OS LIMITES MATERIAIS DA REVISÃO DA CONSTITUIÇÃO COMO VALOR
Volta, como era previsível: depois dos partidos políticos terem decidido a sua liderança, a discussão sobre a Revisão Constitucional. E volta no local próprio, na Assembleia Nacional. É conveniente relembrar aos partidos políticos (que se aventuram no projecto de rever a Constituição em matérias como Direitos, Liberdades e Garantias fundamentais dos cidadãos) que uma coisa é o que se deseja e outra o que se tem ou se pode ter.
Ao contrário do que ouvi Gualberto do Rosário dizer meses atrás (em Conferência sobre a Parceria Especial de Cabo Verde com a União Europeia, proferida na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), de que «o Direito se sujeita ao poder e à vontade política», o político e todo o social são sujeitos do Direito e são conformados por este: existe um Rule of Law e não um primado da política sobre o Direito – é por esta razão que se fala em Estado de Direito em oposição ao Estado autoritário; num existem limites ao arbítrio do poder político, no outro não... são os políticos que decidem o que é o bem social. As normas, como diria Karl Lowenstein, são da ordem da semântica jurídica para os Estados fundamentados no pensamento autoritário que, fundado no pragmatismo da vontade política, não se sujeita ao Rule of Law.
Assim, há que atentar nos Projectos de Revisão do PAICV no plano de um Estado enformado pelo Rule of Law, pelo império do Direito e não pela vontade política – esta tem limites, não vale tudo o que quer. The sky is not the limite — o limite da vontade política, quer do Governo quer da Assembleia Nacional, é a Constituição da República. É o Direito que condiciona a vontade política, não o contrário. É o caso, por exemplo, do projecto de revisão da Constituição do PAICV em matérias como, v.g., a extradição e a adesão ao TPI que brigam com os limites materiais de revisão da Constituição.
Que fique claro: a Constituição não admite o que os partidos políticos querem. E os partidos devem respeitar a Constituição da República; e se não o fizerem não respeitam o Império da Lei, o fundamento da Democracia. E a lei não diz o queremos que ela diga, mas sim o que diz e quer dizer. E assim é porque o poder legislativo tem um correlativo, inerente às suas atribuições, que é o dever de non facere em dadas matérias, como é o caso dos limites materiais de revisão da Constituição.
Sobre esta matéria, aconselho a leitura, por todos, de Teoria do Ordenamento Jurídico, de Norberto Bobbio, em particular o capítulo II.4-5 em que o filósofo, depois de aceitar a teoria da pirâmide normativa de Hans Kelsen e de afirmar o que é consabido, que: «as normas de um ordenamento não estão todas no mesmo plano» (sobre esta matéria, a Teoria de los Derechos Fundamentales de Robert Alexy é de ordem capital), atenta, ainda que de forma breve mas muito elucidativa, nos limites materiais e formais do poder legislativo. Limites constitucionais, emergentes da norma fundamental — a grundnorm kelsiana, e que se destinam a limitar o poder político e evitar o arbítrio. É, em essência, a razão do pensamento de Montesquieu no Espirito das Leis e que é a base doutrinária da ideia de limitação do poder, mais do que de separação de poderes — uma coisa é de natureza substancial e outra formal.
É matéria que deveria ser uma evidência lapidar; mas, pelos vistos, não é. Mas o que é isso de norma fundamental limitadora — limite material da revisão da Constituição? Usando a terminologia de divisão dos conceitos práticos de Von Wrigth: conceitos deontológicos, axiológicos e antropológicos, a questão fica clara. As ideias de base ou fundamentos dos projectos de revisão constitucional são evidentes, pois fundam-se (a) numa base axiológica — uma dada ideia de bem que grassa na comunidade internacional (que é, mesmo assim, variável); e (b) antropológica — isto é, de interesse e vontade legislativa em agir. Mas uma dimensão prática e necessária escapou aos textos (talvez porque são exíguos na sua motivação): a deôntica.
Sim, acontece que o que está em causa são normas de direitos fundamentais de natureza deontológicas — de mandado de non facere que funcionam como limites à acção do legislador, quer este coloque as coisas no plano axiológico ou antropológico. É, de todo, um problema de valores; dos que tratam Scheler, Hartman, Von Wrigth, Rawls… são os fundamentos da democracia que estão em causa: os direitos fundamentais da pessoa humana que fundamenta o Estado de Direito cabo-verdiano, e onde resta a base da soberania nacional — no povo e nos seus direitos basilares. Por isso é que os Estados, porque se assumem soberanos, não prescindem do directo de não extraditar os seus cidadãos; o que não quer dizer que deva ser santuário de e para criminosos. De todo que não!
