terça-feira, 29 de abril de 2008

Femme se Coiffant, Foujita Tsouguharu

  • EN UN DULCE ESTUPOR
En un dulce estupor
En un dulce estupor soñando estaba
Con las bellezas de la tierra mía:
Fuera, el invierno lívido gemía,
Y en mi cuarto sin luz el sol brillaba.
La sombra sobre mí centelleaba
Como un diamante negro, y yo sentía
Que la frente soberbia me crecía,
Y que un águila al cielo me encumbraba.
Iba hinchando este gozo el alma oscura,
Cuando me vi de súbito estrechado
Contra el seno fatal de una hermosura:
Y al sentirme en sus brazos apretado,
Me pareció rodar desde una altura
Y rodar por la tierra despeñado.

José Martí, Versos de Amor

segunda-feira, 28 de abril de 2008

  • CAPITAL DE NOVA TERRA-LONGE

De terra esquecida e ostracizada, passaste à capital da nação – 500 anos, quinhentos longos anos de desaguadouro de dores e de sonhos, mas nem por isso és uma cidade amada e cuidada; falta-te descobrir a esquadria da utopia.

Tens nome de cidade, mas não te tratam o corpo como tal; serás, de Polis, um filho menor da miragem de cidade-Estado? Pergunta aos Sólons das tuas esquinas limpas; sim, pergunta, ó Praia dos esteios.

És capital, mas não investem em ti o que tens da tua natureza; o sonho passeia pelas tuas ruas e perde-se como uma morna em Andrómeda sem porto de volta – mas os teus filhos são pródigos.

Teu nome é resgatada borda do Mar, lugar de descanso do mais longínquo pleito da terra, e esperas o silêncio das mãos canibais. Dá-me; sim, dá-me ao longe os teus dias passados de gozo e mudos de mal; sim, dá-me o teu capital paz de ontem. “Ó Praia de todas as esperas, deixa-me nadar no teu mar urbano sem medo, sem a escuridão que despertam os gongons de faca” – gritam teus filhos próximos.

És a imagem imperfeita da nação, por isso não te consigo ver na noite escura; teu brilho perde-se nos jardins de mãos em recato de acção dos pais da pátria que só te despertam para o dia do julgamento e da festa. Não te vêm, não escutam o teu pulsar de coração da terra a germinar gigantes sobre o mundo; um dia acordarás e não caberás em ti.

E navega no teu nervo essa esperança, mas não vês. O que vês pelas tuas ruas, ó Praia dormida, é o lixo da inconsciência, os animais famintos, gente perseguida por gente-gentio e caçadores engravatados de espada cega e mão grande das raias do continente. A tua esperança, Praia, teima em não mudar de destino.

Ah, não escutes, Praia dos estais, quem te diz que és e te faz d´Jôna, não. Mesmo na noite escura, mesmo nas tardes secas, mesmo com as pernas abertas, és, de todo, bela. És, sim és, a ponta maior da finisterra, capital da terra-longe dos filhos paridos longe de ti. Ah, és esteira de sonho lactente - escutei de voz sibilina nos teus cumes.

  • Imagem: Floresta, Japão

domingo, 27 de abril de 2008

  • NÃO CONVENCIDO

Dizia, em exórdio de prazer:
“Atravessei negro o túnel da vida
e sei,
sim sei
que o silêncio dos meus actos
são mil nós
dos corvos que me rodeiam.”

  • Imagem: Box full of Surprises, Luis Royo

Artistic Conception of Spirit, Ma Dongmin

sábado, 26 de abril de 2008

Artistic Conception of Spirit, Ma Dongmin

  • Y TE BUSQUÉ
Y te busqué por pueblos,
Y te busqué en las nubes,
Y para hallar tu alma,
Muchos lirios abrí, lirios azules.
Y los tristes llorando me dijeron:
– ¡Oh, qué dolor tan vivo!
¡Que tu alma ha mucho tiempo que vivía
En un lirio amarillo! –
Mas dime – ¿cómo ha sido?
¿Yo mi alma en mi pecho no tenía?
Ayer te he conocido,
Y el alma que aquí tengo no es la mía.
José Martí, in Versos de Amor

  • MY DREAM OF YOU

Hoje, escutava a minha alma
em penitência:
“O meu sonho de ti
é pomba imolada no altar,
é cordeiro em incensário,
é canto de louvor feito sacrifício,
é amor gerado de dor,
é ramo de palma emoldurando-me a alma,
é navio sem porto,
é desejo sem paragem,
é sentimento sem forma nem imagem,
é encanto sem forma de desencanto,
é vago temor de te amar,
é vontade de te tocar profundamente…
é nódoa que não mancha,
é negritude perdida em cristalino,
é opacidade de redenção denunciada,
é emancipação da redenção,
é cópula silenciada de silêncios,
é bem e é mal,
é divino e é profano,
é absoluto e é miragem,
é Alfa plenilúnio de Agosto em Mindelo,
é meu Ómega que se reduz
às formas tremendas da tua alma
à descobrir em corpo de sins.”

sexta-feira, 25 de abril de 2008

  • a ti, MPF

RACISMO. A IGNORÂNCIA DO PRETO

Uma das grandes questões das sociedades modernas é, sem dúvida, o racismo patente ou latente. É, claramente, não um problema de culturas mas de falta de cultura; no limite, no caso de Carl Schmith, de excesso de cultura.

Quem, sendo africano ou não caucasiano, já não foi vítima de racismo? Eu, já. O “preto”, o “negro” – dito com ânimo acintoso – ou o eufemístico “homem de cor” são expressões que têm provocado equívocos monumentais, violência gratuita e discriminações injustas ou desnecessárias.

Não raras vezes é tida como inexistente – como a própria ONU reconhece. «As leis e as medidas nacionais para assegurar a sua eliminação são, em muitios países, inadequadas e ineficazes. Em consequência disso os grupos vulneráveis continuam a sofrer agressões enquanto os abusadores gozam de impunidade» – disse a Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Louise Arbour, durante uma reunião preparatória da Conferência de Durban sobre direitos dumanos de 2009 e que ocorreu no dia 22.04.2008 em Genebra,.

Ao que tudo indica, muitos Estados continuam a não reconhecer a existência de racismo e xenofobia nos seus territórios. As razões para a existência do racismo são multiplas, assim como as da negação da sua realidade; como veremos.

A ideia do “preto” jaze no plano da ignorância, na falta de conhecimentos básicos quer da física quer das ciências sociais, além de um défice de humanismo. A primeira ideia que assoma(rá) à mente de uma pessoa esclarecida – que tenha um conhecimento mínimo de física ou de história da ciência – é de que só um profundo défice cultural é que levará uma pessoa a chamar outra de “preta”.

É que, basta(ria) uma leitura – ainda que de fontes secundárias – do pensamento científico de Newton, Leonardo da Vinci, Keppler e Einstein, assim como da produção científica contemporânea para se saber que cor é luz e energia. É uma questão de percepção da luz e da energia pelo olho humano.

A “cor” preta não é, em si, uma cor, mas sim a sua ausência – isto é, não existe cor naquilo a que se denomina “preto”, como melhor se verá. O mesmo acontece ao falarmos do branco, pois este – tido como a pedra de toque do fenómeno estético – não é uma “cor” mas sim o produto composto de várias cores primárias. Isto é, não existe “menos cor” que o branco – este é um composto; seria, numa perspectiva da linguagem socio-racial corrente, um “mulato”. De tal assim é que se for decomposta o que se verá é o que denominamos de “arco-iris”.

A problemática da cor entronca-se num facto naturalístico: olho humano – em particular a retina –, é um órgão com uma capacidade limitada de recepção quer da luz quer da energia externas que lhe dão a percepção de “cor” e a retransmite ao cérebro humano.

Essa capacidade do olho humano está limitada a percepcionar a emissão da luz compreendida entre os 400 e 700 milimicrons (unidade de medida da extensão da frequência: microns (u) e milimicrons (mu) ou nanometros (nm). Um micron (u) equivale a um milésimo de milímetro, isto é: (u = 1/1OOOmm) e um milimicron ou nanometro equivale a um milhonéssimo de milímetro [mm], ou seja: (mu = 1/000000mm) e que determina a percepção da cor. Consoante a frequência ou a extensão do espectro eletromagnético, assim será a “cor”. Assim, existem dois extremos de percepção da luz e que nos diz o que é a cor. Num extremo está o vermelho (718,5 milimicrons) e no outro a violeta (variando entre os 393,4 a 486,1 milimicrons).

Por estes valores se pode verificar que, além da extraordinária pequenez da unidade de medida, a violeta é a “cor” de frequência ou intensidade mais baixa dentro do espectro de percepção do olho humano – a dita visão (ide barra de frequência). O preto não se encontra nesta escala, pois é ausência de “cor”.

