Philip Alston, Relator Especial sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias da Comissão de Direitos Humanos da ONU, afirmou ontem (15.09.2008) que a polícia brasileira é responsável por muitos dos homicídios que ocorrem no país e que um número considerável de agentes das polícias levam uma vida dupla: quando de serviço combatem o crime, mas nos dias de folga fazem parte do crime organizado; sendo responsáveis por um em cada cinco homicídios e que somente no Rio de Janeiro são responsáveis por três mortos todos os dias.
É um Relatório perturbante, que incomoda(rá) os responsáveis policiais e políticos, para não falar dos que se opõem a um Estado policiado e com uma policia «com autorização para disparar a matar»; mas deve desassossegar ainda mais o povo que sofre essas e outras atrocidades diariamente.
O Relatório pecará por ser demasiado localizado, ter um universo de estudo demasiado reduzido e preparado num espaço de tempo muito reduzido; mas expressa uma realidade (do ponto de vista meramente empírico e de percepção do que sente e pensa o cidadão) não muito longe da verdade – sendo certo que muitos polícias morrem em defesa do cidadão; como, por exemplo, no caso da Bahia em que – noticiava ainda ontem a TV Record brasileira – mais de três centenas de agentes da polícia pereceram no cumprimento do dever em 2007.
Se não é admissível que os agentes sejam membros de esquadrões da morte, de bandos ou organizações criminosas, também não se pode esperar que não possam exercer a legítima defesa, sua e dos cidadãos. É necessário diferenciar isso, sob pena de colocar um odioso injustificado sobre os agentes que tombam a defender a segurança da República e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Tenho a ideia de que é difícil fazer-se um Relatório profundo no tempo (dez dias) e com os métodos indicados por Philip Alston. Mas é melhor este do que nada, de todo. As recomendações do Relatório resultam, numa primeira leitura, muito assertivas – nomeadamente terminar com a separação das polícias civil e militar (esta uma reminiscência do tempo da ditadura e braço armado dos Estados da federação, como me diz uma migo há pouco tempo), criar-se um sistema de exclusividade dos agentes e melhorar-se significativamente os seus salários, reforçar os poderes do Ministério Público e reforma-se o sistema prisional – e as autoridades brasileiras deverão atentar nelas, de acordo com a realidade de quem anda no terreno todos os dias.
Agora tenho, prima facies, sérias dúvidas sobre a assertividade de algumas recomendações sobre a Justiça, nomeadamente a abolição do prazo prescricional e o «conselho» para os juízes terem uma outra perspectiva do princípio da presunção de inocência: «judges should give careful consideration to alternative interpretations of the norm guaranteeing the “presumption of innocence” found in foreign and international jurisprudence».
Tenho tido, ao longo dos anos, muitas conversas com juízes e procuradores que defendem algumas soluções análogas – nomeadamente terminar com o princípio da presunção de inocência depois da prolação de acórdão condenatório em primeira instância – e que, a meu ver, é ir muito, demasiado longe, para além das garantias constitucionais e ius fundamentais no plano dos direitos humanos.
No caso dos crimes contra a vida, entendo essas preocupações e, tendo em consideração o bem jurídicos tutelado, até seria capaz de as subscrever com determinados pressupostos; mas não me parece que seja ideia ou lógica susceptível de levar às últimas consequências. É que, importará lembrar, o princípio da presunção de inocência é uma garantia contra o poder e contra poder judicial em particular. Neste aspecto, o que o Prof. Philip Alston propõe, é – em nome da garantia social do sentimento da não impunidade – extirpar o núcleo essencial do princípio da presunção de inocência.
Da perspectiva da sua tradição jurídica e social (anglo-saxónica), percebo o que propugna; mas não me parece uma ideia ou perspectiva particularmente feliz num Relatório sobre direitos humanos e numa recomendação à um Estado soberano – como tudo o que isto quer e já não quer dizer. É assim porque, parece-me, é um juízo subjectivo que pode ser sustentada em termos académicos mas não proposto, sob a forma de «Recomendação», a um membro da ONU.
