quinta-feira, 17 de abril de 2008

Baby map of the World, Salvador Dali

  • GELÁSIO I. O PAPA AFRICANO E A LUTA CONTRA A POBREZA (1)

Ontem a noite estive a rever no TCM (Turner Classic Movies) um dos meus filmes preferidos: «The Shoes of the Fisherman», com uma notável interpretação de Anthony Quinn (penso que só terá feito melhor em «Zorba, O grego»). A forma como o filme termina impeliu-me à reflexão e não pude deixar de pensar no «Papa dos pobres» ou «Pai dos pobres» – como o Papa Santo Gelásio I ficou conhecido. Terá, certamente, sido fonte inspiradora da obra original de Morris West, um conhecedor profundo das questões da história da Igreja.

A Igreja católica apostólica romana tem na sua génese o pensamento de muitos naturais de África – de Tertuliano a Santo Agostinho de Hipona, passando por S. Cipriano de Cartago e Santo Gelásio I – cuja ideias e interpretações do Evangelho ainda hoje fazem eco na vida das pessoas.

Alguns eram homens eminentemente intelectuais, outros – não descurando a reflexão – eram práticos; é o caso de S. Gelásio I, o terceiro dos Papas que África deu à Igreja Católica; foi Pontifex Maximus de 492 a 496 a.D. Foi precedido, no que concerne à herança africana, pelos Papas S. Victor I e S. Melquíades.

S. Victor I, foi Papa entre 189-1202 a.D e o seu pontificado coincidiu com o Imperium do também africano Septimius Severus. S. Melquíades foi Papa entre 311-314 a.D, tendo participado na “universalização” do cristianismo ao promover, com os bons ofícios de Santa Helena (mãe de Constantino), a sua fé junto dos Imperadores Constantino (Imperador romano do Ocidente) e Licínio (Imperador romano do Oriente) que assinaram o «Édito de Milão» em 313 a.D.

Gelásio I, seguindo Santo Agostinho, o célebre pensador africano, defendia – além da sua luta contra as heresias de então, como o arianismo e o maniqueísmo (de que S. Agostinho foi discípulo durante cerca de 10 anos) – a existência de dois reinos ou duas espadas: o reino secular e o espiritual representado pelo papado; tendo este supremacia sobre o mundo material em caso de conflito.

É um problema que ocupará as esferas do poder durante séculos; aliás, a razão da separação dos poderes das repúblicas dos da Igreja tem esse fundamento primeiro. O último Papa a assumir expressa e abertamente essa «supremacia» do poder espiritual sobre o temporal foi Alexandre VI – da casa dos Borgias; tendo então oposição de Francisco Vitória, frade Dominicano e fundador do Direito Internacional e defensor da fundamento popular do poder; um verdadeiro democrata no coração do império espanhol do Século XVI.

A influência de Gelásio I na vida prática e espiritual de hoje é considerável, nomeadamente no que se entende ser a Bíblia. O «Decretum Gelasium», redigido por si, delimitou o Canon das escrituras sagradas (DG, II.1-4), determinando quais os livros que deveriam ser considerados apócrifos (DG, V) e os que eram as memórias dos Apóstolos e dos Profetas. Entre estas obras estavam as de Tertuliano e Lactâncio, também eles de origem africana.

As escrituras emergentes do «Decretum Gelasium» são 73 livros; sendo certo que para a Igreja protestante somente 66 livros são de ter-se como fazendo parte das escrituras – destes «sete apócrifos» os mais conhecidos sãos os de Tobias, Judite e Macabeus. Outros «apócrifos» terão ficado de fora do Cânon Gelasiano; serão os casos dos «evangelhos» de Maria Madalena e de Judas e não referidos no «Decretum». Por serem desconhecidos na altura? É, naturalmente, o mais provável; mas é evidente que quem vê conspirações terrenas ou divinas em todo o lado e em tudo pense o contrário e construa o que quer construir – bastará lembrar dois exemplos acabados: «The Bible Code» de Michael Drosnin e, mais recente, «O Código Da Vinci» de Dan Brown.

Mas o que distinguia Gelásio I dos demais era o seu amor genuíno e prático para com a humanidade, em particular os mais pobres; de tal modo que viveu como eles e para eles. Tinha, em verdade, a ideia certa do que era/é ser cristão=oligos christos (pequeno Cristo); independentemente da sua posição de Papa.

Como Jesus Cristo – que condoído pelo povo com fome recorreu ao seu despenseiro perguntando-lhe o que tinha para poder alimentar a multidão que o seguia e assim realizar o milagre da multiplicação – Gelásio I recorria aos fundos do Vaticano para alimentar os pobres. Por isso, diz-se, morreu pobre. Eu, pessoalmente, acho que morreu bem-aventurado e não levou menos dessa vida que o mais rico dos homens; mas levou mais, certamente.

Um homem assim nunca morre pobre; poderá morrer sem bens materiais, mas nunca pobre! Na verdade, um homem dessa estirpe nunca morre; pelo menos não merecia morrer na memória ingrata dos homens cuja grandeza descobriu neles – por isso é que é tido como santo=separado para o bem=excepcionalmente virtuoso e digno de veneração.