Mas porque se conclui que o preto é ausência de cor? Tal resulta de um raciocínio dedutivo, de uma inferência da razão: sendo a cor violeta aquela que mais se aproxima do “preto”, e sendo ela a de menor frequência ou comprimento de onda, a conclusão necessária é de que “o preto não existe” enquanto cor, é espaço neutral, uma ausência de cor que absorve todas as demais.

Mas se é assim – numa perspectiva compreensiva do social na sua dimensão étnica e racial (como é comum fazer-se) –, se sou “preto”, não sou percebido pelo meu semelhante. Se não sou percebido, não existo (para usar o juízo de Berkeley). Assim, quando me chamam “preto”, negam-me a existência – seria e é a conclusão natural.

É a negação do humano pelo humano; a negação da dimensão de pessoa (personae, prosopon= o papel desempenhado no mundo) ao ser que negamos a existência. É negação da personalidade – sujeito social de direitos e obrigações – ao “preto”; é, na verdade, remetê-lo à condição de objecto, de” não pessoa”, de “não ser”.

Nesta perspectiva, chamar alguém de “preto” é, sem dúvida um profundo opróbrio e não pode nem deve(rá) ser tolerado. Mas isso tem subjacente uma premissa: quem me chama “preto” sabe(rá) do que estou aqui a ditirambar, sabe o que diz? Tenho, neste aspecto uma dúvida metódica que necessita de uma probatio diaboli para ser ilidida.

Sabe(rá), quem me chama preto, que “preto” não existe para ela, que não é capaz, nem chega para saber o que é e o que não é “preto”? Se chegar, saberá, então, que o preto é o ventrículo central da percepção – a amante da luz e para onde tudo converge e que chamar-me preto é, das duas uma: ou tentar negar a minha existência ou um juízo falho de cultura.

O que sei, sim, é que existo. Estou aqui e ninguém chega ou é capaz de negar-me essa condição – pode até tentar; mas o que sou, sou. “Preto”? Não me importo de ser cognominado de “aquele que absorve a luz”, não; agora, qualquer tentativa de me negar a existência esbarra, naturalmente, num “daqui d´El Rei”.

A ignorância e a falta de cultura são, certamente, os maiores males de que a natureza humana sofre, pois são as principais alimentadoras do mal radical. A individualidade do outro é, necessariamente – seguindo o imperativo categórico kantiano –, o limite.

Agora, subvertendo este ditirambo, sempre diria que um homem esclarecido e que tentasse negar-me – com o “preto” – poderia fazê-lo para si mesmo: basta(ria) usar o juízo de Leibnitz: esse est percipi (ser [existir] é ser percebido). Aí sim, poderia negar-me para si – remetendo-me para o limbo da sua percepção –, mas tal implica(ria), necessariamente, subverter, de todo, o pensamento do bispo Leibnitz. Nada mudaria para mim, o que poderia mudar era a sua felicidade; sendo certo que, digo com os antigos, nenhum crime pode ser justificado pela razão (Tito Lívio, XXVIII.28).

Viver na e da falácia discursiva ou de alma é, também, um direito; assim como o direito à asneira ou a ser inculto e ser-se feliz com isso. Há muitas “velhas” por aí – diria hoje, repristinadamente assombrado, Voltaire e muitas dores, na perspectiva de Salomão.

É, para pessoas assim só nos resta ter a mesma atitude que Jean Valjean teve para com o “mal” encarnado no Inspector Javert (vide, Os Miseráveis, Victor Hugo): praticar o bem, não usar a lei de Talião, quer nas acções quer nas palavras. Tem custos, não raras vezes demasiados (como a de Jean Valjean para com um injusto defensor da “justiça” – Marius), mas que no aproxima do do mais humano que existe em nós.

E quando não se consegue negar o outro, nega-se a existência daquilo que o nega; isto é, os Estados e/ou os racistas, os xenófobos e os aporofóbicos negam a existência do racismo, da xenofobia e da aparofobia como realidade (como irá, infelizmente, acontecer com muitos Estados na Conferência de Durban de 2009).

E escrevo isto a pensar nos chamados “mandjakus” – vítimas de xenofobia na minha terra e de exemplos de promoção do racismo impune vindas do próprio parlamento nacional: um deputado a chamar o outro de preto... Facto que tem um sabor particularmente amargo por acontecer num país africano e dito por um representante de uma nação de gente que sofre o estigma do “preto”.
  • Imagem: Spectrum; barra de extensão do espectro eletromagnético da cor.

Mindelo, Nuno Pombo Costa

  • O SILÊNCIO
Deixa-me embalar o meu silêncio
– pois tem sono, cansado da tua ausência.
Apuleio cantou-nos, sabes?
Eu era porta, tu a espera.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Metropolis, Salvador Dali

The ghost of Vermeer of Delft, which can be used as a table - Salvador Dali


  • ALL THE WORLS´S A STAGE
All the world's a stage,
And all the men and women merely players;
They have their exits and their entrances,
And one man in his time plays many parts,
His acts being seven ages. At first, the infant,
Mewling and puking in the nurse's arms.
Then the whining schoolboy, with his satchel
And shining morning face, creeping like snail
Unwillingly to school. And then the lover,
Sighing like furnace, with a woeful ballad
Made to his mistress' eyebrow. Then a soldier,
Full of strange oaths and bearded like the pard,
Jealous in honor, sudden and quick in quarrel,
Seeking the bubble reputation
Even in the cannon's mouth. And then the justice,
In fair round belly with good capon lined,
With eyes severe and beard of formal cut,
Full of wise saws and modern instances;
And so he plays his part. The sixth age shifts
Into the lean and slippered pantaloon,
With spectacles on nose and pouch on side;
His youthful hose, well saved, a world too wide
For his shrunk shank, and his big manly voice,
Turning again toward childish treble, pipes
And whistles in his sound. Last scene of all,
That ends this strange eventful history,
Is second childishness and mere oblivion,
Sans teeth, sans eyes, sans taste, sans everything.
William Shakespeare

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Hipnos and Tanatos (Sleep and his half-brother Death) -Waterhouse, John William (1874)

  • TARDE. VÉSPERA DE NASCER

[...]

Ontem foi assinalado o dia “Dia Internacional do Livro e dos Direitos de Autor” e o meu momento de reflexão foi dedicado a terminar a leitura de «My Name is Red” de Orhan Pamuk (definhava, injustamente, na fila de espera). Um livro poético, belo e digno de ser lido.

Ficaram-me na memória uma voz amante: “And already everything has lost its primal mystery” (p.186). E repetiu-se, sempre: “You can tell them you were spreading salve onto my wounds […]” (p.493).

Verbo final: “For the sake of a delightful and convincing story, there isn´t a lie Orhan wouldn´t deign to tell” (p. 503). Pelo Amor, também – penso. É que as histórias e as mulheres gozam da mesma natureza, não é?

Lembro. Quando fiz os exames de acesso à Universidade de Lisboa (a primeira e famigerada PGA) lembro-me de ter de comentar uma frase de António Sérgio que dizia – salvo imprecisão de memória – que “um ivro que não é lido, não existe”. Passados estes anos todos, tenho a mesma opinião de então; e esperava, agora que penso nisso, ter mudado de opinião.

Ler este livro de Pamuk fez-me reviver esse exame e o prazer de então: dizer que há livros que, mesmo não lidos, existem. É que, de certeza – digo hoje –, deve haver uma ponte do Arco Iris em letras onde as belas histórias esperam entre o paraíso e a alma do leitor.

«My Name is Red” deixou essa ponte e está, agora, a navegar pela minha alma. Principalmente hoje; hoje que resolvi ter uma tarde para mim: para não fazer nada que tenha de fazer. Desejo: escutar Heimdall com Freya na ponta da pena, sim; e cair nos braços do Mar de Abril, tu a dizer: “You are spreading salve onto my wounds”.

Sleep, Francisco de Goya
.
  • DROGA, CHEGA!

Quando é que os políticos cabo-verdianos irão entender que tráfico de droga e política são coisas que não andam nem podem andar de mãos dadas e que essa possibilidade nem é (não deveria ser) cogitável de todo?

As eleições ganham-se com ideias e projectos, não com com supeitas que lancem o opróbrio social sobre os concorrentes (não, não são adversários) aos lugares de representação do povo.

Já é tempo do Procurador Geral da República (PGR) chamar quem lança as suspeitas para esclarecer o que tem a esclarecer – se razão tiver, que mostre as provas; agora, de período em período leitoral, falar-se de ligações ao tráfico de políticos é coisa insustentável: para os visados e para a nação cabo-verdiana.