Infelizmente, e tenho poucos dúvidas sobre isso, essa forma de pensar vai migrando de modo subliminar pelo Mundo e, por exemplo, em Portugal está a incubar há já algum tempo (veja-se as sucessivas limitações aos recursos penais, por varias vias e formas – e o cidadão não tem percepção desta realidade a não ser quando é confrontada com ela).
Não me admiraria absolutamente nada que viesse a constar da reforma penal que aí vem (a sociedade portuguesa está a ser «empurrada» para forçar o Governo a fazê-la; e como as eleições estão à porta...), com uma intervenção considerável do poder judicial que, poderá ver uma reforma adaptada à sua perspectiva do princípio da presunção de inocência (o cidadão comum ficaria surpreso com o número de magistrados portugueses que comungam da perspectiva de Philip Alston), da repristinação – no todo ou em parte – das anteriores normas sobre o segredo de justiça, dos prazos do Inquérito e da aplicação da prisão preventiva.
Importa dizer que prisão preventiva, antes da reforma penal de 2007, era usada de uma forma não raras vezes absurda, como regra e não excepção e, muita vezes, subordinada à regra do menor esforço imposta por lei (a lei obrigava a fundamentar porque não se aplicava a prisão preventiva à crime com moldura penal superior a 3 anos). Era mais fácil aplicar a prisão preventiva que não a aplicar, daí que as prisões ficaram pejadas de presos preventivos (muitas, por exemplo, pelo roubo de um telemóvel e/ou serem estrangeiros ficavam presos preventivos). Nos julgamentos chegava-se à conclusão que ao arguido não deveria ser aplicado uma pena de prisão efectiva – nalguns caos até haveria razões para absolvição e não raras vezes aconteceu – e o arguido era sentenciado à uma pena igual ao da prisão preventiva cumprida. A justiça era, assim, ferida de morte – constantemente.
A reforma penal pretendeu acabar ou limitar com essa situação iníqua – a que toda gente sempre fechou os olhos, mau grado ser uma evidência –, mas as consequências da reforma não foram as esperadas. Pessoas boas ou com boas intenções podem e, não raras vezes acontece, criar leis más; como acontece a criação do Campo de Concentração de Guantánamo e as demais prisões secretas dos Estados Unidos da America espalhadas pelo Mundo ou com o sistema de Apoio Judiciário em Portugal que, na prática, denega a justiça aos mais desfavorecidos; assim como as boas leis podem ser mal aplicadas – daí o efeito «boomerang» de muitas leis da actualidade, pois não são acompanhada de outras políticas sociais adequadas.
Um exemplo de uma má lei não são as actuais normas de processo penal sobre a prisão preventiva ou os prazos do Inquérito (na anterior legislação eternizam-se e, não raras vezes, o Ministério Público fica «à espera» de provas para poder fazer uma acusação – e, muitissimas vezes, o cidadão chegava a ficar mais de ano sem ser julgado) mas sim o Código das Custas Judiciais e o sistema de Apoio Judiciário que limita ao extremo o acesso dos cidadãos à Justiça e cria desigualdades materiais e infundadas na sociedade portuguesa; mas essa parece ser matéria que passa desapercebida numa discussão que não é, verdadeiramente, sobre os interesses dos cidadãos mas sim uma discussão de poder e do seu equilibrio no seio dos órgãos do Estado.
No meio deste conflito – em nome da defesa dos interesses e da segurança dos cidadãos – o sistema jurídico português poderá soçobrar à algumas soluções anglo-saxónicas e o cidadão, na realidade e na prática, é que ficará a perder. Será, a natural consequência de um conflito surdo – que se torna cada vez mais patente – entre o poder executivo e o jurisdicional.
É um ataque subliminar às liberdades em nome da segurança, como dizia Norberto Bobbio, a protecção dos direitos fundamentais é o elemento diferenciador dos regimes democráticos dos autoritários.
É, estamos perante uma crise civilizacional que se alastra a nível global e que torna a pessoa humana cada vez mais objecto das acções do Estado subjugado aos interesses de uns poucos, de uma partidocracia que tem vindo a construir silenciosamente uma aristodemocracia global. Esta sim, é a verdadeira globalização – a dos interesses de poucos – e nem nos apercebemos dela.
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