Como tinha prometido, inicio a publicação das Palavras Cínicas de Albino Forjaz de Sampaio. Hoje é tempo da primeira carta.
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Vi que a vida era má e escrevi estas cartas. Se as leres no meio de um festim, as porás de parte com enfado, mas buscarás a sua consolação quando o mundo te fizer chorar.
Carta I
Carta I
Meu amigo:
Escrevo-te de longe, de muito longe, perdido nos confins deste meu bairro onde só muito fraco chega o rumor da grande cidade. De que hei-de falar? Da Vida? Pois seja. Tu vens para ela, para o imenso brouhaha. A vida é a escola do cinismo. Trazes coração? Esmaga-o ao entrar como uma coisa que nos compromete, que nos avilta. Se acaso és bom, tolice. Não venhas. Aqui para triunfar, é preciso ser mau, muito mau. Sê mau, cínico, hipócrita, e persistente que vencerás. Serás aclamado, respeitado e invejado. Ri do Bem e da Virtude, da Alma e do Sentir. Ri de tudo, que é preciso que rias. Abafa um protesto com um sorriso, uma agonia com uma gargalhada, um estertor com uma praga.
Sê polido, meu amigo. Encobre a raiva sob o riso, e o riso sob o pesar.
Sê mau, sobretudo. Se a alma compromete estrangula-a, se o riso desmascara sufoca-o, se o choro atraiçoa esfibrina-o às gargalhadas.
Não ames nem creias. Todo o homem que ama é homem perdido, e todo aquele que crê nunca será ninguém. Odeia sempre. Odeia os que sobem e os que pretendem subir, odeia os que subiram e os que um dia subirão. Odeia todos e desconfia. Lembra-te que o Ódio dá mais prazeres que o Amor.
A satisfação de ver agonizar um canalha, quer ele seja um mártir, quer ele seja um ladrão, é maior que a de sentir os braços opulentos de uma mulher que se entrega. É menos um. Sê pois forte como o diamante e como o Ódio.
No Amor — gentil comédia — sê pródigo, e sobretudo nunca ames uma só mulher. Se és bom serás ridículo, se és mau serás temido. Sê mau sempre. Este farrapo a que se chama Vida foi, é e há-de ser sempre assim.
Tudo é egoísmo. Se és bom morrerás como Judas, se és mau, meu amigo, serás lembrado como Satã. Vem, mas vem cínico. Triunfarás, terás ouro, amantes, mulheres, o diabo.
Acredita que metade da humanidade nasceu para se rojar pela lama, para que tu, eu, todos os maus, todos os cínicos, a esmagássemos e lhe cingíssemos fraternalmente as carnes com um chicote. Depois da morte há o Nada. Portanto, meu caro, aqueles que o sabem, o que pensam é em sugar a vida com um furor de agiotas sem entranhas. Isto é como no mar; já Shakespeare dizia que “o mugem vive para ser tragado pelo lúcio”.
Ou serás vencido ou vencedor. Se vencido esperam-te todas as humilhações, desde o desprezo até a compaixão. Se vencedor todos os triunfos, desde o respeito ao Capitólio. Luta sempre calado, fino, sabido, que se não tens jeito para isto serás um eunuco eterno, castrado para a Vida, para o Amor e para o sonho.
A raiva também tem o seu gozo, o Ódio também tem o seu amor. E o amor do Ódio é maior porque é mais forte. Não poderás gozar e serás mais desprezado do que uma serapilheira que o uso condenou.
A carne é matéria como a rocha, a rocha é matéria como a flor. Da mulher honesta à prostituta não há diferença, a distância de uma à outra é nula. Não beijam ambas? Uma por prazer, outra por precisão. Pois, meu caro, eu prefiro a prostituta sempre. Acredita que todos se vendem, homens e mulheres, palhaços e imperadores, Cristos e mendigos: a questão é de preço e o preço sufoca todas as consciências, todas as revoltas.
Acredita que falta quem compre toda a gente que se quer vender.
A mulher mais honesta capitula, e aquilo a que tu chamas acaso, chamo eu persistência, e a persistência gasta a vida como a água gasta a rocha. Tu és filho de uma prostituta pois que tua mãe só foi de teu pai e teu pai foi o primeiro a quem ela se entregou, que depois o egoísmo do seu amor fez conservar junto de si...
O seu corpo tinha gozos inusitados que ele demandou primeiro. E se teu pai não fosse dela, seria o primeiro que lhe agradasse, o primeiro que a sua carne lhe impusesse, o primeiro que passasse à sua rua. Assim, tu és filho de um operário como o poderias ser de um assassino. Podia mais a sua carne do que ela, mas o seu egoísmo foi maior do que a sua carne.