É tempo de dizer chega! Quem tem provas, que os mostre; ou então, que se cale para sempre. Quero saber – eu e todos os cidadãos cabo-verdianos desejamos, certamente, saber – onde estão os inquéritos criminais sobre estas matérias.«Não desprezes a cobra por não ter asas, porque quem é capaz de dizer se um dia não se tornará num dragão?» - diz o sábio
anexim chinês. De atentar, pois estamos perante suspeitas gravosas e que atentam contra valores fundamentais do Estado de Direito. E a República não “pode dormir na forma”...

Doa a quem doer, há que saber o que se passa. Merecemos respeito dos políticos e dos vigias da legalidade – mentir ao povo ou não fazer nada para lhe revelar a verdade é anestisiar a Democracia. Droga, basta!

Espero que os mimos e conflitos que se verificam em torno das questões laterais – como uma clara jurisdicilização da política (perigo para que tenho avisado há muito tempo) – não seja motivo para que os candidatos não venham a público, nomeadamente na Televisão e Rádio nacionais, discurtir os seus projectos. A ver vamos. Há que ter atenção: o povo não é um rebanho de ovelhas, não.

Odalisque, Jules Joseph Lefebvre

Ignoti nulla cupido.
Göethe

NATURE DES SACHE

Escutava,
a modos de negro Werther,
um menino que conheci em Mindelo:
«No dia em que Shidhartha se iluminou,
teve mil orgasmos
e esgotou-se de sonhos.
Eu, caminho à sombra da lua,
na epiderme do desejo,
na roça cunnus de mel
e nos silêncios ofegantes:
– quero sonhar,
tatear alma solar,
rasgar de mãos o horizonte
e depois, depois
continuar a existir depois de mim…»

terça-feira, 22 de abril de 2008

  • Está a escutar a Rádio Terra-Longe. Se desejar ouvir a Rádio Terra-Longe clássica (clássica/jazz), clique no link à sua « esquerda. Se o fizer, não se esqueça de desligar o som da Radio Terra Longe.

Echo and Narcissus - Waterhouse, John Williams (1903)

  • Há uma grande diferença entre não querer e não saber praticar o bem.

The Burning Giraffe, Salvador Dali (1937)

  • YET I DO MARVEL
I doubt not God is good, well-meaning, kind
And did He stoop to quibble could tell why
The little buried mole continues blind,
Why flesh that mirrors Him must some day die,
Make plain the reason tortured Tantalus
Is baited by the fickle fruit, declare
If merely brute caprice dooms Sisyphus
To struggle up a never-ending stair.
Inscrutable His ways are, and immune
To catechism by a mind too strewn
With petty cares to slightly understand
What awful brain compels His awful hand.
Yet do I marvel at this curious thing:
To make a poet black, and bid him sing!

Countée Cullen

The favourites of the Emperor Honorius - Waterhouse, John Williams (1883)

segunda-feira, 21 de abril de 2008

  • "RENASCIMENTO AFRICANO" NA EUROPA OU CONSCIÊNCIA POLÍTICA E IDENTITÁRIA?
As coisas, as pessoas e/ou as situações são o que parecem ser ou o que elas são na realidade? É uma pergunta recorrente que me assalta à alma quando penso na situação social, jurídica e existencial dos negros e seus descendentes na Europa.

A questão é, aparentemente, simples. As coisas acabam por se afirmar na manifestação das suas formas – de acordo com a sua natureza (racismo latente ou patente, xenofobia envergonhada, aporofobia ou até mesmo num novo fenómeno que a que chamarei de agorafobia global em face dos fenómenos migratórios que a fome poderá vir a dar uma visibilidade considerável).
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Já no que concerne às pessoas as coisas são mais complexas: são (a) o que parecem ser, (b) o que social establishment diz que são ou (c) o que são na realidade? Seja qual for a resposta, ela acaba por determinar a situação (subjectiva e objectiva) dos africanos na Europa. Este problema é um problema de identidade ou de afirmação de identidade: as pessoas têm o dever de saber o que e quem são e agir de acordo com isso.

Enquanto não os africanos e seus descendentes não entenderem a sua realidade, dificilmente alcançarão aquilo que lhes é socialmente devido – uma inserção e integração social plenas; sem terem de negar as suas raízes culturais. O que demanda uma cidadania interventora ou activa, quer por via da acção cívica e cultural quer política.

É necessário – é uma exigência patente da negritude europeia ou dos afro-europeus ou de quem se sente e é assim – a afirmação de um renascimento da consciência identitária, da condição de pessoas com uma cultura de matriz afro-europeia ou euro-africana. Note-se que falo aqui de um «renascimento africano» ou da consciência dessa necessidade como forma de identificação social e cultural, de assunção do papel efectivo da pessoa (personae, prosopon) na existência ou vida social.

Não falo do «renascimento negro» como o que se verificou nos Estados Unidos – ainda que de algo análogo e numa perspectiva eminentemente mais política – e que perpassou as dimensões culturais, cívicas e políticas e que vai de Paul Laurence Dunbar, Booker T. Washington, Frederick Douglass, Richard Wrigth, Counte Coullen, James Baldwin, Lanston Hughes… até a afirmação de uma dimensão política da mesma com Malcolm X e Martin Luther King Jr e que, depois de um período de phatos social, a negritude vê em Barack Obama a síntese dos seus sonhos e anseios.

Esta realidade constitui a sedimentação secular de ideias e esforços que não se pode confinar à herança do período histórico a que é normalmente referido, nomeadamente com o «Movimento da Renascença do Harlem» dos anos 23 e 30 do século XX. Do outro lado Mundo, de Aimé Césaire a Leopold Shengor, passando por Gotran-Damas e Kwame Nkrumah, percorria-se os caminhos de afirmação de uma identidade social e política da negritude – a palavra ouro, nesse mundo do negro negado como homem, era independência.

O que fazia toda a diferença na compreensão e apreensão da questão da negritude e da sua diferença nos Estados Unidos e nos territórios colonizados – daí que Langston Hughes se tenha sentido como um estrangeiro, um outro no seio dessa luta pela humanidade e pela identidade quando visitou África. A luta era mesma, pela dignidade mas em planos diferentes; ainda que a luta contra a segregação racial da negritude norte-americana deva mais aos pensadores e activistas africanos que o contrário.

Essa luta continua. Tem uma dimensão identitária globalizada e sem o fulgor de um discurso humanista e universal – rasa a realidade como ela se apresenta, não ganha voo; presa que está a esta nova forma de genocídio cultural global imposta pela americanização normalizada e pela maioridade moral ostentada como troféu pela Europa.

Há que ir mais longe, para além da cultura «underground» e de gueto contra guetto importada dos Estados Unidos da América e que se revela como uma subcultura transgénica nos movimentos «rap» ou «hip hop» que alimentam a juventude dos guetos envergonhados (ditos “bairros sociais”) das grandes cidades e que se descobrem – muitas vezes com propriedade – vozes de um mal-estar social, de uma opressão social insustentável a que opõem as suas vozes como bandeiras quase revolucionárias; ainda que sem substrato de pensamento crítico sustentável. Existe uma espécie de divórcio tácito entre o povo oprimido dos guetos e uma minoria pensante – minoria entre a minoria – e que é alimentada pelos poderes instituídos.
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Há que ir mais longe. Falo aqui de uma reivindicação imediata de uma realidade sustentada pelos direitos, liberdades e garantias individuais constantes da Constituição e das leis mas não exercidas pelos cidadãos ou cerceados delas pelas estruturas sociais e políticas existentes.

São direitos com cadeias, com correntes invisíveis – plantadas nos corações artificiais dos guetos – que aprisionam as pessoas e anestesiam os cidadãos com cantos de sereia e promessas de incumprimento ad aeternum que fazem da «diferença» étnica ou racial uma condição de desigualdade prática que há que erradicar como uma pústula maligna de um doente. É uma realidade histórica que somente a identidade política inclusiva poderá resolver.

Conrad Kent Rivers, escreveu, em 1972, um poema dedicado a Richard Wright – um exemplo acabado do resiliente dos guetos urbanos e enganado pela utopia de uma igualdade que desconhecia – e que pode ser identificado com qualquer jovem afro-lusitano, afro-europeu ou português/francês negro que vive nos guetos europeus:

A RICHARD WRIGHT

«Disseste que o teu povo
Não conheceu nunca o espírito pleno da
Civilização ocidental.
Nascer despercebido
É nascer negro,
E ficar de fora da grande aventura.
Não ter estudos, as partidas da vida,
São coisas menores face à crueldade da opressão.
E o leve e fresco beijo da sensualidade
Permanece nas nossas faces.

