sábado, 14 de novembro de 2009

  • A DEMOCRACIA DA CULTURA: «MEMÓRIAS DE ADRIANO» DE MARGUERITE YOURCENAR

    Recebi uma chamada telefónica, de um amigo escandalizado com o texto que escrevi sobre os clássicos, pois, na sua perspectiva, Youcenar não é uma autora difícil. E lá tive de estar a explicar-lhe o quão difícil é uma obra como Memórias de Adriano. Livro que, reitero, aprecio em particular, por destoar das obras do género: a autora revela um conhecimento de Roma, em particular do Século dos Antoninos, que escapa a estudiosos da história em geral. Memórias de Adriano não é um livro fácil de ser lido, na verdade é um livro muito difícil de ser percebido para quem não é versado nos clássicos e na história romana, nomeadamente do Século II da nossa era. A autora chega a usar o nome de locais hoje desconhecidos para o leitor, v.g., a Bitínia ou a Capadócia, ou de figuras de todo desconhecidas para o público em geral, como Terêncio Escauro, Alcibíades ou coisas que não diz e deixa o leitor descobrir (se perceber isso), como é caso de referir.se aos «lagos de Alba», sem mais, querendo dizer Alba Pompeia.

    Mas não é livro isento de erros e/ou imprecisões. A referência ao Templo de Serápis em Alexandria e às controvérsias cristãs de então, como, a que, diz a obra, existir entre Basilides e Valentim (o que é uma imprecisão, pois eram ambos gnósticos) mas que existia, sim, entre estes e outros cristão da Escola de Alexandria. Mas é verdade um facto: essas controversias eram comuns na cidade egipcia, mas não entre estes dois. Mas o livro tem mais coisas deste género. Por exemplo, Adriano de Yourcenar diz, a dado ponto: «A moral é uma convenção privada; a decência, um as­sunto público; toda permissividade muito visível sempre me pareceu uma exibição de mau gosto. Proibi os banhos mistos, motivo de rixas quase constantes […].» Tal é uma incongruência da obra, pois Adriano se motivou, tão-somente, no plano moral para o fazer e não por causa de dissensões públicas ou privadas. A biografia de Adriano na Historia Augusta – que a autora usa como referência primeira – é clara sobre este aspecto.

    Aparece na obra a referencia à Espanha, o que deverá ser um erro de tradução, pois certamente que teria usado o nome de então Hispânia, pois a referência actual não é Espanha, mas sim Península Ibérica. E alongar-me-ia em exemplos desta natureza, mas isso não retira mérito ao livro, quer pela densidade histórica e narrativa quer pela beleza e desafio cultural que constitui a compreensão das realidades dentro das referências da obra cujos nomes são mais do que nomes, mas referencias da história. É, sim, uma obra extraordinária. Mas não para todos, não para toda gente. É uma obra que demonstra que a cultura não é, afinal e de todo, democrática.

    Para percebermos isso, vejamos este excerto do livro (Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, p.22):
    «Marulino, meu avô, acreditava nos astros1. Esse velho alto, magro e encardido pelos anos dedicava-me o mesmo grau de afeição sem ternura, sem sinais exteriores, quase sem palavras, que votava aos animais da sua propriedade, à sua terra e à sua coleção de pedras caídas do céu. Descen­dia de uma longa sucessão de antepassados estabelecidos na Espanha2 desde a época dos Cipiões3. Era, na linha senato­rial, o terceiro do nome: a nossa família até então fora da ordem equestre. Tomara parte, aliás modesta, nos negócios públicos sob o reinado de Tito4. Esse provinciano 5 desconhe­cia o grego e falava o latim com um sotaque espanhol gutural que me transmitiu, e que foi motivo de riso mais tar­de. Todavia, seu espírito não era de todo inculto. Após sua morte, foi encontrada em sua casa uma arca cheia de ins­trumentos de matemática e de livros nos quais ele não to­cava havia vinte anos. Possuía conhecimentos em parte científicos, em parte camponeses, naquela mistura de pre­conceitos rígidos e de velha sabedoria que caracterizaram Catão, o Velho 6. Mas Catão foi durante toda a vida o ho­mem do Senado romano e da guerra de Cartago,7 o perfeito representante da impiedosa Roma da República8
Imagem: Men and Angels, James Christensen‏
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NOTAS:
[1] Era comum os romanos acreditarem não somente nos deuses, mas também nos astros. Eram, neste plano, também animistas. O que tem, naturalmente, a sua razão de ser na origens rurais do povo romano.
[2] Hispânia, e não Espanha, como referi. Esta é uma realidade histórica e política diferente e fora do cotexto da obra. Isto é, depois dos africanos liderados por Aníbal Barak serem expulsos da Hispânia (hoje Península Ibérica) na sequência da II guerra púnica.
[3] Aquando das guerras púnicas, em que a Hispânia era parte, em parte, uma colónia africana e parte grega; aliás, foi o ataque à colónia de Sagunto que deu origem a II guerra púnica e em que emergem os Cipiões da gens Cornélia.
[4] Tito Vespasiano, que foram dois. O primeiro tornou-se Imperador romano durante o cerco de Jerusalém, deixando para o filho, então general das legiões, a tarefa de tomar a cidade, o que faria em cerca de dois anos depois, em 70 d.C e dando origem a grande diáspora judaica. Para isso, há que rever a genealogia de Aelius Adrianus Antoninus na Historia Augusta, e na Historia Romana de Cássio Dio e assim identificar-se qual dos Titos autora fala.
[5] A língua de cultura dos romanos era, então, o grego e não o latim. Mesmo com todos os esforços iniciados com Octávio Augusto, o grego era ainda visto como a língua de cultura entre os romanos.
[6] Na verdade odiava o grego e as modas gregas, o que o tornou inimigo de Cipião que, por outro lado, amava as novidades gregas. Um, Catão, simbolizava o mundo rural romano e as suas traições e o outro, Cipião, a modernidade e a cultura gregas; diríamos hoje que um era um nacionalista e o outro um moderno defensor da uma cultura global, helenística.
[7] Por causa da sua famosa frase: Delenda est Cartago. Participou na Segunda Guerra púnica (sobreviveu às batalhas de Tesino, Transimeno e Zama, com Cipião Nasica) e foi o seu ódio pelos africanos de Cartago que viria a causar a destruição da potência militar e económica africana de Cartago. Mas Catão, o Velho (ou o Censor), mas não veria Cipião Emiliano, filho adoptivo de Cipião Nasica, o Africano, destruir Cartago em 146.
[8] A Roma da República, para se diferenciar da Roma imperial… essa percepção dessa diferença, do plano político e prático, é deveras interessante de verificar. A expressão «impiedosa», aqui, é de uma assertividade histórica extraordinária. O primeiro Cipião Nasica, o Africano, foi desnecessariamante cruel com Aníbal Barak em Zama, e o seu descendente, Públio Cornélio Cipião Emiliano, o Africanas minor, também o seria no cerco e destruição de Cartago.

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