“A vida é uma luta brutal” (Tourgueneff).
Tu crês em Deus? Crês sim, que bem o sei. Pois bem; vai dizer-lhe que eu o odeio com toda a força do meu ódio. Tu que te dás com ele, que crês nele, que és amigo dele, vai dizer-lhe que ele é mais vil do que as coisas vis. Vai dizer-lhe que eu o odeio, porque ele deixou morrer aquela criatura aqui do lado, cujos seis filhos abandonados me vieram comer o meu jantar. Vai dizer-lhe o ódio que lhe tenho por ele deixar morrer aquele justo, que por ser bom teve de se matar; diz-lhe finalmente que nada disto se deve fazer quando se é Deus.
Que me odeie agora também porque eu dei o jantar aos pequenos que não o tinham; que me odeie porque a última camisa a dei a um pobre que quase ma roubou; que me odeie porque eu o castigo como no outro dia castiguei um velho que maltratava um cão. Anda, vai dizer-lhe que me odeie, que se avilte ainda mais se é capaz...
A geração é de covardes e “cada ano que passa está mais corrupto o mundo” (M. Gorki).
Ah, não ter eu muito que dar a este pequeno miserável que me bate agora à porta, para que ele me chame o mais vil que o sol cobre, o mais canalha de todos, o mais indigno, o mais bandido! Ele não se engana. Lá tem o seu raciocínio que não falha nunca. Dei-lhe tudo o que tinha e todavia vai a resmungar baixinho que um dia, um dia que virá cedo, me virá bater à porta com uma coronha e me há-de fuzilar a mim, o maior dos patifes que o socorri.
Vai-se embora a pensar que se fosse rico, havia de azorragar toda essa ralé que pede esmola e toda aquela que dá tudo o que tem. E cisma em ser um dia o maior dos Neros que o mundo tem visto; em ter um chicote com que possa de uma só vez azorragar a Terra, ele, cujo corpo deveria ser balançado no candeeiro ali defronte.
“A vida é uma luta brutal” (Tourgueneff).
Tu crês em Deus? Crês sim, que bem o sei. Pois bem; vai dizer-lhe que eu o odeio com toda a força do meu ódio. Tu que te dás com ele, que crês nele, que és amigo dele, vai dizer-lhe que ele é mais vil do que as coisas vis. Vai dizer-lhe que eu o odeio, porque ele deixou morrer aquela criatura aqui do lado, cujos seis filhos abandonados me vieram comer o meu jantar. Vai dizer-lhe o ódio que lhe tenho por ele deixar morrer aquele justo, que por ser bom teve de se matar; diz-lhe finalmente que nada disto se deve fazer quando se é Deus.
Que me odeie agora também porque eu dei o jantar aos pequenos que não o tinham; que me odeie porque a última camisa a dei a um pobre que quase ma roubou; que me odeie porque eu o castigo como no outro dia castiguei um velho que maltratava um cão. Anda, vai dizer-lhe que me odeie, que se avilte ainda mais se é capaz...
A geração é de covardes e “cada ano que passa está mais corrupto o mundo” (M. Gorki).
Ah, não ter eu muito que dar a este pequeno miserável que me bate agora à porta, para que ele me chame o mais vil que o sol cobre, o mais canalha de todos, o mais indigno, o mais bandido! Ele não se engana. Lá tem o seu raciocínio que não falha nunca. Dei-lhe tudo o que tinha e todavia vai a resmungar baixinho que um dia, um dia que virá cedo, me virá bater à porta com uma coronha e me há-de fuzilar a mim, o maior dos patifes que o socorri.
Vai-se embora a pensar que se fosse rico, havia de azorragar toda essa ralé que pede esmola e toda aquela que dá tudo o que tem. E cisma em ser um dia o maior dos Neros que o mundo tem visto; em ter um chicote com que possa de uma só vez azorragar a Terra, ele, cujo corpo deveria ser balançado no candeeiro ali defronte.
De trinta mendigos a quem dei esmola hão-de nascer noventa patifes para me apedrejar. Abençoada esmola! Mas explica-se. É que a minha esmola — esmola humana — fecunda lá dentro todo o meu cinismo e toda a minha canalhice.
Deste-me esmola? Muito bem, odeio-te. Odeio-te porque não posso também dar esmola e porque me curvei a ti. Toda a vida me fizeste bem, socorreste-me, agasalhaste-me. Um dia eu — mau como sou — estou por cima. Então eu havia de perder a ocasião de me vingar de tudo o que tu me fizeste? Chegou o meu dia. Agora, meu velho, eu sou maior, ouves? Eu dobrei-me e tu socorreste-me, mas eu dobrei-me. Eu era um faminto e tu sentaste-me à tua mesa, mas eu dobrei-me. Tive fome tu encheste-me, tive frio tu agasalhaste-me. Irritante Tu, sempre Tu.