O terror calado traz com ele a noite silente,
Levam-nos à loucura. E a religião
Do nosso pai mirra-lhe a vida.

Viver o dia a dia
É como se se não vivesse.»

Mas não tem de ser assim! O dia pode deve ter esperança. Evoco Kwame Nkrumah que (quando saiu da prisão colonialista para se tornar líder do Gana independente), parafraseando Jesus Cristo, disse à uma sociedade oprimida dentro da sociedade colonialista – a dos pobres de condição e socialmente marginalizados em busca da salvação possível: «Procurai primeiro o reino da política e tudo o resto Vos será acrescentado».
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E se o Nazareno dizia: «Procurai o reino os céus e a sua justiça e tudo o resto Vos será acrescentado» (Mateus, III.33), a verdade é que vivemos hoje e temos de pensar o «hoje», aqui e agora, para podermos sustentar um amanhã melhor. Ela não precisa de cantar, basta que tenha voz – uma voz que afirme que a «negritude europeia» é, também e necessariamente ela, Europa.

A intervenção política é o caminho necessário para a compreensão dessa realidade, quer pelo poder político instituído, quer pelos próprios excluídos. E os excluídos são os negros que – em virtude de uma discriminação assumida ou sub-reptícia –, engrossam todos os dias as fileiras dos mais pobres da Europa.

Já se viu, a realidade assim o demonstra, que os partidos políticos não têm na sua «agenda» a protecção efectiva das minorias, nomeadamente da africana em Portugal (a introdução do critério travão do «duplo ius soli» para conseguir a nacionalidade é uma demonstração desse facto), e que o caminho necessário – imposta pela inércia dos governos e dos partidos políticos – é o das comunidades excluídas arranjarem formas de participação social e política alternativas. Rui Marques, ex-ACIME, percebeu isso – a existência desse anseio e a sua necessidade; ou será que não?

Mas como fazer? Os oprimidos por uma sociedade estruturada para a exclusão – como acontece actualmente em Portugal (a realidade é dura, mas é a realidade que se constata, mesmo que se diga que não é assim, blá, blá, blá… e que se apresentem números e dados estatísticos) – não podem ter voz porque não são ouvidos. Se e quando o são, tal é somente pró-forma ou em quase simulacro de audição.

A regra é, por exemplo, só se convidar para audiências parlamentares quem não tem voz dissidente e/ou que já se sabe o que vão dizer (a incipiente democratização das estrutura “representativas” das minorias – cujos lideres tendem a eternizar-se nos lugares directivos – permite e facilita esse “controlo” prévio dos discursos) e que não representam os direitos, interesses ou expectativas legítimas dos cidadãos. Isso para não dizer que, não raras vezes, as estruturas representativas das comunidades africanas, nomeadamente dos imigrantes, são, de forma mediata ou não, tuteladas politicamente; como o caso da Comissão Contra a Discriminação Racial ou o Conselho Consultivo para os Assuntos da Imigração, este último sempre foi amordaçado pelo ACIME e pelos interesses laterais das associações; aquela mediatamente controlada pelo ACIME (hoje ACIDI).

As aparentes acções socialmente benéficas para os afro-europeus e seus descendentes têm sempre uma dimensão obscura escondida; um efeito boomerang previsível – mas que nunca se prevê ou então se silencia quem as prevê – e que se efectiva na prática. Não se trata de fantasmas de “teorias da conspiração”, não – é a inelidível realidade.

Os afro-europeus, os imigrantes de longa duração e muitos dos seus filhos excluídos – em Portugal existe uma geração guetizada de portugueses negros que são negados pela sociedade política (a “Geração pós 1981») – têm de encontrar formas de intervenção cívica e política de qualidade e que obtenham resultados; enquanto o futuro não chega nas vozes dos seus filhos com educação e cultura bastantes para participarem na construção de uma sociedade que, também, sentem ser deles e os reconheça como alguém que não um «outro».

Não vamos continuar a escutar as vozes, como as de Fenton Johnson em 1916, que clamam de alma cansada:

«Estou farto de trabalhar; estou farto de construir uma civilização
Que não é minha.»
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E quem não se farta de viver o e no paradoxo de ser e se sentir «de dentro» mas que é visto e reconhecido como «de fora»? Afinal, o que é um negro nascido na Europa? Um europeu, um africano, um afro-europeu? Seja como for, é uma pessoa – um ente que se quer integrar mas a quem é negado os direitos sociais de cidadania, como a nacionalidade, a identidade e a personalidade política efectivas.

É dizer: tu não és daqui. Não te queremos. E sabem-se os efeitos – o poder instituído e as pessoas que o sustentam têm o dever e a responsabilidade política intelectual de saber – que a rejeição tem nas pessoas.
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Nada nasce do nada, é um facto. Como diz um antigo verbo chinês (que ouvia sempre ao ver a introdução de “Lin Chung – o Justiceiro”, baseado no livro «Water Margin» de Shi Nai Na, e que me recordo sempre): «não desprezes a cobra por não ter asas, porque quem é capaz de dizer se um dia não se tornará num dragão?»
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  • Texto represtinado, hoje - Domingo. Lembrava que, a esta hora, o féretro de Aimé Césare desce à terra enquanto a sua alma sobe ao Panteão da humanidade. E eu, eu tenho saudades do Mar.

La Muerte de Pablo Escobar, Fernando Botero (2000)

  • «Há uma grande diferença entre não querer e não saber praticar o mal.» Seneca, Epístolas, 90

domingo, 20 de abril de 2008

Shidhartha/Buda

  • LIFE'S TRAGEDY

It may be misery not to sing at all,
And to go silent through the brimming day;
It may be misery never to be loved,
But deeper griefs than these beset the way.

To sing the perfect song,
And by a half-tone lost the key,
There the potent sorrow, there the grief,
The pale, sad staring of Life's Tragedy.

To have come near to the perfect love,
Not the hot passion of untempered youth,
But that which lies aside its vanity,
And gives, for thy trusting worship, truth.

This, this indeed is to be accursed,
For if we mortals love, or if we sing,
We count our joys not by what we have,
But by what kept us from that perfect thing.
Paul Laurence Dunbar

sábado, 19 de abril de 2008

Diana and Cupid, Pompeo Batoni (1761)

"A universalidade, a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos servem como garantia para a salvaguarda da dignidade humana", Papa Benedictus XVI, Assembleia Geral da ONU, 18.04.2008

  • JOSEPH RATZINGER NA ONU. O DESPERTAR DE CONSCIÊNCIAS?

O discurso do Papa Benedictus XVI ontem na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) é uma Aula Magna de Direito Internacional Público, de Direito Internacional dos Direitos do Homem e de Direito Internacional Humanitário; na sequência do pensamento e da coragem de Francisco de Vitória. Um discurso agitador de consciências e que assume a prioridade do homem sobre a política e demais interesses dos Estados – até do Concelho de Segurança da ONU que não escapa incólume às suas críticas firmes mas urbanas.

É um discurso digno e corajoso – com críticas à comunidade internacional - que tem o dever de ler com atenção o que está por detrás das palavras do Papa. Joseph Ratzinger no seu melhor, sim. A minha admiração pela sua dimensão intelectual, firmeza de princípios e humanismo cresceu substancialmente. E há que notar que não sou católico romano, mas católico evangélico protestante, se parecer melhor.

A assunção da ideia ius internacional de "intervenção por razões humanitárias" está claramente expressa neste discurso, assim como uma defesa clara e eloquente do direito do povo do Tibete à sua identidade cultural e religiosa (ainda que nunca se refira a nomes em particular) e de outros povos sujeito ao vitupério da pobreza e da desigualdade é merecedora de aplausos.

É um discurso para a história da humanidade. Não o conhecer e interiorizar é, certamente, ficar mais pobre. Joseph Ratzinger vai longe, muito longe e não me surpreende este seu discurso de uma profunda humanidade e responsabilidade intelectual e humana. É, um prazer ouvir e ler um pensamento assim. Com merecida vénia, segue transcrição.

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DISCURSO DE SU SANTIDAD BENEDICTO XVI
Nueva York, 18 de Abril de 2008

Señor PresidenteSeñoras y Señores

Al comenzar mi intervención en esta Asamblea, deseo ante todo expresarle a usted, Señor Presidente, mi sincera gratitud por sus amables palabras. Quiero agradecer también al Secretario General, el Señor Ban Ki-moon, por su invitación a visitar la Sede central de la Organización y por su cordial bienvenida. Saludo a los Embajadores y a los Diplomáticos de los Estados Miembros, así como a todos los presentes: a través de ustedes, saludo a los pueblos que representan aquí. Ellos esperan de esta Institución que lleve adelante la inspiración que condujo a su fundación, la de ser un «centro que armonice los esfuerzos de las Naciones por alcanzar los fines comunes», de la paz y el desarrollo (cf. Carta de las Naciones Unidas, art. 1.2-1.4). Como dijo el Papa Juan Pablo II en 1995, la Organización debería ser “centro moral, en el que todas las naciones del mundo se sientan como en su casa, desarrollando la conciencia común de ser, por así decir, una ‘familia de naciones’” (Discurso ante la Asamblea General de las Naciones Unidas, Nueva York, 5 de octubre de 1995, 14).

