sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

  • SOBRE A REVISÃO DA CONTITUIÇÃO EM CABO VERDE (1) – O SALÁRIO MINIMO
As opções políticas não são, nunca foram ou serão fáceis. Mas mesmo sendo difíceis por natureza, devem, sempre, procurar o que em ciência política se chama de «a escolha certa» – isto é, a melhor solução possível para os interesses da comunidade. Pelo menos em algumas coisas (nas questões da revisão da Constituição, na reforma do sistema judicial, na instituição de um salário mínimo nacional, da institucionalização da língua cabo-verdiana como língua oficial da República, na independência das opções governativas no plano fiscal, por exemplo) – devemos ser consistentes nas soluções e na implementação das mesmas. Criar normas para a Constituição semântica ou em contradição com o seu sentido sistemático e os valores constitucionais – nos planos político e jurídico –, não! Isso não. Assim como criar soluções provisórias (como no caso do sistema judicial), não é, de todo, a melhor solução: o país não pode ser um projecto adiado, em especial nestas matérias estruturantes. Mas deixemos esta questão para outra nota, outro dia que virá.

O MPD, por exemplo e para o que importa, preconiza no Artº.5º. do seu projecto de revisão da Constituição a instituição do salário mínimo nacional. Mas para quê e porquê? – pergunto. Diz o Artº.61º. da CRCV (Direito à retribuição):
«1.Os trabalhadores têm direito a justa retribuição segundo a quantidade, natureza e qualidade do trabalho prestado.

2.Por igual trabalho, o homem e a mulher percebem igual retribuição.

3.O Estado cria as condições para o estabelecimento de um salário mínimo nacional.»

Esta é a norma em vigor. A proposta (louvável em si mesma e cuja intenção social do MPD subscrevo, como, aliás, tenho vindo a defender há muito) é alterar o Artº.61º., nº.3, passando este a ter a seguinte redacção:

[...]
«3. A lei estabelece e actualiza periodicamente o salário mínimo nacional.»

Mas se subscrevo e intenção social da proposta, não posso nem devo concordar com esta forma de a tentar concretizar. E explico porquê. É que, em termos práticos, esta proposta não se muda nada – está-se perante semântica jurídica. Dir-me-ão que se passa para um enunciado expressamente programático e não exequível por si mesma para um enunciado injuntivo. É verdade que sim, mas também é verdade que a norma continua a ser uma norma não exequível por si mesma – isto é: não executável sem intervenção do legislador ordinário ou «bastante em si mesma», para usar uma expressão de Rui Barbosa.

Na verdade existe um equívoco sistemático do legislador constituinte cabo-verdiano ao colocar esta matéria na II Parte, Titulo II da Constituição (Direitos, Liberdade e Garantias) e não na II Parte, Titulo III (Direitos e Deveres Económicos, Sociais e Culturais). Este equívoco faz com que se confunda a natureza destes direitos e o seu regime específico: o dos Direitos, Liberdade e Garantias constantes da Parte II, Titulo I e Parte II, Titulo II, Capítulo I e II, que beneficiam, por natureza, do regime especial constante do Artº.17º. da CRCV.

A norma do Artº.61º. agora em causa, e inserido na Parte II, Titulo II, Capítulo III não deve estar aí, pois não é um direito, no plano sistemático, abrangido automaticamente pelo regime do Artº.17º. da CRCV mas sim um direito do plano dos Direitos e Deveres Económicos, Sociais e Culturais constante da II Parte, Titulo III da CRCV. Sim, para os mais atentos relembro que tenho presente a doutrina maioritária de Gomes Canotilho e Vital Moreira que consideram, e bem, que este direito é de “natureza análoga” aos Direitos, Liberdade e Garantias – mas nem por isso deixa de ser uma norma que, no seu enunciado, não é «bastante em si mesma». É, de todo, uma questão de opção política e de projecto social do legislador constituinte (note-se que – e já vou deixando claro a minha posição sobre “seeing all the Picture» sobre os Direitos, Liberdade e Garantias – esta é uma matéria que não pode ser objecto de Revisão da Constituição a não ser para alargar o sentido do mandado de optimização da Constituição e nunca para restringir os Direitos, Liberdade e Garantias) que enforma e condiciona toda a acção legislativa, inclusive a acção constituinte derivada.

Algumas constituições de sociedades com problemas sociais análogos aos de Cabo Verde – nomeadamente no plano laboral –, como a brasileira, resolveram este problema via Constituição e em sede de Direitos, Liberdade e Garantias. Mas não assim, não assim… não como esta proposta; de todo que não. Se a intenção do MPD é obrigar o legislador a criar um salário mínimo no âmbito de um programa social assumido pelo Estado na Constituição, não ficaria mal aos deputados da nação a leitura e a análise da solução constante do Artº.7º., inciso IV da Constituição Federal do Brasil e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro – pois nesse país em concreto o salário mínimo é visto como um direito e uma e uma garantia constitucionais, quer no plano sistemático quer no enunciado da norma que é, por si mesma, concretizadora do conteúdo desse direito e garantia.