E eu não podia vingar-me, mas agora chegou minha vez.
Acredita que todos aqueles a quem fazemos bem nutrem lá dentro a secreta esperança de um dia nos correrem a pontapé. Logo no primeiro dia em que não temam desconjuntar a bota quando o fizerem, percebes? Escutaste? Vem, se te sentes com forças. Demais és pobre. Então para ti a vida é tudo isto e tudo o mais que tu tiveres coragem de inventar. “O pobre será odioso até ao seu parente mais chegado” (Provérbios, XIV, 20), que não "merece carinhos quem não tempera caldo" (Silva Pinto), ouves? Tu virás e triunfarás. Tu serás mau e cínico e traidor. A Vida? "Seria loucura, na verdade, conservarmos alguns sentimentos compassivos quando vivemos em semelhantes cavernas" (M. du Camp).
A Vida é uma canalhice, uma farsa, “uma luta brutal”, como diz Tourgueneff.
Deste-me esmola? Muito bem, odeio-te. Odeio-te porque não posso também dar esmola e porque me curvei a ti. Toda a vida me fizeste bem, socorreste-me, agasalhaste-me. Um dia eu — mau como sou — estou por cima. Então eu havia de perder a ocasião de me vingar de tudo o que tu me fizeste? Chegou o meu dia. Agora, meu velho, eu sou maior, ouves? Eu dobrei-me e tu socorreste-me, mas eu dobrei-me. Eu era um faminto e tu sentaste-me à tua mesa, mas eu dobrei-me. Tive fome tu encheste-me, tive frio tu agasalhaste-me. Irritante Tu, sempre Tu.
E eu não podia vingar-me, mas agora chegou minha vez.
Acredita que todos aqueles a quem fazemos bem nutrem lá dentro a secreta esperança de um dia nos correrem a pontapé. Logo no primeiro dia em que não temam desconjuntar a bota quando o fizerem, percebes? Escutaste? Vem, se te sentes com forças. Demais és pobre. Então para ti a vida é tudo isto e tudo o mais que tu tiveres coragem de inventar. “O pobre será odioso até ao seu parente mais chegado” (Provérbios, XIV, 20), que não "merece carinhos quem não tempera caldo" (Silva Pinto), ouves? Tu virás e triunfarás. Tu serás mau e cínico e traidor. A Vida? "Seria loucura, na verdade, conservarmos alguns sentimentos compassivos quando vivemos em semelhantes cavernas" (M. du Camp).
A Vida é uma canalhice, uma farsa, “uma luta brutal”, como diz Tourgueneff.
In Albino Forjaz de Sampaio, Palavras Cínicas
Imagem: Subvertive beauty, Luis Royo
7 comentários:
Caro Virgílio,
Acerca do seu texto no Liberal, escrevi o seguinte:
Concordo plenamente com o Virgílio.
Ainda bem que ele viu os dois lados, por enquanto o lobo não for totalmente combatido, acho que deve e vai haver anónimos. Eu só porque dei uma simples opinião, exigiram publicamente a minha fotografia, BI, Passaporte etc e fui acusado de roubar fotografia dos outros mas como os brasileiros costumam dizer "tô nem aí".
"Sócrates é meu amigo, mas sou mais amigo da verdade" disse Aristóteles, eu diria " Virgílio é amigo da verdade, sou mais amigo da minha vida". Eu gosto da nossa "democracia" e "liberdade" pois, pois..., enquanto isso, o tempo vai dar-me a razão. Volto a dizer, concordo plenamente com o senhor Virgílio, não devia mas continuo a achar que deve enquanto estamos a caminhar.
Desde já prometo falar melhor sobre isto no http://mrvadaz.blogspot.com/ e como já tinha dito hei-de dar o meu numero de BI e todos os meus dados que eles ou vocês quiseram mas "um lugar para cada coisa e cada coisa no seu lugar".
P.S. Não falsifiquei e nem falsificarei fotografias de pessoas porque sei que é crime.
Escrevi este comentário aqui porque não encontrei o texto do Liberal
Meu Caro,
penso perceber o seu pensamento que, naturalmente, coloca questões que me escapam de todo. Será, certamente, uma questão de registo comunicacional.
Sobre o artigo: O problema (nesse plano do mesmo) não é haver anónimos, pois algumas pessoas poderão ter de o ser por dever de ofício. O problema é o porquê...
Não percebi foi esta parte do seu texto:
«Eu gosto da nossa "democracia" e "liberdade" pois, pois..., enquanto isso, o tempo vai dar-me a razão. Volto a dizer, concordo plenamente com o senhor Virgílio, não devia mas continuo a achar que deve enquanto estamos a caminhar.»
