- AS MINHAS TRÊS MORTES, A FEBRE DE DENGUE, O ESTADO DE EMERGÊNCIA SANITÁRIA E A POLÍTICA MEDROSA
Em menino, vivendo em Cabo Verde, fui vítima de meningite… e de todas as doenças más que se pode imaginar! Se aparecia uma epidemia qualquer, lá estava eu com ela, sempre. As doenças amavam-me, como se eu fosse Casanova e não um menino, e elas damas desconsoladas de amor. Cheguei a ser presumido morto certo, por três vezes. Deixa-me contar-te, telegraficamente.
A primeira vez foi com a meningite e outra desgraça de que não me recordo, mas que não quero saber agora para não fazer a minha mãe recordar esse tempo trágico para muitas mães que perderam os filhos. Nessa altura, na segunda metade dos anos sessentas, quando um surto de meningite atacou a terra e chegou a S. Vicente, contrai a doença e cheguei, inclusive, a ser declarado incurável e a ter o caixão e a mortalha prontas: só se esperava que eu morresse para me darem banho, colocar-me no caixão e me levaram para 1888, para fazer companhia a Nha Marquinha & k’iis ôte gent mort. Mas sobrevivi! A custo, mas sobrevivi.
A segunda vez… Um dia, o médico (no d’txá sê nome p’ra lá…) disse à minha mãe que eu tinha diabo em cima de diabo — a erisipela óssea e outra doença que nunca quis saber o nome — e que o melhor era levar-me para casa, para eu morrer em casa «porque precisava do espaço no Hospital para salvar quem podia». Coisa horrenda de se dizer à uma mãe, mas disse, o ilustríssimo Doutor, jurado segundo Hipócrates. Que podia ela fazer? Levou-me para casa, e as minhas tias e pessoas amigas prepararam, mais uma vez, a minha mortalha azul e branco de menino e o meu caixão. Mas a minha mãe não desistiu, e foi melhor médico que o doutor. Sobrevivi, dá para notar, não? As mães são assim: por vezes fazem milagres, e não há altar que chegue para elas, não…
Muitas epidemias, além das famigeradas fomes, sofremos, nós, os cabo-verdianos, no tempo colonial… A a memória, a memória é pouca e pequena, demasiado pequena. Por alguma razão Almada Negreiros dizia que Portugal era «o país mais atrasado da Europa», o país mais selvagem de todas as Áfricas», de uma África que chamava «reclusa dos europeus, o entulho das desvantagens e dos sobejos». A fome e as epidemias eram coisas correntes e recorrentes, a normalidade, antes da independência.
Agora, voltam as epidemias. Em poucos dias, 4 (quatro) mortos. Não se pode pensar somente em prevenção (que é fundamental, mas é uma prevenção paliativa, depois de consumada a epidemia), ou fazer como o médico que me mandou para casa para morrer… para resolver o meu problema, não. Há que atacar o problema na sua origem, neste momento: nos focos da doença e não passar a responsabilidade para a população, os funcionários públicos e os trabalhadores, com se se dissesse: vai trabalhar, ó povo! cura-te, ó doente! Evita a doença, ó cidadão! Vamos ver se, na Sexta-feira, verei os membros do Governo nas ruas a limpar o que deve ser limpo… é que não basta dizer para se fazer, é preciso fazer-se o que se diz. Membro do Governo, não é mau Padre, é pessoa de bem. Não diz para fazer, faz! Por isso governa e não é governado.
Venha (i) a protecção civil e (ii) o exército para as ruas, (iii) mobiliza-se os cidadãos e faça-se a limpeza geral das ilhas, no perímetro urbano e no interior, onde poderão estar focos de gestação dos mosquitos. Mais: que sejam tomadas medidas claras e precisas: que se puna quem lança lixo nas ruas — como se faz nos países limpos e onde não acontecem essas doenças (Singapura e Suíça são bons exemplos) —, com penas de multa e de trabalho comunitário e público de limpar as ruas. Esta parte é da competência da Assembleia Nacional (há coisa mais importantes a tratar, ó Senhores deputados! Como a vida, como a vida!) que tem de fazer a sua parte, também.