A través de las Naciones Unidas, los Estados han establecido objetivos universales que, aunque no coincidan con el bien común total de la familia humana, representan sin duda una parte fundamental de este mismo bien.

Los principios fundacionales de la Organización –el deseo de la paz, la búsqueda de la justicia, el respeto de la dignidad de la persona, la cooperación y la asistencia humanitaria– expresan las justas aspiraciones del espíritu humano y constituyen los ideales que deberían estar subyacentes en las relaciones internacionales. Como mis predecesores Pablo VI y Juan Pablo II han hecho notar desde esta misma tribuna, se trata de cuestiones que la Iglesia Católica y la Santa Sede siguen con atención e interés, pues ven en vuestra actividad un ejemplo de cómo los problemas y conflictos relativos a la comunidad mundial pueden estar sujetos a una reglamentación común.

Las Naciones Unidas encarnan la aspiración a “un grado superior de ordenamiento internacional” (Juan Pablo II, Sollicitudo rei socialis, 43), inspirado y gobernado por el principio de subsidiaridad y, por tanto, capaz de responder a las demandas de la familia humana mediante reglas internacionales vinculantes y estructuras capaces de armonizar el desarrollo cotidiano de la vida de los pueblos. Esto es más necesario aún en un tiempo en el que experimentamos la manifiesta paradoja de un consenso multilateral que sigue padeciendo una crisis a causa de su subordinación a las decisiones de unos pocos, mientras que los problemas del mundo exigen intervenciones conjuntas por parte de la comunidad internacional.

Ciertamente, cuestiones de seguridad, los objetivos del desarrollo, la reducción de las desigualdades locales y globales, la protección del entorno, de los recursos y del clima, requieren que todos los responsables internacionales actúen conjuntamente y demuestren una disponibilidad para actuar de buena fe, respetando la ley y promoviendo la solidaridad con las regiones más débiles del planeta. Pienso particularmente en aquellos Países de África y de otras partes del mundo que permanecen al margen de un auténtico desarrollo integral, y corren por tanto el riesgo de experimentar sólo los efectos negativos de la globalización.

En el contexto de las relaciones internacionales, es necesario reconocer el papel superior que desempeñan las reglas y las estructuras intrínsecamente ordenadas a promover el bien común y, por tanto, a defender la libertad humana. Dichas reglas no limitan la libertad. Por el contrario, la promueven cuando prohíben comportamientos y actos que van contra el bien común, obstaculizan su realización efectiva y, por tanto, comprometen la dignidad de toda persona humana.

En nombre de la libertad debe haber una correlación entre derechos y deberes, por la cual cada persona está llamada a asumir la responsabilidad de sus opciones, tomadas al entrar en relación con los otros. Aquí, nuestro pensamiento se dirige al modo en que a veces se han aplicado los resultados de los descubrimientos de la investigación científica y tecnológica. No obstante los enormes beneficios que la humanidad puede recabar de ellos, algunos aspectos de dicha aplicación representan una clara violación del orden de la creación, hasta el punto en que no solamente se contradice el carácter sagrado de la vida, sino que la persona humana misma y la familia se ven despojadas de su identidad natural. Del mismo modo, la acción internacional dirigida a preservar el entorno y a proteger las diversas formas de vida sobre la tierra no ha de garantizar solamente un empleo racional de la tecnología y de la ciencia, sino que debe redescubrir también la auténtica imagen de la creación. Esto nunca requiere optar entre ciencia y ética: se trata más bien de adoptar un método científico que respete realmente los imperativos éticos.

El reconocimiento de la unidad de la familia humana y la atención a la dignidad innata de cada hombre y mujer adquiere hoy un nuevo énfasis con el principio de la responsabilidad de proteger. Este principio ha sido definido sólo recientemente, pero ya estaba implícitamente presente en los orígenes de las Naciones Unidas y ahora se ha convertido cada vez más en una característica de la actividad de la Organización.

Todo Estado tiene el deber primario de proteger a la propia población de violaciones graves y continuas de los derechos humanos, como también de las consecuencias de las crisis humanitarias, ya sean provocadas por la naturaleza o por el hombre. Si los Estados no son capaces de garantizar esta protección, la comunidad internacional ha de intervenir con los medios jurídicos previstos por la Carta de las Naciones Unidas y por otros instrumentos internacionales.

La acción de la comunidad internacional y de sus instituciones, dando por sentado el respeto de los principios que están a la base del orden internacional, no tiene por qué ser interpretada nunca como una imposición injustificada y una limitación de soberanía. Al contrario, es la indiferencia o la falta de intervención lo que causa un daño real. Lo que se necesita es una búsqueda más profunda de los medios para prevenir y controlar los conflictos, explorando cualquier vía diplomática posible y prestando atención y estímulo también a las más tenues señales de diálogo o deseo de reconciliación.

El principio de la “responsabilidad de proteger” fue considerado por el antiguo ius gentium como el fundamento de toda actuación de los gobernadores hacia los gobernados: en tiempos en que se estaba desarrollando el concepto de Estados nacionales soberanos, el fraile dominico Francisco de Vitoria, calificado con razón como precursor de la idea de las Naciones Unidas, describió dicha responsabilidad como un aspecto de la razón natural compartida por todas las Naciones, y como el resultado de un orden internacional cuya tarea era regular las relaciones entre los pueblos.

Hoy como entonces, este principio ha de hacer referencia a la idea de la persona como imagen del Creador, al deseo de una absoluta y esencial libertad. Como sabemos, la fundación de las Naciones Unidas coincidió con la profunda conmoción experimentada por la humanidad cuando se abandonó la referencia al sentido de la trascendencia y de la razón natural y, en consecuencia, se violaron gravemente la libertad y la dignidad del hombre. Cuando eso ocurre, los fundamentos objetivos de los valores que inspiran y gobiernan el orden internacional se ven amenazados, y minados en su base los principios inderogables e inviolables formulados y consolidados por las Naciones Unidas.

Cuando se está ante nuevos e insistentes desafíos, es un error retroceder hacia un planteamiento pragmático, limitado a determinar “un terreno común”, minimalista en los contenidos y débil en su efectividad.

La referencia a la dignidad humana, que es el fundamento y el objetivo de la responsabilidad de proteger, nos lleva al tema sobre el cual hemos sido invitados a centrarnos este año, en el que se cumple el 60° aniversario de la Declaración Universal de los Derechos del Hombre. El documento fue el resultado de una convergencia de tradiciones religiosas y culturales, todas ellas motivadas por el deseo común de poner a la persona humana en el corazón de las instituciones, leyes y actuaciones de la sociedad, y de considerar a la persona humana esencial para el mundo de la cultura, de la religión y de la ciencia.

Los derechos humanos son presentados cada vez más como el lenguaje común y el sustrato ético de las relaciones internacionales. Al mismo tiempo, la universalidad, la indivisibilidad y la interdependencia de los derechos humanos sirven como garantía para la salvaguardia de la dignidad humana. Sin embargo, es evidente que los derechos reconocidos y enunciados en la Declaración se aplican a cada uno en virtud del origen común de la persona, la cual sigue siendo el punto más alto del designio creador de Dios para el mundo y la historia. Estos derechos se basan en la ley natural inscrita en el corazón del hombre y presente en las diferentes culturas y civilizaciones. Arrancar los derechos humanos de este contexto significaría restringir su ámbito y ceder a una concepción relativista, según la cual el sentido y la interpretación de los derechos podrían variar, negando su universalidad en nombre de los diferentes contextos culturales, políticos, sociales e incluso religiosos. Así pues, no se debe permitir que esta vasta variedad de puntos de vista oscurezca no sólo el hecho de que los derechos son universales, sino que también lo es la persona humana, sujeto de estos derechos.

La vida de la comunidad, tanto en el ámbito interior como en el internacional, muestra claramente cómo el respeto de los derechos y las garantías que se derivan de ellos son las medidas del bien común que sirven para valorar la relación entre justicia e injusticia, desarrollo y pobreza, seguridad y conflicto.

