domingo, 16 de novembro de 2008

  • SE TE ATRAEM OS MAUS RAPAZES – Theodor Adorno

Se te atraem os rapazes maus. - Há um amor intellectualis pelo pessoal de cozinha, a tentação dos que trabalham teórica ou artisticamente de afrouxar a exigência espiritual em si mesma, de descer abaixo do seu nível, de seguir no seu tema e na sua expressão todos os possíveis hábitos que, enquanto atentos conhecedores, rejeitavam.

Visto que nenhuma categoria, nem sequer a cultura, já está dada ao intelectual e milhares de exigências da actividade comprometem a sua concentração, o esforço para produzir algo razoavelmente sólido é tão grande que já mal resta alguém dele capaz. Além disso, a pressão do conformismo, que pesa sobre o produtor, diminui a exigência sobre si mesmo.

O centro da autodisciplina intelectual enquanto tal entrou em decomposição. Os tabus, que constituem a categoria espiritual de um homem e são, muitas vezes, experiências sedimentadas e conhecimentos inarticulados, dirigem-se sempre contra os próprios impulsos que ele aprendeu a reprovar, mas estes são tão fortes que só uma instância inquestionável e inquestionada os consegue deter. O que é válido para a vida pulsional não o é menos para a vida espiritual: o pintor e o compositor que se interditam esta e aquela combinação de cores ou de acordes como vulgar, o escritor que se enerva em razão de certas configurações linguísticas por banais ou pedantes, reagem tão intensamente porque neles próprios há estratos que nesse sentido os atraem.

A recusa da inessência dominante da cultura pressupõe que nela se participe o suficiente para a sentir, por assim dizer, palpitar entre os próprios dedos, mas que ao mesmo tempo dessa participação se extraíram forças para a denunciar. Mas tais forças, que emergem como forças da resistência individual, não são de índole meramente individual.

A consciência intelectual em que elas se concentram tem um momento social, tal como o superego moral. Constitui-se ele numa representação da sociedade justa e dos seus cidadãos. Se tal representação alguma vez esmorecer - e quem poderia entregar-se a ela com uma confiança cega? -, o impulso intelectual para baixo perde a sua inibição e vem à luz toda a imundície que a cultura bárbara depositara no indivíduo: a semi-formação, a indolência, a credulidade grosseira, a brutalidade.

Na maioria dos casos, racionaliza-se também ainda como humanidade, como a vontade de buscar a compreensão dos outros homens, como responsabilidade cheia de experiência do mundo. Mas o sacrifício da autodisciplina intelectual torna-se demasiado fácil para aquele que o assume, de maneira que nele se possa acreditar que se trata de um sacrifício.

A observação torna-se drástica para os intelectuais cuja situação material se alterou: logo que conseguem de algum modo persuadir-se de que ganharam o seu dinheiro a escrever e não de outra forma, deixam que permaneça no mundo, até ao pormenor, o mesmo lixo que outrora, como acomodados, tinham veementemente proscrito. Assim como os emigrantes, que um dia foram ricos, são amiúde, no estrangeiro, tão complacentemente avarentos como já de bom grado o teriam sido na pátria, assim os empobrecidos no espírito marcham com entusiasmo para o inferno, que é o seu reino dos Céus.». in Theodor W. Adorno, Mínima Moralia, Edições 70, Lisboa, s/d, p.22-23

  • Imagem: Amedeo Modigliani, Portrait of the polish poet and art dealer Leopold Zborovski (1889-1932)

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