Se puder aclara-lo ficar-lhe-ia grato. :-)
Abraço fraterno
PS: Ah, para a próxima não se esqueça de, com o comentário, fazer o upload do B.I., Passaporte, NIF, Cartão de vacinas internacional actualizada e mais outra coisa que não me lembro mas que pedirei se não gostar do comentário. Fica avisado.
Francamente não percebo porquê que dá tanta importância à questão do anonimato.Não é "porquê" como escreve. O que deve perceber é que a esmagadora maioria não tem isso em muita importância. Eu no que me diz respeito é só para chatear pois fico fulo quando me obrigam a fazer tal; faço logo o contrário. E se não assino é porque honestamente isto não é importante. Enfim nunca li que os anonimos reivindicam titulo de cultos...
Caro Virgílio,
Acerca da frase coloquei a palavra democracia e liberdade entre aspas para ilustrar justamente a mentalidade de certos caboverdeanos que não toleram críticas. Concordei e continuo a concordar consigo sobre os anonimatos mas o problema é que muitos caboverdeanos ainda não perceberam o significado da Democracia e Liberdade.
Sobre o tempo, é que ainda vai arrastar muito para chegarmos lá, isto é, para a nossa sociedade libertar totalmente da mentalidade deixado pelo colonialismo e o regime do partido único. É nesta perspectiva que escrevi aquela frase.
Por último, acerca do meu BI, NIF, Cartão de Utente etc, não vou deixar aqui porque senão vou receber "choque na codjon" ou ir para a " frigideira" porque os milicianos estão de olhos XD!
Parabéns pelo tema, que tal aprofundares mais sobre o anonimato na nossa sociedade? Já houve debate na rádio sobre o tema, alguns intervenientes são a favor da censura.
Meus cumprimentos
Anónimo das 16/Nov/2009 18:03:00,
Não sei o que é a «esmagadora maioria» pensa ou não... se sabe, diga-me como é que sabe.
Não sabe a razão porque dou importância ao anonimato? Olhe, saberia que falava com o Patréculo, o Urbano, o Milo ou a Júnia e não com um sem nome, uma persona inominada... entende? Se não percebe o resto, estamos conversados.
Se todo o modo, parece que não anda por aí (anónimos, e pseudónimos! ó 16/Nov/2009 18:03:00...). Pois é!
MrVadaz, percebi. Obrigado.
Está bem, fica dispensado da apresentação dos documentos e de possiveis torturas.
Agora (pode parecer-lhe estranho, mas não é) esta questão fez-me pensar numa coisa que não tinha pensado antes, e se apoiava (numa dada redacção) a proposta do Projecto de Revisão da Constituição do PAICV no ponto em que se propugna a possibilidade de haver buscas nocturnas autorizadas por um Juíz... mudei de ideias.
Porquê? Parece que não estamos preparados para tanto, ainda. Na próxima geração, talvez.
Abraço fraterno
A esmagadora maioria quer dizer isso mesmo; se nao quer entender que faça o que quiser dos seus escritos; repito que esta questao é menor para mim e estou-me nas tinas se sao conhecidos anonimos que pululam na net criola; afinal sempre o percebo; tem um profunda convicçao de que esses anonimos sao politicos e intelectuais bem colocados na praça; nada mais falso; o que sei de mim mesmo é que nunca vou agradar a este ou aquele que quer que eu dê o meu nome lugar de nascimento e mais nao sei o quê; é irrelevante na net, que foi precisamente criado para o anonimato; tudo é imaterial nada existe e tudo existe na net; é isto que nao percebe. Enfim quando é que vai deixar de pensar que é Deus, para perdoar a este ou a aquele? Quem lhe garante que lhe estao a pedir perdao? Vejo que é um fundamentalista religioso com a culpa do perdao. Estamos no seculo 21 e ninguém precisa de perdao de um mortal como qualquer um.
Anónimo 17/Nov/2009 12:28:00,
Eu não percebo nada, Você é que percebe tudo. E para pessoas que percebem tudo mas que não percebem de nada é que, não raras vezes, escrevo. A razão (já lhe disse isso, aqui mesmo e em outra ocasião) está aí. Percebo que não se preocupe com os anónimos, mas venha falar deles…
Para mim não existem coisas e questões menores, pois sou como Terêncio.
Faz-me rir, sabe? A razão, essa é comigo. Vejo que não sabe o que é «fundamentalista», o que significa ser-se fundamentalista… e não percebe niente de um discurso, não consegue interpretar um escrito. É pena, para si. Tem razão numa coisa: fique anónimo, pois assim ninguém saberá que o que sabe é papel ao vento da hora nona.
Até mais…
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