La promoción de los derechos humanos sigue siendo la estrategia más eficaz para extirpar las desigualdades entre Países y grupos sociales, así como para aumentar la seguridad. Es cierto que las víctimas de la opresión y la desesperación, cuya dignidad humana se ve impunemente violada, pueden ceder fácilmente al impulso de la violencia y convertirse ellas mismas en transgresoras de la paz. Sin embargo, el bien común que los derechos humanos permiten conseguir no puede lograrse simplemente con la aplicación de procedimientos correctos ni tampoco a través de un simple equilibrio entre derechos contrapuestos.

La Declaración Universal tiene el mérito de haber permitido confluir en un núcleo fundamental de valores y, por lo tanto, de derechos, a diferentes culturas, expresiones jurídicas y modelos institucionales. No obstante, hoy es preciso redoblar los esfuerzos ante las presiones para reinterpretar los fundamentos de la Declaración y comprometer con ello su íntima unidad, facilitando así su alejamiento de la protección de la dignidad humana para satisfacer meros intereses, con frecuencia particulares. La Declaración fue adoptada como un “ideal común” (preámbulo) y no puede ser aplicada por partes separadas, según tendencias u opciones selectivas que corren simplemente el riesgo de contradecir la unidad de la persona humana y por tanto la indivisibilidad de los derechos humanos.

La experiencia nos enseña que a menudo la legalidad prevalece sobre la justicia cuando la insistencia sobre los derechos humanos los hace aparecer como resultado exclusivo de medidas legislativas o decisiones normativas tomadas por las diversas agencias de los que están en el poder. Cuando se presentan simplemente en términos de legalidad, los derechos corren el riesgo de convertirse en proposiciones frágiles, separadas de la dimensión ética y racional, que es su fundamento y su fin. Por el contrario, la Declaración Universal ha reforzado la convicción de que el respeto de los derechos humanos está enraizado principalmente en la justicia que no cambia, sobre la cual se basa también la fuerza vinculante de las proclamaciones internacionales. Este aspecto se ve frecuentemente desatendido cuando se intenta privar a los derechos de su verdadera función en nombre de una mísera perspectiva utilitarista. Puesto que los derechos y los consiguientes deberes provienen naturalmente de la interacción humana, es fácil olvidar que son el fruto de un sentido común de la justicia, basado principalmente sobre la solidaridad entre los miembros de la sociedad y, por tanto, válidos para todos los tiempos y todos los pueblos. Esta intuición fue expresada ya muy pronto, en el siglo V, por Agustín de Hipona, uno de los maestros de nuestra herencia intelectual. Decía que la máxima no hagas a otros lo que no quieres que te hagan a ti “en modo alguno puede variar, por mucha que sea la diversidad de las naciones” (De doctrina christiana, III, 14). Por tanto, los derechos humanos han de ser respetados como expresión de justicia, y no simplemente porque pueden hacerse respetar mediante la voluntad de los legisladores.

Señoras y Señores, con el transcurrir de la historia surgen situaciones nuevas y se intenta conectarlas a nuevos derechos. El discernimiento, es decir, la capacidad de distinguir el bien del mal, se hace más esencial en el contexto de exigencias que conciernen a la vida misma y al comportamiento de las personas, de las comunidades y de los pueblos. Al afrontar el tema de los derechos, puesto que en él están implicadas situaciones importantes y realidades profundas, el discernimiento es al mismo tiempo una virtud indispensable y fructuosa.

Así, el discernimiento muestra cómo el confiar de manera exclusiva a cada Estado, con sus leyes e instituciones, la responsabilidad última de conjugar las aspiraciones de personas, comunidades y pueblos enteros puede tener a veces consecuencias que excluyen la posibilidad de un orden social respetuoso de la dignidad y los derechos de la persona. Por otra parte, una visión de la vida enraizada firmemente en la dimensión religiosa puede ayudar a conseguir dichos fines, puesto que el reconocimiento del valor trascendente de todo hombre y toda mujer favorece la conversión del corazón, que lleva al compromiso de resistir a la violencia, al terrorismo y a la guerra, y de promover la justicia y la paz. Además, esto proporciona el contexto apropiado para ese diálogo interreligioso que las Naciones Unidas están llamadas a apoyar, del mismo modo que apoyan el diálogo en otros campos de la actividad humana.

El diálogo debería ser reconocido como el medio a través del cual los diversos sectores de la sociedad pueden articular su propio punto de vista y construir el consenso sobre la verdad en relación a los valores u objetivos particulares. Pertenece a la naturaleza de las religiones, libremente practicadas, el que puedan entablar autónomamente un diálogo de pensamiento y de vida. Si también a este nivel la esfera religiosa se mantiene separada de la acción política, se producirán grandes beneficios para las personas y las comunidades. Por otra parte, las Naciones Unidas pueden contar con los resultados del diálogo entre las religiones y beneficiarse de la disponibilidad de los creyentes para poner sus propias experiencias al servicio del bien común. Su cometido es proponer una visión de la fe, no en términos de intolerancia, discriminación y conflicto, sino de total respeto de la verdad, la coexistencia, los derechos y la reconciliación.

Obviamente, los derechos humanos deben incluir el derecho a la libertad religiosa, entendido como expresión de una dimensión que es al mismo tiempo individual y comunitaria, una visión que manifiesta la unidad de la persona, aun distinguiendo claramente entre la dimensión de ciudadano y la de creyente.

La actividad de las Naciones Unidas en los años recientes ha asegurado que el debate público ofrezca espacio a puntos de vista inspirados en una visión religiosa en todas sus dimensiones, incluyendo la de rito, culto, educación, difusión de informaciones, así como la libertad de profesar o elegir una religión. Es inconcebible, por tanto, que los creyentes tengan que suprimir una parte de sí mismos –su fe– para ser ciudadanos activos. Nunca debería ser necesario renegar de Dios para poder gozar de los propios derechos.

Los derechos asociados con la religión necesitan protección sobre todo si se los considera en conflicto con la ideología secular predominante o con posiciones de una mayoría religiosa de naturaleza exclusiva. No se puede limitar la plena garantía de la libertad religiosa al libre ejercicio del culto, sino que se ha de tener en la debida consideración la dimensión pública de la religión y, por tanto, la posibilidad de que los creyentes contribuyan la construcción del orden social. A decir verdad, ya lo están haciendo, por ejemplo, a través de su implicación influyente y generosa en una amplia red de iniciativas, que van desde las universidades a las instituciones científicas, escuelas, centros de atención médica y a organizaciones caritativas al servicio de los más pobres y marginados.

El rechazo a reconocer la contribución a la sociedad que está enraizada en la dimensión religiosa y en la búsqueda del Absoluto –expresión por su propia naturaleza de la comunión entre personas– privilegiaría efectivamente un planteamiento individualista y fragmentaría la unidad de la persona.

Mi presencia en esta Asamblea es una muestra de estima por las Naciones Unidas y es considerada como expresión de la esperanza en que la Organización sirva cada vez más como signo de unidad entre los Estados y como instrumento al servicio de toda la familia humana. Manifiesta también la voluntad de la Iglesia Católica de ofrecer su propia aportación a la construcción de relaciones internacionales en un modo en que se permita a cada persona y a cada pueblo percibir que son un elemento capaz de marcar la diferencia. Además, la Iglesia trabaja para obtener dichos objetivos a través de la actividad internacional de la Santa Sede, de manera coherente con la propia contribución en la esfera ética y moral y con la libre actividad de los propios fieles. Ciertamente, la Santa Sede ha tenido siempre un puesto en las asambleas de las Naciones, manifestando así el propio carácter específico en cuanto sujeto en el ámbito internacional. Como han confirmado recientemente las Naciones Unidas, la Santa Sede ofrece así su propia contribución según las disposiciones de la ley internacional, ayuda a definirla y a ella se remite.

Las Naciones Unidas siguen siendo un lugar privilegiado en el que la Iglesia está comprometida a llevar su propia experiencia “en humanidad”, desarrollada a lo largo de los siglos entre pueblos de toda raza y cultura, y a ponerla a disposición de todos los miembros de la comunidad internacional. Esta experiencia y actividad, orientadas a obtener la libertad para todo creyente, intentan aumentar también la protección que se ofrece a los derechos de la persona. Dichos derechos están basados y plasmados en la naturaleza trascendente de la persona, que permite a hombres y mujeres recorrer su camino de fe y su búsqueda de Dios en este mundo.

El reconocimiento de esta dimensión debe ser reforzado si queremos fomentar la esperanza de la humanidad en un mundo mejor, y crear condiciones propicias para la paz, el desarrollo, la cooperación y la garantía de los derechos de las generaciones futuras.