A pobreza não é somente material – é verdade que «[…] nem só de pão vive o homem […]» –, tem outras dimensões: cultural, espiritual, de humanidade… Mas Gelásio I, sendo um homem culto, viu que o homem também vive de pão e sentia-se responsável por aqueles que não podiam ganhar o seu sustento ou que o não tinham. Esta dimensão de irmandade entre os homens, que postula uma responsabilidade de uns para com os outros, também tem uma dimensão cultural e/ou intelectual.

É uma responsabilidade inerente à condição de homem – é uma responsabilidade de viver: de olhar o «outro» como um «eu» ou um «nós» e não ficar indiferente às suas necessidades materiais, intelectuais e espirituais.

Dizia-me um amigo, em 1984 – quando procurava ir como missionário para a Etiópia –, citando Jesus Cristo, que «Haverá sempre pobres no meio de Vós» (João, XII. 8). Para ele, e para muitos, essa era/é razão bastante para não nos preocuparmos com a pobreza: é uma fatalidade – para outros é, ainda, uma penitência merecida. Mas não! Não é uma fatalidade, nem é uma penitência divina. É mais uma falta de solidariedade, de responsabilidade dos que têm mais para com os que sofrem necessidades.

Nos tempos da teocracia judaica – antes dos povos das tribos de Israel reclamarem junto do Profeta Samuel e pedirem a Deus um Rei e ter-lhes sido dado o Rei Saúl – foi instituído a obrigação de deixar parte da colheita nos campos para servir de alimentação aos pobres. Uma boa prática que a «evolução» das sociedades e a «civilização» acabou… Muitas vezes invocando uma interpretação errada da asserção oriental «[…] não lhe dês peixe, ensina-o a pescar» hoje sob a forma liberal de reduzir-se ou mesmo acabar com a Segurança Social que é uma das conquistas maiores do Estado Social de Direito.

Está na hora de lembrarmos, todos – homens e mulheres de boa ou pouca vontade – aos governantes que pretendem acabar com a Segurança Social o que significa o «Princípio da irreversibilidade dos direitos fundamentais»…

Mas e a «pobreza de espírito» de que Jesus falava ao dizer «Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus.» (Mateus, V.3)? – perguntar-me-ão. Não é, certamente, a falta de conhecimento que Jesus falava pois o conhecimento – assim como o temor de Deus, na perspectiva bíblica – é o princípio da sabedoria ou, como dizia o Profeta Oseias, «O meu povo é destruído porque lhe falta conhecimento […]» (Oseias IV.6).

Os pobres de espírito que Jesus fala são aqueles que pensam que sabem mais do que sabem na verdade e que muitas vezes, equivocamente, são confrontados com a «humildade» socrática: «Eu só sei que nada sei…». Na verdade, Sócrates não era humilde perante o seu semelhante de cultura balofa, mas era-o em face do conhecimento; pois o que dizia, na verdade, era que «Eu só sei que nada sei; os outros não sabem que nada sabem».

Diz a lenda que Sócrates, enquanto os seus carrascos estavam a preparar a cicuta para executar a sua sentença de morte, esforçava-se por aprender uma ária: uma e outra vez tentava executá-la com perfeição. Um soldado, entristecido com a tarefa que tinha de executar, perguntou-lhe:

– Mas o que está a fazer? Porque se esforça tanto para aprender essa ária se daqui a alguns minutos estará morto?...

Sócrates olhou para ele com ar compassivo, sorriu e disse-lhe:

– Para aprender algo antes de morrer…

Os que sabem que nada sabem, os que querem sempre aprender, têm essa responsabilidade de existir e combater todas as formas de pobreza. Claro que terão sempre o dilema da «velha feliz» que tanto apoquentou Voltaire… Mas isso, a meu ver, só foi um espinho na sua carne porque não soube partilhar a sua riqueza.

O que não acontecia com Gelásio I. Conta-se que, preocupado com os peregrinos famintos em Roma – e depois de ter alimentado as suas almas com «o pão da vida» – juntou o que tinha: farinha, ovos e leite e deu-os aos seus cozinheiros para alimentar os famintos. Das cozinhas do Vaticano saíram crepes que alimentaram os peregrinos que, posteriormente, terão levado a receita para a França.

Esta tarde de Domingo compartilhei com alguns amigos um discurso de Martin Luther King, depois pedi à minha mãe para me fazer um crepe que comi com doce de tomate (uma daquelas receitas deliciosas que ela aprendeu com a minha avó no Porto Novo – Santo Antão, Cabo Verde) e pensei em S. Gelásio I. Descobriu que a pobreza deve ser tratada no nosso universo e que não somos nem devemos ser alheios a ela, que todos somos responsáveis por todos; que temos o dever de aguçar o engenho e compartilhar o que temos. Todos podemos dar um passo, e ele não precisa de ser on the fisherman´s shoes

(1) Texto repristinado a propósito da visita do Papa Beneditus XVI aos Estados Unidos.

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