O Governo faz o que pode, certamente que pensa que sim, e creio na boa vontade. Mas há alturas em que isso não chega! O paliativo da prevenção e a mera medida de tolerância de ponto para se poder agir contra tal epidemia não me parece, neste momento, adequado. É altura de se tomar medidas de emergência, de se mobilizar todos os meios possíveis e passíveis de serem mobilizados para se combater esta epidemia. Não se pode esperar por mais mortos, por mais dor entre as famílias cabo-verdianas, para se agir!
Os meios internos não chegam? Que o Governo proponha ao Presidente da República a declaração do Estado de Emergência sanitária, a fim de se permitir, por exemplo, que sejam aterrados zonas de águas estagnadas pelas chuvas, obras ou outras razões em terrenos privados com proprietários descuidados com a higiene e a segurança públicas ou que estejam ausentes, se proceda a injunções necessárias contra aqueles que colocam em perigo a saúde publica e dos cidadãos individualmente considerados e, ainda, se possa recorrer à ajudas externa de países com competência na matéria. A cooperação internacional não é, não pode ser uma mera palavra — tem de ser efectiva. Recorra-se a ela, se necessário, e parece-me que se tornou mais do que necessário fazer isso.
Os eventuais órfãos, viúvas e viúvos, pais, irmãos e irmãs de eventuais vítimas mortais que possam vir a acorrer (Deus queira que não!), nunca perceberão que o Governo não percebeu que se está perante uma situação que se torna, a cada dia que passa, mais grave e mortal… e se estende a todas as ilhas. É preferível pecar-se por excesso do que por defeito, em particular em situações excepcionais como esta.
Esta questão não é política? É política, sim!, pois gerir a polis é a própria natureza da acção política — e uma sociedade que esteja perante uma epidemia é aquela que mais precisa de acção política dos seus governantes A verve destes vê-se nestas alturas de crise, pois para «deixar andar, e logo se vê no que dá» qualquer um serve; para isso não são precisos eleitos da nação. Deixemos de ter medo de falar, e de medo de ser penalizado por falar de um facto político que é a gestão da saúde e da segurança públicas, que é por causa delas, em particular da segurança pública, da polis, da cidade, da sociedade, que a política existe. Sim, o problema emergente desta epidemia da febre de Dengue é um problema político — como todas as questões públicas.
E é político porque, entre outras coisas, o Governo dá prioridade à uma governação electrónica num país sem luz, em vez de ser uma governação de formação ética e cívica num país onde os animais mortos e o lixo doméstico são lançados na rua (é, o tratamento do lixo é necessário, urgente, imperativo). Podemos ter um mundo novo, sim; mas sem doenças velhas e mortais. O orgulho, o orgulho é o braço direito da morte; e só pede ajuda a que tem e pode mais quem precisa; e nós precisamos de ajuda, pois o nosso Estado é de Emergência de facto.
Do que está à espera, para cumprir com a Constituição, com o Vosso dever de políticos, ó Governo da minha terra? Políticos medrosos e pusilânimes, não! O que assusta o povo, é não se fazer nada, não ver um plano claro para todos saberem de forma clara e que chegue a todos. Sexta-feira contra o negro indesejado, i.e., contra a febre de Dengue, o pico solitário do mosquito? Soa estranho, até porque somos ilhéus, em ilhas estamos, mas Robinson Crusoé (esse que, depois da primeira viagem, ao que parece, parou em terras nossas a caminho do Brasil) não nos chamamos, não.
Ah!, a terceira vez em que o caixão cruzou-se no meu caminho? Isso, isso é outra história. Talvez vos conte, um dia. A nossa terra tem tudo, mas tudo para ser feliz.
Imagem: Be happy, Alexey Lobur
1 comentário:
Só li os dois primeiros parágrafos porque agora tenho outros afazares. Mas sobre os médicos olhe que eu nunca os idolatrei; não passam de bruxos escolarizados; a unica diferença que há entre eles e os nossos bruxos de Sintédéz é que foram para a escola. Mas em relação a si deixe-me rir: é que essa sua meningite se calhar deixou resquícios e metásteses sem falar nos diabos que tem no corpo. Começo a percebê-lo...
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