En mi reciente Encíclica Spe salvi, he subrayado “que la búsqueda, siempre nueva y fatigosa, de rectos ordenamientos para las realidades humanas es una tarea de cada generación” (n. 25). Para los cristianos, esta tarea está motivada por la esperanza que proviene de la obra salvadora de Jesucristo. Precisamente por eso la Iglesia se alegra de estar asociada con la actividad de esta ilustre Organización, a la cual está confiada la responsabilidad de promover la paz y la buena voluntad en todo el mundo. Queridos amigos, os doy las gracias por la oportunidad de dirigirme hoy a vosotros y prometo la ayuda de mis oraciones para el desarrollo de vuestra noble tarea.

Antes de despedirme de esta ilustre Asamblea, quisiera expresar mis mejores deseos, en las lenguas oficiales, a todas las Naciones representadas en ella:

Peace and Prosperity with God’s help!
Paix et prospérité, avec l’aide de Dieu!
Paz y prosperidad con la ayuda de Dios!
سَلامٌ وَإزْدِهَارٌ بعَوْن ِ الله ِ!
因著天主的幫助願大家 得享平安和繁榮 !
Мира и благоденствия с помощью Боҗией!
Muchas gracias.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Mesquita, Timbuktu, Mali

“Os muçulmanos têm o direito de ser diferentes”, Dietrich Reetz ao Der Spiegel (18.04.2008)

  • É verdade, concordo. Desde que a sua diferença não implique a supressão ou a limitação de direitos, liberdades e garantias de outrem.

Harem Pool, Jean-Léon Gérôme

– Mas é claro que sou aberto a excepções - escuto.
– Excepções?...
– Sim, às coisas boas, de acordo com a natureza natural do homem – diz-me um poeta manhento à beira de uma piscina. "Paradoxos..." – penso.

On to liberty, Theodor Kaufmann (1867)
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  • USA/CABO VERDE – O PERDÃO CONDICIONAL DA DIVÍDA
A decisão do Congresso norte-americano de perdoar a dívida externa de alguns países pobres – inclusive Cabo Verde – coincide com a visita do Papa. Oportuno; sim, politicamente muito oportuno. Sendo importante – como diz a Presidente da Câmara dos Representantes – do “ponto de vista da segurança e da compaixão”, não creio que tal tenha sido a motivação maior.

Espero é que os pressupostos do perdão sejam cumpridos, minimamente; pois se se for demasiado rigoroso ninguém beneficiará do mesmo. É um alívio que coloca um sorriso em muitos Governos africanos, nomeadamente o de Cabo Verde.

A seu tempo sabermos em que consiste essa dívida, o montante e as condições do perdão. É que a dívida não será perdoada sem mais, não. Que é legitimo que se ponham condições ao perdão (é um desvio conceptual desta ideia) parece-me prima facies justificável; desde que tal não implique qualquer forma, directa ou indirecta, de ingerência nas políticas de desenvolvimento no país.

Além do manifesto ganho político, vamos a ver o que a Administração americana irá querer mais. Uma coisa é certa: este perdão representa uma, mais uma, vitória de todos nós – os que temos defendido ao longo dos anos o perdão da dívida externa dos países mais pobres mas com uma componente de responsabilidade social ou afectação a fins sociais da dívida perdoada ou de parte substancial dela.

Como dizia à uma amiga querida, a vida não pode ser empurrada nem com a barriga nem com o cu, não. Tem o seu caminho inexorável e cabe-nos desempenhar o nosso papel de pessoas; se não o fizermos, ficaremos em dívida para com a vida. E essa não dá para perdoar, não – a condição é viver.

  • Chove muito em Lisboa. Ao amanhecer, as ruas da cidade estarão assim?

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Baby map of the World, Salvador Dali

  • GELÁSIO I. O PAPA AFRICANO E A LUTA CONTRA A POBREZA (1)

Ontem a noite estive a rever no TCM (Turner Classic Movies) um dos meus filmes preferidos: «The Shoes of the Fisherman», com uma notável interpretação de Anthony Quinn (penso que só terá feito melhor em «Zorba, O grego»). A forma como o filme termina impeliu-me à reflexão e não pude deixar de pensar no «Papa dos pobres» ou «Pai dos pobres» – como o Papa Santo Gelásio I ficou conhecido. Terá, certamente, sido fonte inspiradora da obra original de Morris West, um conhecedor profundo das questões da história da Igreja.

A Igreja católica apostólica romana tem na sua génese o pensamento de muitos naturais de África – de Tertuliano a Santo Agostinho de Hipona, passando por S. Cipriano de Cartago e Santo Gelásio I – cuja ideias e interpretações do Evangelho ainda hoje fazem eco na vida das pessoas.

Alguns eram homens eminentemente intelectuais, outros – não descurando a reflexão – eram práticos; é o caso de S. Gelásio I, o terceiro dos Papas que África deu à Igreja Católica; foi Pontifex Maximus de 492 a 496 a.D. Foi precedido, no que concerne à herança africana, pelos Papas S. Victor I e S. Melquíades.

S. Victor I, foi Papa entre 189-1202 a.D e o seu pontificado coincidiu com o Imperium do também africano Septimius Severus. S. Melquíades foi Papa entre 311-314 a.D, tendo participado na “universalização” do cristianismo ao promover, com os bons ofícios de Santa Helena (mãe de Constantino), a sua fé junto dos Imperadores Constantino (Imperador romano do Ocidente) e Licínio (Imperador romano do Oriente) que assinaram o «Édito de Milão» em 313 a.D.

Gelásio I, seguindo Santo Agostinho, o célebre pensador africano, defendia – além da sua luta contra as heresias de então, como o arianismo e o maniqueísmo (de que S. Agostinho foi discípulo durante cerca de 10 anos) – a existência de dois reinos ou duas espadas: o reino secular e o espiritual representado pelo papado; tendo este supremacia sobre o mundo material em caso de conflito.

É um problema que ocupará as esferas do poder durante séculos; aliás, a razão da separação dos poderes das repúblicas dos da Igreja tem esse fundamento primeiro. O último Papa a assumir expressa e abertamente essa «supremacia» do poder espiritual sobre o temporal foi Alexandre VI – da casa dos Borgias; tendo então oposição de Francisco Vitória, frade Dominicano e fundador do Direito Internacional e defensor da fundamento popular do poder; um verdadeiro democrata no coração do império espanhol do Século XVI.

A influência de Gelásio I na vida prática e espiritual de hoje é considerável, nomeadamente no que se entende ser a Bíblia. O «Decretum Gelasium», redigido por si, delimitou o Canon das escrituras sagradas (DG, II.1-4), determinando quais os livros que deveriam ser considerados apócrifos (DG, V) e os que eram as memórias dos Apóstolos e dos Profetas. Entre estas obras estavam as de Tertuliano e Lactâncio, também eles de origem africana.

As escrituras emergentes do «Decretum Gelasium» são 73 livros; sendo certo que para a Igreja protestante somente 66 livros são de ter-se como fazendo parte das escrituras – destes «sete apócrifos» os mais conhecidos sãos os de Tobias, Judite e Macabeus. Outros «apócrifos» terão ficado de fora do Cânon Gelasiano; serão os casos dos «evangelhos» de Maria Madalena e de Judas e não referidos no «Decretum». Por serem desconhecidos na altura? É, naturalmente, o mais provável; mas é evidente que quem vê conspirações terrenas ou divinas em todo o lado e em tudo pense o contrário e construa o que quer construir – bastará lembrar dois exemplos acabados: «The Bible Code» de Michael Drosnin e, mais recente, «O Código Da Vinci» de Dan Brown.

Mas o que distinguia Gelásio I dos demais era o seu amor genuíno e prático para com a humanidade, em particular os mais pobres; de tal modo que viveu como eles e para eles. Tinha, em verdade, a ideia certa do que era/é ser cristão=oligos christos (pequeno Cristo); independentemente da sua posição de Papa.

Como Jesus Cristo – que condoído pelo povo com fome recorreu ao seu despenseiro perguntando-lhe o que tinha para poder alimentar a multidão que o seguia e assim realizar o milagre da multiplicação – Gelásio I recorria aos fundos do Vaticano para alimentar os pobres. Por isso, diz-se, morreu pobre. Eu, pessoalmente, acho que morreu bem-aventurado e não levou menos dessa vida que o mais rico dos homens; mas levou mais, certamente.

Um homem assim nunca morre pobre; poderá morrer sem bens materiais, mas nunca pobre! Na verdade, um homem dessa estirpe nunca morre; pelo menos não merecia morrer na memória ingrata dos homens cuja grandeza descobriu neles – por isso é que é tido como santo=separado para o bem=excepcionalmente virtuoso e digno de veneração.

