sábado, 25 de abril de 2009

À minha amiga Maria de Barros, sempre solidária

  • TROCAR A ARTE DO VATICANO POR COMIDA PARA ÁFRICA?

«Haverá sempre pobres no meio de Vós» – disse Jesus Cristo (João, XII. 8). Mas isso não é uma uma fatalidade, não; é um desafio à nossa dimensão humana, solidariedade e engenho para debelar esta afronta que que a humanidade sofre desde que se conhece. Existem boas ideias para acabar com a fome e a pobreza extremas (pois é possível!), outras, nem tanto. Uma destas ideias, é trocar-se arte por comida. Sim, beleza por pão.

Trocar as riquezas do Vaticano por alimentos para os mais pobres – uma ideia que alguns resolveram repristinar. Sim, repristinar… pois esta ideia não é nova, de todo que não. No livro The Shoes of the Fisherman de Morris West, v.g., ela emerge e é concretizada. O que posso dizer, agora, de repente, é que a ideia, a ser concretizada, tornaria o Mundo mais pobre (não só de pão vive o homem, mas de arte, de beleza…) e não resolveria o problema da fome no Mundo. O problema é estrutural, e demanda mais que um punhado de dólares ou de euros para comprar pão. Se assim fosse, os bilhões de dólares em ajuda humanitária e ao desenvolvimento aos países pobres tinham sido instrumentos idóneos a acabar com a fome e a pobreza extremas em África e no Mundo em geral.

Dar comida às pessoas só para matar a fome nunca foi a solução para estas deixarem de ter fome no futuro… A FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) e outras organizações internacionais, por exemplo, sempre ajudaram Cabo Verde com ajuda alimentar, mas essa comida, em regra, sempre foi vendida. Porquê? – perguntar-me-á.

Há muitas razões, e não importam agora. Mas há uns anos atrás, no âmbito de um programa de ajuda alimentar em que estava engajado, falei com o então representante da FAO em Lisboa e, naturalmente, acabamos por falar de Cabo Verde (que não era o objecto da nossa conversa, mas sim países então em situação de catástrofe humanitária) e sobre o trabalho da instituição em prol do país, e o que me disse na altura foi que a ONU sabia que os alimentos não eram distribuídos gratuitamente a população mas sim vendidos. A FAO, disse-me ele, «fechava os olhos» a isso pois sabia que a política do país de vender esses alimentos a preços controlados e, depois, usar esse dinheiro para outros programas exigidos pela fragilidade económica do país, era uma boa política – no plano social e económico. Esse tipo de política continua, ainda hoje, com a ajuda alimentar internacional ao país – que tenderá, naturalmente, a desaparecer, em particular da União Europeia, pois assim demanda o Princípio da Solidadaridade (os governantes dos países pobres deveriam atentar neste princípio…) que se aplica não somente ao nível interno mas também externo.

Quem não se lembrará de ver, publicado em Liberal on line, um anúncio de Concurso Público para a venda de «frango enlatado» doado pelo Goveno italiano? E de, como anunciado há poucas semanas no Jornal da Noite, um governo europeu ter doado alimentos ao país? Estes alimentos, certamente, ajudarão na luta contra a pobreza, e permitirão aumentar o valor nutricional das crianças nas escolas no âmbito do programa escolar de alimentação, da aldeia SOS criança, das mães solteiras, e das viúvas sem rendimentos próprios.

Tenho a certeza (pois os empresários nacionais são generosos) que as grandes empresas nacionais adquiriram esses alimentos e os doaram às escolas e às ONG´s que ajudam directamente as populações mais frágeis, partilhando, assim, o seu bem-estar com os mais desfavorecidos e demonstrando a sua responsabilidade social que, num país como Cabo Verde, é de natureza acrescida e tem a natureza de dever. E, do ponto de vista empresarial, não perderão nada pois podem (e devem) fazer isso no âmbito do Mecenato Social. Se há dinheiro, para promover festivais… de Bahia das Gatas a Gamboa, passando por Santa Maria e eventos como o de Tito Paris e a Orquestra Metropolitana de Lisboa no Mindelo e na Praia, também haverá para o engajamento social dos privados na luta contra a pobreza. «Nem só de pão viverá o homem»… é verdade; mas também de pão.