A norma originária em Cabo Verde – assim como a que é agora proposta como reforma – são emergentes de um pecado original a nível do plano sistemático da Constituição; como muitos outros que a Constituição de II República enferma e que, a seu tempo, demonstrarei. É uma norma que ou é alterada substancialmente ou se cria o salário mínimo nacional por via da lei – já, antes da revisão da Constituição. Mais: não é compreensível nem aceitável (diria escandaloso até…) que um país Pais de Desenvolvimento Médio não tenha um salário mínimo nacional. E, concretizada a criação do salário mínimo nacional por via de lei, a alteração proposta é/será uma desnecessidade.

É que, como dizia supra, a alteração ora proposta não traz nada de novo aos cidadãos e à nação. Aliás, basta ver a redacção dos números 1 e 2 deste mesmo artigo 61º. da CRCV para percebermos – e ficar demonstrada esta minha breve argumentação – o que digo: onde está, em Cabo Verde, o «salário igual para trabalho igual» entre os géneros? Onde está a «retribuição justa» pelo trabalho prestado? Mas estão na Constituição e com o mesmo sentido injuntivo, não estão? Cumpriu-se, até hoje? Não! A questão não é, de todo, haver ou não normas constitucionais, mas sim de estas serem ou não respeitadas – como veremos ao longo destas notas que serão escritas e aqui publicadas. Um estado ou é de Direito ou não é – Estado de para-Direito é coisa inexistente e não desejável.

Um facto emerge como uma evidência: havendo acordo entre os parlamentares sobre a criação do salário mínimo (que, assim como outras matérias, deveria ser objecto de aprovação pela Assembleia Nacional por maioria absoluta e não qualificada) não deveria ser aprovada pelo Parlamento? Colocá-lo na Constituição, para ter o mesmo destino que têm tido o Tribunal Constitucional e o Provedor de Justiça que – passados dez anos – nunca saíram do papel e que foi preciso um escândalo nacional para se decidir a avançar com a sua instituição? Não! Colocá-la na Constituição, para ter o mesmo destino que têm tido a «retribuição justa» e o «salário igual para trabalho igual» entre os géneros? Não! O povo quer e merece mais do legislador nacional, isto é: dos seus representantes. Esta norma é o que esse chama «um paninho quente» – faz-nos sentir bem, mas não cura o mal que nos afronta.

Só fará sentido que essa norma seja colocada na Constituição se houver uma razão imperativa e justificada (mas onde ficará, então, o país PDM?) para a não imposição de um ordenado mínimo nacional e houver um mecanismo de Fiscalização da Constitucionalidade por Omissão na Constituição a ser revista e em moldes para além do mecanismo clássico. Acontece que nenhum dos Projectos apresentados prevê esta figura da fiscalização da constitucionalidade por omissão – que é, deve ser, um dos instrumentos maiores de intervenção social do futuro Provedor de Justiça e de fiscalização jurisdicional das omissões do Governo. Para não dizer de concretização da boa ideia de fazer os cidadãos participarem de forma imediata na acção política, nomeadamente na sua fiscalização. Temos, devemos ser… consistentes nas soluções e não ter medo da cidadania participativa. Esta não é, de todo, um perigo para os partidos mas sim um incentivo à sua qualificação e um factor mediato de responsabilização política.

Se o PAICV, o MPD e a UCID querem a instituição do salário mínimo nacional, porquê é que não chegam a um entendimento sobre isso e aprovam, já – agora, na Assembleia nacional e em forma de lei – essa lei necessária? Se alguém não a quer, que o diga, agora. O povo fica a saber o que uns e outros pensam. Deixemos a Constituição curar do que deve curar. É que, a ser assim – ficando esta norma na Constituição – sempre se pode(rá) vir a dizer que é uma norma programática não exequível por si mesma (e é... na actual redacção e na proposta em causa). O povo de Cabo Verde exige dos seus representantes uma dimensão mais prática do exercício do poder e mais e maior utilidade e efeito prático nas suas vidas. Mas isso, de todo, não pode sacrificar os valores que enformam a Constituição – é que esta é o espírito da comunidade em forma normativa. Voltarei, a seu tempo – se Deus quiser –, à questão da Fiscalização da Constitucionalidade por Omissão.

A sede constitucional não é panaceia nacional – temos, como cidadãos e como sociedade una, de ter consciência disso. E, é bom que se saiba, não podemos estar, a cada revisão da Constituição, a mudar tudo para ficarmos na mesma. E nesta questão do salário mínimo nacional o que é preciso não é a revisão da Constituição, mas sim cumprir-se com ela… aprovando uma lei que a institua. E já tarda há muito.
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