A pobreza não é somente material – é verdade que «[…] nem só de pão vive o homem […]» –, tem outras dimensões: cultural, espiritual, de humanidade… Mas Gelásio I, sendo um homem culto, viu que o homem também vive de pão e sentia-se responsável por aqueles que não podiam ganhar o seu sustento ou que o não tinham. Esta dimensão de irmandade entre os homens, que postula uma responsabilidade de uns para com os outros, também tem uma dimensão cultural e/ou intelectual.

É uma responsabilidade inerente à condição de homem – é uma responsabilidade de viver: de olhar o «outro» como um «eu» ou um «nós» e não ficar indiferente às suas necessidades materiais, intelectuais e espirituais.

Dizia-me um amigo, em 1984 – quando procurava ir como missionário para a Etiópia –, citando Jesus Cristo, que «Haverá sempre pobres no meio de Vós» (João, XII. 8). Para ele, e para muitos, essa era/é razão bastante para não nos preocuparmos com a pobreza: é uma fatalidade – para outros é, ainda, uma penitência merecida. Mas não! Não é uma fatalidade, nem é uma penitência divina. É mais uma falta de solidariedade, de responsabilidade dos que têm mais para com os que sofrem necessidades.

Nos tempos da teocracia judaica – antes dos povos das tribos de Israel reclamarem junto do Profeta Samuel e pedirem a Deus um Rei e ter-lhes sido dado o Rei Saúl – foi instituído a obrigação de deixar parte da colheita nos campos para servir de alimentação aos pobres. Uma boa prática que a «evolução» das sociedades e a «civilização» acabou… Muitas vezes invocando uma interpretação errada da asserção oriental «[…] não lhe dês peixe, ensina-o a pescar» hoje sob a forma liberal de reduzir-se ou mesmo acabar com a Segurança Social que é uma das conquistas maiores do Estado Social de Direito.

Está na hora de lembrarmos, todos – homens e mulheres de boa ou pouca vontade – aos governantes que pretendem acabar com a Segurança Social o que significa o «Princípio da irreversibilidade dos direitos fundamentais»…

Mas e a «pobreza de espírito» de que Jesus falava ao dizer «Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus.» (Mateus, V.3)? – perguntar-me-ão. Não é, certamente, a falta de conhecimento que Jesus falava pois o conhecimento – assim como o temor de Deus, na perspectiva bíblica – é o princípio da sabedoria ou, como dizia o Profeta Oseias, «O meu povo é destruído porque lhe falta conhecimento […]» (Oseias IV.6).

Os pobres de espírito que Jesus fala são aqueles que pensam que sabem mais do que sabem na verdade e que muitas vezes, equivocamente, são confrontados com a «humildade» socrática: «Eu só sei que nada sei…». Na verdade, Sócrates não era humilde perante o seu semelhante de cultura balofa, mas era-o em face do conhecimento; pois o que dizia, na verdade, era que «Eu só sei que nada sei; os outros não sabem que nada sabem».

Diz a lenda que Sócrates, enquanto os seus carrascos estavam a preparar a cicuta para executar a sua sentença de morte, esforçava-se por aprender uma ária: uma e outra vez tentava executá-la com perfeição. Um soldado, entristecido com a tarefa que tinha de executar, perguntou-lhe:

– Mas o que está a fazer? Porque se esforça tanto para aprender essa ária se daqui a alguns minutos estará morto?...

Sócrates olhou para ele com ar compassivo, sorriu e disse-lhe:

– Para aprender algo antes de morrer…

Os que sabem que nada sabem, os que querem sempre aprender, têm essa responsabilidade de existir e combater todas as formas de pobreza. Claro que terão sempre o dilema da «velha feliz» que tanto apoquentou Voltaire… Mas isso, a meu ver, só foi um espinho na sua carne porque não soube partilhar a sua riqueza.

O que não acontecia com Gelásio I. Conta-se que, preocupado com os peregrinos famintos em Roma – e depois de ter alimentado as suas almas com «o pão da vida» – juntou o que tinha: farinha, ovos e leite e deu-os aos seus cozinheiros para alimentar os famintos. Das cozinhas do Vaticano saíram crepes que alimentaram os peregrinos que, posteriormente, terão levado a receita para a França.

Esta tarde de Domingo compartilhei com alguns amigos um discurso de Martin Luther King, depois pedi à minha mãe para me fazer um crepe que comi com doce de tomate (uma daquelas receitas deliciosas que ela aprendeu com a minha avó no Porto Novo – Santo Antão, Cabo Verde) e pensei em S. Gelásio I. Descobriu que a pobreza deve ser tratada no nosso universo e que não somos nem devemos ser alheios a ela, que todos somos responsáveis por todos; que temos o dever de aguçar o engenho e compartilhar o que temos. Todos podemos dar um passo, e ele não precisa de ser on the fisherman´s shoes

(1) Texto repristinado a propósito da visita do Papa Beneditus XVI aos Estados Unidos.

  • Mount Nuptse, Himalayas, Nepal

  • MONTE PROFUNDO

És o meu monte profundo
sob a escarpa esquerda da rosa
ó verbo-útero
que me abarca os sonhos
quando a madrugada dorme ao Sol
de manhãs prenhes de ti
e pulverizas de sins memórias
de amanhãs-feitas.

És o meu monte profundo
quando desço do teu riso
para a vida
e subo.

Não há eternidade,
meu monte profundo
– tens a distância do pensamento
sentido em todas as auroras.

O silêncio é verbo que não te diz
deusa dos tempos
da savana agro-mulher
plantada em mim num mar de sonhos.

  • Foto: Martin Kovalik

quarta-feira, 16 de abril de 2008

  • A guerra no Iraque. Um "espinho na carne" da Administração Bush.

  • O PAPA BENEDICTUS XVI NO CORAÇÃO DO IMPÉRIO AMERICANO
A propósito da visita do Papa Benedictus XVI aos Estados Unidos, pensei no que irá dizer ao Presidente George Bush sobre a Guerra no Iraque…Então lembrei-me de S. Agostinho e do que dizia sobre os Impérios e fui reler De Civitate DeiA Cidade de Deus.; obra que, em grande parte, trata da questão do reino de Deus e o dos homens. Não resisto de a compartilhar esta passagem:
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«Afastada a justiça, que são, na verdade, os reinos senão grandes quadrilhas de ladrões? Que é que são, na verdade, as quadrilhas de ladrões senão pequenos reinos? Estes são bandos de gente que se submete ao comando de um chefe, que se vincula por um pacto social e reparte a presa segundo a lei por ela aceite. Se este mal for engrossado pela afluência de numerosos homens perdidos, a ponto de ocuparem territórios, constituírem sedes, ocuparem cidades e subjugarem povos arroga-se então abertamente o titulo de reino, titulo que lhe confere aos olhos de todos, não a renúncia à cupidez mas a garantia da impunidade.
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Foi o que com finura e verdade respondeu a Alexandre Magno certo pirata que tinha sido aprisionado. De facto, quando o rei perguntou ao homem o que lhe parecia isso de andar a infestar os mares, respondeu ele com franca audácia: “O mesmo que a ti parece isso de infestar o mundo; mas a mim, porque o faço num pequeno navio, chamam-me ladrão; e a ti, porque o fazes com uma grande armada, chamam-te Imperador” […]» (Santo Agostinho de Hipona, A Cidade de Deus, I Volume, Gulbenkian, Lisboa, 1996, p.383).
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E o que dirá o Papa Benedictus XVI? Sim, o que dirá a George W. Bush? Chamar-lhe-á alguma coisa? E as vítimas da guerra amontoam-se pelas ruas do Iraque, como despojos de uma guerra injusta e injustificada.
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Imagino o Presidente americano a pedir ao Papa para fazerem uma oração juntos – e imagino, então, as caras do Papa e de Deus a dizerem – “és mesmo cara de pau”.

~ Born a Goddess, Salvador Dali (1960) ~

  • MIL QUILÓMETROS DE LUZ
Tua alma em rosto
são mil Vénus de Milo
quando Zeus gritava mel de prazer
e exorbitava o cinzelo
teu ventre tábuo sem o nosso fruto.
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Escuto o meu poeta a ardosiar:
«Calígula não amou Drusilla, não!
Nem Tarquínio, soberbo,
o seu ventre mater; digo
eu que sei que Romeu
não se equivocou nas horas pardas
de Veneza sem carnaval
– meus pensamentos e sonho de sonho
ssubtraiu de Deus nas palavras que confessei
ao meu acordar sem ti.
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Agora que tudo és tu
tenho uma eternidade de sonhos
a parir quilómetros de luz e de tudo.»
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Ah, eu queria mil vozes
e apresento-te um espelho milenar
nas costas da ilha.