Assim, será tão difícil de perceber que o limite material relativo (relativo porque se admite o alargamento da esfera de protecção da norma ius fundamental) de revisão da Constituição não permite a alteração da Constituição para extraditar cabo-verdianos ou entregá-los ao Tribunal Penal Internacional (TPI) no quadro de uma adesão ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional? Espanta-me, pois, os projectos do PAICV e do Deputado Humberto Cardoso, até porque existem soluções que não violam a Constituição. Alterar-se a Constituição para agradar a comunidade internacional (alguma) não me parece nem boa política nem bom princípio. O pragmatismo tem limites, e os princípios estão na primeira linhas destes limites.
Pode(rá) haver uma tentativa de cindir, no plano conceptual, as ideias de “extradição” e de “entrega”, para se dizer que este conceito (a entrega) não consubstancia uma violação da proibição constitucional de extraditar cidadãos nacionais, pois não se extraditaria, tão somente se entregaria o cidadão para que fosse julgado ou cumprisse pena no exterior. Ora, mau grado os méritos que tal discussão pode(rá) ter, também resulta uma falácia, pois, na verdade, a entrega é um dos momentos processuais da extradição — esta consuma-se com a entrega do cidadão extraditando ao Estado requerente. Cindir este momento processual num outro conceito pode ter as virtualidades que tiver, mas não deve — é um deontos — é brigar com a proibição constitucional que, na verdade, seria defraudada com tal conceito.
Os limites materiais da revisão da Constituição são, mutatis mutandis, uma espécie de guarda pretoriana do ordenamento jurídico na sua dimensão ius fundamental. No que a uma norma em concreto diz respeito, como diz bem Gilmar Mendes, “importará sindicar o objecto e a esfera de protecção da norma” mas também, parece-me, contra o quê, contra que tipo de agressão se outorga essa norma. Sendo que «quanto mais amplo é/for o âmbito de protecção de um direito fundamental, tanto mais se afigura possível qualificar qualquer acto do Estado como restrição» (Gilmar Mendes, «Direitos Individuais e Suas Limitações: Breves Reflexões», in Gilmar Mendes Ferreira/Inocêncio Mártires Coelho/Paulo Gustavo Bonet Branco, Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais, Brasília, p.210 e segs). E a norma do Artº.285º. nº.2 da CRCV é uma dessas normas com uma esfera de protecção alargada ou reforçada, não sendo de admitir a sua limitação ou restrição.
Atentar contra eles é atentar contra toda a ordem jurídica, contra a própria ideia de Direito como fundamento do Estado Democrático pós liberal. É que os direitos fundamentais constituem uma ordem de valores que a Constituição, neste plano, concretiza com o mandato de non facere — não poderem ser revistas — o que é dizer que não se pode nem se deve restringir o direito a não ser extraditado (de forma directa e/ou indirecta) em quaisquer circunstâncias.
Assim, a tentativa de condicionar os direitos fundamentais do ponto de vista da oportunidade política ou de dada ideia de bem (cujo conteúdo é variável em razão dos critérios utilizados para aferir o que é ou não é o bem – como ensina Robert Alexy — ou se considerarmos a diferença substancial que existe entre o ter valor [v.g., a ideia de evitar a impunidade] e ser um valor [v.g., o direito e a garantia de não ser extraditado] constitucional) constitui um retrocesso tremendo na compreensão dos direitos fundamentais — é o retornar ao mero status activus liberal. E há mais, muito mais entre o céu e a terra... já dizia Hamlet que não sabia o que é isso do Rule of Law.
Post scriptum: Ah, sobre o Conselho Superior da Magistratura, e se os M.I. Deputados chegassem ao consenso de deixar a Presidência do Conselho Superior da Magistratura como está, com a Presidência por inerência do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, e com estes a serem eleitos pelos seus pares e com membros eleitos pelos magistrados judiciais e cidadãos eleitos pela Assembleia Nacional? É que, convenhamos, a Magistratura também deve ser sujeita ao escrutínio democrático, o que não quer dizer, em si mesmo, interferência do poder político. Mas, já pensaram os M.I. Deputados que a(s) Magistratura(s) são, em última análise, por natureza, também um poder político, no sentido de gestor, administrador da Justiça? Nada pode ou deve estar para além do controlo democrático, em particular os juízes.
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Imagem: Guarda pretoriana
2 comentários:
Mas afinal não escrevia sobre a França que a magistratura francesa é indepdente do poder político? E agora vem terminar o seu artigo dizendo que a magistratura (mesmo que no sentido de gestao) é também um poder politico. Onde entra então Montesquieu e a limitaçao do poder, mais do que a separaçao dos poderes legislativo, executivo e judicial? Enfim sabe perfeitamente que ha montes de discursos juridicos que podem produzir 'n' argumentos contrarios aos que expendeu aqui e nao estariam contra o estado de direito e a primazia da lei!
E não é independente? Basta ler as notícias...
Sobre a política, passou ao lado...
Pode haver o que houver, posso saber o que sei, mas quero ouvir o que tem a dizer...
Faz-me lembrar a velha máxima: «A doutrina divide-se...»
Fique bem, e, já agora, identificar-se não lhe faria mal nenhum: não mordo.
:-)
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