultura transgénica nos movimentos «rap» ou «hip hop» que alimentam a juventude dos guetos envergonhados (ditos “bairros sociais”) das grandes cidades e que se descobrem – muitas vezes com propriedade – vozes de um mal-estar social, de uma opressão social insustentável a que opõem as suas vozes como bandeiras quase revolucionárias; ainda que sem substrato de pensamento crítico sustentável. Existe uma espécie de divórcio tácito entre o povo oprimido dos guetos e uma minoria pensante – minoria entre a minoria – e que é alimentada pelos poderes instituídos.
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Há que ir mais longe. Falo aqui de uma reivindicação imediata de uma realidade sustentada pelos direitos, liberdades e garantias individuais constantes da Constituição e das leis mas não exercidas pelos cidadãos ou cerceados delas pelas estruturas sociais e políticas existentes.
Há que ir mais longe. Falo aqui de uma reivindicação imediata de uma realidade sustentada pelos direitos, liberdades e garantias individuais constantes da Constituição e das leis mas não exercidas pelos cidadãos ou cerceados delas pelas estruturas sociais e políticas existentes.
São direitos com cadeias, com correntes invisíveis – plantadas nos corações artificiais dos guetos – que aprisionam as pessoas e anestesiam os cidadãos com cantos de sereia e promessas de incumprimento ad aeternum que fazem da «diferença» étnica ou racial uma condição de desigualdade prática que há que erradicar como uma pústula maligna de um doente. É uma realidade histórica que somente a identidade política inclusiva poderá resolver.
Conrad Kent Rivers, escreveu, em 1972, um poema dedicado a Richard Wright – um exemplo acabado do resiliente dos guetos urbanos e enganado pela utopia de uma igualdade que desconhecia – e que pode ser identificado com qualquer jovem afro-lusitano, afro-europeu ou português/francês negro que vive nos guetos europeus:
A RICHARD WRIGHT
«Disseste que o teu povo
Não conheceu nunca o espírito pleno da
Civilização ocidental.
Nascer despercebido
É nascer negro,
E ficar de fora da grande aventura.
Não ter estudos, as partidas da vida,
São coisas menores face à crueldade da opressão.
E o leve e fresco beijo da sensualidade
Permanece nas nossas faces.
O terror calado traz com ele a noite silente,
Levam-nos à loucura. E a religião
Do nosso pai mirra-lhe a vida.
Viver o dia a dia
É como se se não vivesse.»
Mas não tem de ser assim! O dia pode deve ter esperança. Evoco Kwame Nkrumah que (quando saiu da prisão colonialista para se tornar líder do Gana independente), parafraseando Jesus Cristo, disse à uma sociedade oprimida dentro da sociedade colonialista – a dos pobres de condição e socialmente marginalizados em busca da salvação possível: «Procurai primeiro o reino da política e tudo o resto Vos será acrescentado».
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E se o Nazareno dizia: «Procurai o reino os céus e a sua justiça e tudo o resto Vos será acrescentado» (Mateus, III.33), a verdade é que vivemos hoje e temos de pensar o «hoje», aqui e agora, para podermos sustentar um amanhã melhor. Ela não precisa de cantar, basta que tenha voz – uma voz que afirme que a «negritude europeia» é, também e necessariamente ela, Europa.
A intervenção política é o caminho necessário para a compreensão dessa realidade, quer pelo poder político instituído, quer pelos próprios excluídos. E os excluídos são os negros que – em virtude de uma discriminação assumida ou sub-reptícia –, engrossam todos os dias as fileiras dos mais pobres da Europa.
Já se viu, a realidade assim o demonstra, que os partidos políticos não têm na sua «agenda» a protecção efectiva das minorias, nomeadamente da africana em Portugal (a introdução do critério travão do «duplo ius soli» para conseguir a nacionalidade é uma demonstração desse facto), e que o caminho necessário – imposta pela inércia dos governos e dos partidos políticos – é o das comunidades excluídas arranjarem formas de participação social e política alternativas. Rui Marques, ex-ACIME, percebeu isso – a existência desse anseio e a sua necessidade; ou será que não?
Mas como fazer? Os oprimidos por uma sociedade estruturada para a exclusão – como acontece actualmente em Portugal (a realidade é dura, mas é a realidade que se constata, mesmo que se diga que não é assim, blá, blá, blá… e que se apresentem números e dados estatísticos) – não podem ter voz porque não são ouvidos. Se e quando o são, tal é somente pró-forma ou em quase simulacro de audição.
A regra é, por exemplo, só se convidar para audiências parlamentares quem não tem voz dissidente e/ou que já se sabe o que vão dizer (a incipiente democratização das estrutura “representativas” das minorias – cujos lideres tendem a eternizar-se nos lugares directivos – permite e facilita esse “controlo” prévio dos discursos) e que não representam os direitos, interesses ou expectativas legítimas dos cidadãos. Isso para não dizer que, não raras vezes, as estruturas representativas das comunidades africanas, nomeadamente dos imigrantes, são, de forma mediata ou não, tuteladas politicamente; como o caso da Comissão Contra a Discriminação Racial ou o Conselho Consultivo para os Assuntos da Imigração, este último sempre foi amordaçado pelo ACIME e pelos interesses laterais das associações; aquela mediatamente controlada pelo ACIME (hoje ACIDI).
As aparentes acções socialmente benéficas para os afro-europeus e seus descendentes têm sempre uma dimensão obscura escondida; um efeito boomerang previsível – mas que nunca se prevê ou então se silencia quem as prevê – e que se efectiva na prática. Não se trata de fantasmas de “teorias da conspiração”, não – é a inelidível realidade.
Os afro-europeus, os imigrantes de longa duração e muitos dos seus filhos excluídos – em Portugal existe uma geração guetizada de portugueses negros que são negados pela sociedade política (a “Geração pós 1981») – têm de encontrar formas de intervenção cívica e política de qualidade e que obtenham resultados; enquanto o futuro não chega nas vozes dos seus filhos com educação e cultura bastantes para participarem na construção de uma sociedade que, também, sentem ser deles e os reconheça como alguém que não um «outro».
Não vamos continuar a escutar as vozes, como as de Fenton Johnson em 1916, que clamam de alma cansada:
«Estou farto de trabalhar; estou farto de construir uma civilização
Que não é minha.»
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E quem não se farta de viver o e no paradoxo de ser e se sentir «de dentro» mas que é visto e reconhecido como «de fora»? Afinal, o que é um negro nascido na Europa? Um europeu, um africano, um afro-europeu? Seja como for, é uma pessoa – um ente que se quer integrar mas a quem é negado os direitos sociais de cidadania, como a nacionalidade, a identidade e a personalidade política efectivas.
É dizer: tu não és daqui. Não te queremos. E sabem-se os efeitos – o poder instituído e as pessoas que o sustentam têm o dever e a responsabilidade política intelectual de saber – que a rejeição tem nas pessoas.
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Nada nasce do nada, é um facto. Como diz um antigo verbo chinês (que ouvia sempre ao ver a introdução de “Lin Chung – o Justiceiro”, baseado no livro «Water Margin» de Shi Nai Na, e que me recordo sempre): «não desprezes a cobra por não ter asas, porque quem é capaz de dizer se um dia não se tornará num dragão?»
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- Texto represtinado, hoje - Domingo. Lembrava que, a esta hora, o féretro de Aimé Césare desce à terra enquanto a sua alma sobe ao Panteão da humanidade. E eu, eu tenho saudades do Mar.
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