Vender as obras de arte e outros artefactos, que são memória da humanidade, para comprar pão pode parecer uma boa ideia, mas é uma falácia, um produto de mentes ociosas, e mais uma forma de afrontar a Igreja Católica (por vezes merece, para despertar do marasmo). Não é, certamente, nenhuma preocupação sincera com as pessoas que morrem de fome no Mundo. Posso estar sinceramente errado; mas se assim for, gostaria de saber quantas dessas pessoas contribuem com o seu dinheiro, o seu património, o seu esforço social de forma sustentada… para acabar com a fome, o sofrimento e a injustiça no Mundo. Bastaria prescindirem do valor de uma refeição por semana para e no final do mês, por exemplo, terem dinheiro bastante para alimentar uma criança no Bangladesh, na Etiópia ou no Sudão durante bastante meses. Mas, se lhes perguntarem se o fazem… aí, como diz o povo, «a porca torce o rabo». É fácil exigir dos outros, não a nós mesmos.

«Só tem importância o que é eterno» – diz uma inscrição à entrada da Capela Sistina, no Vaticano. E nada existe de mais importante na existência que o homem, mas o homem não é só o que come; o homem é também o que lhe alimenta o espírito e a alma. E poucas coisas fazem isso como a arte. E imagino as obras de Rafael, Miguel Ângelo, a memória da Etrúria, do Egipto, do produto do helenismo… a arte romana, as obras originais de Eusébio de Cesarea, Anselmo de Aosta, Tomás de Aquino, Escoto Erigena, Dionisios Aeropagita ou os originais das obras de Origenes, Tertulianos e outros autores declarados heréticos por Gelásio I… (de valor incalculável e inestimavel) nas salas e colecções privadas dos ricos deste Mundo ou mudando-se para o Louvre, o Reina Sofia, o Metropolitan of New York e outros museus opulentos.

Muitos tornar-se-iam obras perdidas, como muitas são consideradas hoje, mas que estão na coleções privadas de famílias ricas, do ocidente ao oriente, ou em zonas esquecidas de arquivos públicos, privados e de museus. Se se vendesse as obras do Vaticano para comprar alimentos para os pobres de África (já agora: todos os pobres deste Mundo), estar-se-ia a cometer o maior genocídio cultural da história, e dar-se-ia corpo a maior tragédia cultural da humanidade depois do incêndio da Biblioteca de Alexandria, e pior, do ponto de vista da dimensão, do que as tragédias culturais emergentes da horrenda Inquisição e da infame Noite de Cristal.

A ideia de que o Vaticano e a Santa Sé (duas realidades jurídicas, substancialmente diferentes, e que tem consequências no plano do Direito Internacional Público ao falar-se desta questão de alienação de património da Igreja Católica) são alheias ao sofrimento dos mais pobres é, além de errada, injusta. A Santa Sé tem razão numa coisa: os bens culturais – que têm uma dimensão espiritual – que se encontram no Vaticano são res communis humanitas, isto é, património comum da humanidade, logo, insusceptíveis de serem vendidos, pois são bens fora do comércio. São isso mesmo, do ponto de vista material e moral, mas bom seria que o Vaticano tratasse desta questão no plano formal. Mas quem colocou esta questão, não atentou nesta dimensão do problema – o que não me surpreende.

Lembro que Gelásio I (por exemplo, porque de África se fala), o terceiro Papa africano a ser considerado Vigário de Cristo, recorria aos fundos do Vaticano para alimentar os pobres. Por isso, reza a história, morreu pobre, despojado de bens terrenos. Mas, convenhamos, no Mundo de hoje e como sempre, só se pode ajudar quem não tem tendo meios. Deixemos a Santa Sé e a Igreja Católica sem fundos, e iremos ver quem irá alimentar e educar grande parte da população mais pobre e fragilizada do Mundo. Os que gritam: Vende! Vende! Vende! E os que os apoiam, acriticamente? Certamente que não!

Mas este discurso não é docta ignorantia, como diria Nicolau de Cusa; nem santa ignorância, como diz o povo, é algo pior: falta de consciência da realidade, uma vontade acintosa de afrontar a Igreja e de fragilizá-la no Mundo. Não digo mais, mas a verdade é que a Igreja tem servido como elemento de resistência cultural e é uma reserva moral na desonsideração da vida e no choque de civilizações que o Mundo enfrenta há muito. O ataque chega, agora, de dentro, e procura ferir não os fundamentos da razão mas os meios materiais de a sustentar. É uma técnica arcana.

Eu até que me sinto confortável nesta posição de defesa da Igreja Católica, pois sendo, naturalmente, católico (no sentido etimológico da palavra grega), não sou católico apostólico romano: sou cristão, da ala protestante – e, por isso, muitos pensariam que tenho ou teria razões para aderir a esta ideia; mas não. O Mundo precisa de uma solidariedade global, não de encontrar ovelhas ou cordeiros espiatórios dos pecados colectivos da humanidade – a soma de todos e cada um de nós. Eu, sinto-me culpado pelo mal de todos os que sofrem. Sim, sinto-me culpado porque não faço tudo o que poderia e deveria fazer.

Imagem: Harpista egípcio

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